Opinião

Mas, afinal, qual é o conceito de precedente no Brasil?

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27 de julho de 2018, 6h31

O CPC de 1973 já utilizava os termos jurisprudência e precedente para se referir a conceitos diferentes. A palavra jurisprudência aparecia indicando um conjunto de decisões judiciais que resolvia questões jurídicas de maneira uniforme. O código revogado, contudo, não esclarecia se essa uniformidade dizia respeito à atividade hermenêutica e à atividade argumentativa realizada para construir a decisão judicial ou apenas ao resultado do julgado.

Houve, no CPC de 1973, a preocupação de criar um capítulo próprio para tratar da uniformização da jurisprudência, porém, a julgar pela tradição do Direito brasileiro de criar súmulas de jurisprudência, que valorizam muito mais o resultado do julgamento, em detrimento da maneira como a decisão paradigma foi construída, é correto inferir-se que, no marco do código anterior, por jurisprudência, deve-se entender apenas a convergência do tribunal com relação ao resultado do julgamento das causas.

A grande dificuldade do Poder Judiciário brasileiro em uniformizar seu entendimento a respeito da forma de se construir a decisão judicial confirma essa hipótese reducionista e limitada. Essa hipótese também é corroborada pelo próprio enunciado do artigo 479, que, expressamente, afirma que a jurisprudência dominante pode ser conhecida através de súmulas: “O julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal, será objeto de súmula e constituirá precedente na uniformização da jurisprudência” (grifei).

Por essas mesmas razões é que o termo precedente, já constante do artigo 479 do CPC anterior, é apresentado ali de forma bastante simplista, como sinônimo de julgado, ou seja, como o resultado do julgamento de um caso. Em tais termos, segundo o citado dispositivo, precedente era tido como o “julgamento, tomado pelo voto da maioria absoluta dos membros que integram o tribunal”. Assim, vários precedentes comporiam a jurisprudência dos tribunais ou tribunal.

Esse tipo de noção é totalmente compatível com a cultura jurídica de sua época, que não diferenciava “texto normativo” e “norma jurídica”[1]. Para esse tipo pensamento, o ordenamento jurídico seria composto do conjunto de leis produzidas apenas pelo Poder Legislativo, o trabalho do juiz seria aplicar a lei com justiça, a moral seria totalmente separada da lei, a decisão judicial seria resultado da subsunção lógica da lei aos fatos, e a atividade interpretativa do juiz consistiria em descobrir o sentido dos textos normativos, através da utilização dos métodos interpretativos: lógico, gramatical, histórico, teleológico e sistemático[2].

O CPC de 2015, por sua vez, da mesma forma como já fazia o anterior, diferencia de forma clara precedente e jurisprudência. Todavia, o sentido que lhes dá é muito mais rico e essa virada advém não da forma como esses termos são utilizados ao longo do código, especialmente nos artigos 521, IV, 978, 1.029, parágrafo 1º, 1.034, parágrafo 3º, I, e 1.043, parágrafo 4º, mas da maneira como eles aparecem nos artigos 489, 926 e 927, justamente aqueles que trazem o grande diferencial do atual CPC na matéria, uma vez que veiculam os dois grandes cometimentos em relação aos quais a magistratura brasileira é chamada a aderir: a) o compromisso com o emprego de criteriosa atividade hermenêutica e argumentativa quando da construção da decisão judicial; b) o compromisso com a estabilidade, integridade e coerência do caminho utilizado para dar cabo do cometimento anterior.

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Mas, afinal, o que é precedente? Ao contrário do CPC de 1973, o atual não o conceitua. Dessa forma, o caminho utilizado pela doutrina brasileira[3] tem sido buscar inspiração na lição dos tratadistas de países cujo sistema jurídico opera a partir da existência de um “direito comum” (common law). Segundo essa tradição, o “direito comum” seria histórica e costumeiramente construído pela sociedade e suas instituições políticas. Dentre estas últimas está o próprio Poder Judiciário, que não apenas tem a função de revelar as normas desse sistema, mas também de construí-las, a partir de suas decisões.

É na referida tradição, portanto, que o precedente, enquanto decisão que revela e materializa o “direito comum”, dada sua imensa relevância, tem sido objeto de atenção e estudo. A importância que os “textos normativos” têm para a compreensão da ideia de ordenamento jurídico, bem como para a construção das decisões judiciais, em nossa tradição, o precedente tem para a o sistema da common law, e o seu conceito, como o das “normas jurídicas”, somente pode ser entendido a partir da reflexão sobre como o juiz efetua a passagem do “texto normativo” para a “norma jurídica”. Para esse sistema jurídico, essa noção está nos conceitos de ratio decidendi e holding. Vamos a eles, então.

