Opinião

Por um mínimo de ordem no caos: colaboração premiada e improbidade

Autor

  • André Portugal

    é advogado sócio do Klein Portugal mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra e professor de Teoria da Decisão do FAE Centro Universitário.

27 de julho de 2018, 6h57

Entre as conquistas mais importantes do Iluminismo, uma das mais corriqueiramente festejadas é a consolidação da ideia de Estado de Direito, que, grosso modo, pode ser definida como a vinculação do Direito e, logo, da atuação do Estado a uma pretensão de racionalidade.

Essa pretensão de racionalidade, ela mesma, funda-se em razões: porque todo ser humano residente de uma dada territorialidade é, claro, uma pessoa, deve ser tratado como tal, não como um objeto à livre disposição do Estado ou de quem quer que seja. Todo ato administrativo deve partir desse pressuposto.

E, naturalmente, não há racionalidade sem um mínimo de previsibilidade e estabilidade, e vice-versa: não à toa, a ideia mesma de Estado de Direito traz consigo a concepção mesma de segurança jurídica.

Resumindo-a de modo muito simples, a segurança jurídica é, tanto quanto possível, um estabilizador de expectativas que os cidadãos têm no modo de atuação do Estado. Se se previu ou decidiu, até hoje, que a conduta “A” é permitida, não se pode, sem cumprir um ônus argumentativo tão rigoroso quanto possível, decidir-se que a mesma conduta, praticada por um dado sujeito, seria vedada.

Se não consigo prever, com razoável segurança, quais as consequências jurídicas de uma decisão que pretendo tomar, seja porque há decisões conflitantes de tribunais diversos sobre aquele tema, ou dentro de um mesmo tribunal, ou mesmo dentro da própria Suprema Corte do país, seja porque há a impressão de que simplesmente a interpretação e a gestão do caso se modificarão de acordo com quem seja o réu, haverá qualquer coisa que não propriamente segurança jurídica e, logo, Estado de Direito.

Embora, sozinha, não seja garantia de uma sociedade melhor, a segurança jurídica permite, em qualquer caso, que algum sentido seja mutuamente compartilhado e, logo, que uma vida em comum possa florescer. Permite, também, que indivíduos não sejam tratados como meros objetos, ao completo alvedrio do arbítrio de agentes do Estado.

Esse mínimo de racionalidade e segurança jurídica, portanto, é pressuposto do próprio Direito, que inexiste onde impera o arbítrio, e, naturalmente, existe em menor medida conforme este se amplie.

Que o Brasil tem sido marcado por forte insegurança jurídica, em áreas as mais diversas, parece ser um consenso. No mínimo, de qualquer forma, há uma impressão generalizada nesse sentido.

Mas em uma área em especial, e num tema específico dela, a insegurança efetivamente prevalece. Falo do Direito Administrativo e, especialmente, das implicações dos acordos de colaboração premiada e de leniência em ações cíveis de improbidade e em representações ou processos administrativos de órgãos estatais.

Muito poderia ser dito sobre as transformações, não raras vezes açodadas e carentes de adequação constitucional ou mesmo ao sistema jurídico brasileiro, intentadas pelos defensores do que se pode chamar de um Direito pós-"lava jato", cujos principais rebentos são os acordos de colaboração premiada e de leniência. Não é esse o objetivo deste texto.

Quanto aos acordos de colaboração, de qualquer forma, na medida em que possuem previsão legal (Lei de Organizações Criminosas) e não me parecem ter qualquer inconstitucionalidade em si, eles efetivamente passaram a integrar o nosso sistema jurídico. É preciso, pois, saber trabalhar com eles e aprimorá-los no que for necessário.

Esse aprimoramento, contudo, deve levar em conta não somente, nem principalmente, a efetividade das investigações, mas, pelo contrário, os direitos dos próprios colaboradores e daqueles por estes delatados.

Afinal de contas, tais acordos não são senão negócios jurídicos (contratos) celebrados por um cidadão, parte natural e inevitavelmente mais fraca, e o Estado, e seu objeto é a definição de uma dada punição aos atos ilícitos confessados pelo colaborador, mediante a entrega de provas e informações reputadas relevantes. O objetivo desse aprimoramento, portanto, deve se concentrar na construção de regras que evitem que o colaborador, que não deixa de ser uma pessoa, seja tratado como um objeto nas mãos do Estado, pouco importando quão nobres sejam os fins propugnados por seus agentes.