Para Frederick Schauer[4], da Universidade da Virgínia, a ratio decidendi, que em bom português pode ser traduzida “como o fundamento ou os fundamentos da decisão”, ao lado do holding[5], que, segundo o Black’s Law Dictionary, significa declarar as conclusões da corte a respeito da incidência da lei sobre determinado fato[6], são os fatores que permitem identificar e qualificar como precedente determinada decisão judicial. Em outras palavras, uma decisão judicial é identificada pelos fundamentos utilizados para a resolução das questões postas, bem como pelas suas conclusões, e não apenas destas. Dessa forma, precedente não é um tipo de decisão judicial, mas uma qualidade do julgado, que é construído pelo julgador de forma a possibilitar o conhecimento acerca dos aspectos hermenêuticos e argumentativos determinantes para a conclusão a que nela se chegou.

Ainda segundo ele, muita tinta já foi gasta na tentativa de definir esse conceito de ratio decidendi, podendo-se citar pelo menos três grandes correntes acerca do tema: a) para a primeira corrente, a ratio decidendi é um problema de como os juízes e tribunais identificam os fatos discutidos na causa e os conectam com o resultado do julgamento; b) para a segunda, a ratio decidendi é um problema de como os juízes e tribunais identificam na norma os fatos juridicizados e os conectam com o resultado do julgamento; c) para a terceira, a ratio decidendi envolve, sim, o problema de saber como os juízes e tribunais interpretam e identificam os fatos juridicizados pela norma e os conectam com o resultado, mas a questão não é essa, mas extrair quais os argumentos eles utilizaram para justificar essa operação, pois são eles os elementos tangíveis para se identificar a razão de decidir.

A chave para encontrar a resposta acerca dos argumentos utilizados, prossegue o autor norte-americano, está em, primeiramente, identificar por quais razões a lei ou outra fonte normativa torna relevantes determinados fatos, ou seja, está em identificar os fatos juridicizados pela norma. Em seguida, o esforço reside em compreender como a decisão judicial, no caso o precedente, identificou e descreveu os fatos relevantes da demanda, bem assim que razões utilizou para, conectando-os com a lei ou outras fontes normativas, chegar às conclusões acerca da resolução do caso[7].

Em tais termos, quando uma decisão judicial é construída mediante a exposição desses elementos, ela pode ser considerada verdadeiramente um precedente, o qual se apresenta como guia obrigatório para as cortes inferiores, no caso da imposição de observância vertical imposta pelo sistema jurídico, ou como guia sugestivo para as cortes de mesma hierarquia, quando a observância horizontal do precedente não seja imposta.

Neste último caso, o precedente é identificado como stare decisis[8], expressão latina que pode ser traduzida para o português como “apoio ao já decidido”, ou “respeito ao já decidido”, no sentido de que o juiz ou o tribunal, mesmo que não seja obrigado a tanto, ao julgar caso idêntico ao já julgado pelo mesmo ou outro juiz ou tribunal de mesma hierarquia, reconhece na sentença ou no acórdão passado a existência de bons motivos para julgar o caso presente mediante: (i) a consideração dos mesmos fatos juridicizados, (ii) o alcance das mesmas conclusões e, sobretudo, (iii) a partir da utilização das mesmas razões para vincular os fatos tidos como relevantes (ou juridicizados pela norma) às conclusões a que chegou.

Por fim, Schauer diz que, à primeira vista, seguir um precedente obrigatoriamente, apenas porque veio de uma corte superior ou apenas porque se trata de uma decisão proferida anteriormente, parece irracional. Todavia, quando se considera a estabilidade do sistema jurídico, o respeito ao quanto já decidido antes confere relevância à atitude que prega o stare decisis et non quieta movere, sempre ressalvada a possibilidade de revisão (overruling[9]), nos casos em que isso for admitido a cortes inferiores ou de mesma hierarquia. Todavia, conclui, se o que se chama de precedente não puder ser identificado através da ratio decidendi, do holding ou de suas conclusões, falar de precedente não passa de uma grande ilusão.

Essa advertência é bastante válida para a realidade brasileira, uma vez que, como visto, apesar dos diversos mecanismos e técnicas processuais para a identificação e uniformização das decisões judiciais, o resultado esperado sempre foi muito aquém do necessário para alcançar tais objetivos.

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No Brasil, estamos em pleno processo de transição entre a cultura do antigo e do novo CPC. Ainda continuamos valorizando a ideia de precedente como uma unidade de jurisprudência, sendo esta apenas o conjunto das decisões de um tribunal convergentes em torno de determinada conclusão, sem qualquer preocupação quanto à compreensão como as decisões foram efetivamente construídas, isto é: como o juiz efetuou a passagem do “texto normativo” para a “norma jurídica”, bem assim a passagem da “narrativa das partes” para a sua própria “narrativa”.

Esse tipo de pensamento nunca permitirá o cumprimento das metas do artigo 926 do CPC nem tampouco permitirá aos cidadãos o controle das decisões do Poder Judiciário, instância de poder cada vez mais relevante para a criação de “normas jurídicas” integrantes do conjunto que chamamos ordenamento jurídico.


[1] Sobre a diferença entre “texto normativo” e “norma jurídica” no contexto da construção da decisão, consultar: BEZERRA NETO, Bianor Arruda. O que define uma decisão judicial. Quais os limites dos juízes. São Paulo: Noeses, 2017.
[2] Para uma crítica acerca do uso dos métodos tradicionais, conferir: ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da justificação jurídica. São Paulo: Landy, 2005.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. São Paulo: RT, 2013; MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: RT, 2015; DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v.2. Salvador: JusPodivm, 2016; TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. São Paulo: RT, 2004; BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do direito e decisão racional: temas de teoria da argumentação jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
[4] SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p.36-53.
[5] Schauer adverte que os conceitos de ratio decidendi e holding são apenas similares, porém não idênticos, e que este é mais utilizado na prática jurídica dos Estados Unidos, enquanto aquele, no Reino Unido: “Much of the foregoing discussion connects with the traditional distinction between the holding of a case (roughly, but only roughly, equivalent to what in Great Britain is called the ratio decidendi) and the dicta that a court may also offer in the process of issuing an opinion. According to the traditional distinction, the holding of a case consists of what is necessary to support the result in that case” (SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer: a new introduction to legal reasoning. Cambridge: Harvard University Press, 2009, p.180).
[6]To adjudge or decide, spoken of a court, particularly to declare the conclusion of law reached by the court as to the legal effect of the facts disclosed” (BLACK, Henri Campbell. Black’s Law Dictionary. Saint Paul: West Publishing, 1968, p.864).
[7] Na lição de Neil MacCormick, a maior autoridade inglesa sobre precedentes é Rupert Cross, para quem “o fundamento da decisão de um caso é qualquer norma do direito tratada por um juiz em termos explícitos ou implícitos como um passo necessário para chegar à conclusão, relacionada à linha de raciocínio adotada por ele”. Em seguida, MacCormick oferece sua lição: “O fundamento da decisão é a deliberação explícita ou implícita oferecida por um juiz que seja suficiente para determinar um ponto do direito posto em questão pelos argumentos das partes num caso, sendo ele um ponto a respeito do qual uma deliberação era necessária para sua justificação (ou uma de suas justificações alternativas) da decisão no caso. (Aqui é preciso que se repita a advertência de que, de acordo com essa perspectiva, nem todos os casos – mesmo casos que ‘firmam jurisprudência’ – possuem um único fundamento da decisão)” (MACCORMICK, Neil. Argumentação jurídica e teoria do direito. Tradução de Waldéa Barcelos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.281).
[8] “As regras do ‘stare decisis’ e a natureza vinculante do precedente são conceitos fundamentais no sistema jurídico dos Estados Unidos. ‘Stare decisis’ é um termo (sic) latino que tecnicamente significa ‘deixe como está’; o sujeito oculto da sentença é o precedente ou casos decididos anteriormente. Constitui também a tendência de uma Corte de seguir a corrente adotada por cortes anteriores em questões legais semelhantes quando apresentam fatos materiais similares. Deste modo, os casos decididos anteriormente formam um conjunto de precedentes que vinculam as cortes em decisões subsequentes. Elas tendem a seguir a corrente adotada em casos anteriores, mesmo que não alcancem o mesmo resultado previsto em um primeiro momento” (FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.76).
[9] O termo overruling significa o ato de sobrepor uma decisão. Toni M. Fine, após reforçar que a tradição formada em torno da ideia do stare decisis é consolidada nos Estados Unidos, porém não tem caráter absoluto, cita esclarecedora declaração da Suprema Corte do seu país, proferida por ocasião do julgamento do caso Ring v. Arizona: “A doutrina do ‘stare decisis’ é de fundamental importância para a ‘legalidade material’ (‘rule of law’), (mas) nossos precedentes não são sacrossantos. Já sobrepusemos decisões anteriores nas quais a necessidade e a propriedade de fazê-lo foram definidas” (FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha. São Paulo: Martins Fontes, 2011, p.84).

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