E, nesse sentido, o primeiro desafio recentemente encontrado por colaboradores diz respeito, precisamente, à extensão dos efeitos dos acordos de colaboração. Não foram raros os casos em que, embora homologado o acordo na esfera criminal (por exemplo, com o Ministério Público Federal), foram ajuizadas ações civis públicas de improbidade administrativa no âmbito estadual contra o colaborador, tendo por base os mesmos fatos que foram objeto do acordo. Ou, então, representações em tribunais de contas ou mesmo ações civis públicas ajuizadas por outros órgãos, tais como a AGU ou as procuradorias-gerais dos estados.

Em parte, isso é efeito do açodamento com que as alterações têm sido feitas e falta de uma completa verificação das características do sistema jurídico brasileiro: a LIA, por exemplo, veda, em seu artigo 17, parágrafo 1º, que transações sejam realizadas em ações de improbidade.

Ainda assim, não é difícil perceber que, nestes casos, o próprio fato, público e notório, de que se trata o réu de um colaborador, com acordo já homologado, praticamente aniquila qualquer chance de defesa de mérito em seu favor: a pecha de delator, de confessor daqueles mesmos fatos, não o abandona, ainda que isso jamais venha a ser considerado pelo magistrado que o vier a julgar.

O colaborador, em suma, a despeito de ter entregue ao Estado, por meio de um de seus órgãos, provas e cumprido todas as suas obrigações entabuladas no acordo de colaboração, vê-se surpreendido com novas ações ou procedimentos contra si, ajuizadas pelo mesmo Estado, mas por outro de seus órgãos, requerendo a indenização por aqueles mesmos danos que ele julgava ter reparado. É convertido em um objeto à absoluta disposição do Estado.

Tais situações, como mencionei, têm acontecido aos montes, e um primeiro e mais fácil passo para, ao menos, diminuir seus riscos, é prever, como cláusula no próprio acordo, que a multa nele prevista terá o condão de indenizar, integralmente e não só na esfera criminal, todos os danos causados pelos fatos narrados pelo colaborador. É importante, além disso, que haja cláusulas segundo as quais qualquer uso das provas, direto ou indireto, por outros órgãos seja condicionado à aceitação integral dos termos do acordo, especialmente no que toca à responsabilização.

Não raras vezes, o acordo celebrado com um determinado órgão pode gerar a insatisfação de vários outros, especialmente no que diz respeito à destinação da indenização ou mesmo aos valores ali entabulados.

Mas me parece que, a menos em casos de negócios jurídicos efetivamente nulos, esta não deve ser uma preocupação do colaborador, que celebrou com o Estado contrato que, por todas expectativas até então geradas, é plenamente válido, e legitimamente passou a acreditar que todos os danos já teriam sido efetivamente reparados.

Levada à exaustão, uma tal situação, porque altera completamente as expectativas dos potenciais colaboradores, pode mesmo comprometer o instituto dos acordos de colaboração.

De toda maneira, um passo mais ambicioso e certamente mais difícil e demorado envolveria, nos acordos, a inclusão de todos os órgãos que, com razoabilidade, se julgassem competentes para tanto, tal como se deu no acordo de leniência recentemente celebrado pela agência de publicidade MullenLowe Brasil.

Caso isso não seja possível, deve caber ao órgão responsável pelo acordo a manifestação combativa nos autos das ações e representações intentadas por outros órgãos contra o colaborador, pugnando pelo reconhecimento de que o ressarcimento já fora efetuado. Ainda assim, contudo, o colaborador ficaria à mercê de decisões judiciais em cada caso, já que não há propriamente um entendimento consolidado nesse sentido.

De modo que o desejado aprimoramento, a rigor, deverá vir mesmo do Poder Legislativo. Deve-se regulamentar, de maneira detalhada, a competência para a celebração de tais acordos, bem como os efeitos do ressarcimento estabelecidos em seus termos. Outro grande passo rumo a uma situação de efetiva segurança jurídica, por fim, dependeria da revogação expressa do artigo 17, parágrafo 1º, da LIA, que veda as transações em ações de improbidade, já que a regulamentação dos acordos de leniência, destinados propriamente às pessoas jurídicas, é insuficiente para estabilizar as expectativas com relação a essas ações.

O Brasil, exceto em seu texto constitucional marcadamente simbólico, para usar os termos de Marcelo Neves[1], não pôde ou não quis recepcionar todas ou mesmo a maioria das promessas da modernidade. O Estado de Direito, com a segurança jurídica que ele pressupõe, é uma delas. O tratamento de seus cidadãos — quaisquer cidadãos — como pessoas é outra. Não há direito ou sociedade que sobreviva sem isso.


[1] NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013

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