Opinião

Ainda o caso Herzog — e a resposta de Toron ao meu texto

Autor

  • Marcio Sotelo Felippe

    é advogado e ex-Procurador Geral do Estado (SP). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direto publicou Razão Jurídica e Dignidade Humana Brasil em Fúria (em coautoria) e Moral e Direito (coleção Para Entender Direito).

26 de julho de 2018, 11h57

Alberto Torón responde ao meu texto afirmando que eu parti de uma “premissa errada” e estampa isso no título. Teria eu dito que o Brasil foi condenado no caso Herzog por recusar a jurisdição internacional, quando na verdade foi condenado a apurar no âmbito do seu Direito interno agentes torturadores e seus mandantes.

Meu texto reproduz, entre aspas, trecho da sentença da Corte Interamericana: “Seguindo sua jurisprudência constante, a Corte reiterou que a obrigação de investigar e, nesse caso, julgar e punir os responsáveis adquire particular importância ante a gravidade dos delitos cometidos e a natureza dos direitos lesionados. Por isso, concluiu que o Estado não pode invocar: (i) prescrição; (ii) o princípio ne bis in idem; (iii) leis de anistia; assim como (iv) qualquer disposição análoga ou excludente de responsabilidade similar, para eximir-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis”.

Quanto à jurisdição universal, significa que se faculta a qualquer Estado a persecução criminal de um acusado de crime contra a humanidade, se encontrá-lo em seu território, e desde que o Estado em cuja jurisdição se deu a conduta não tenha agido. Por isso afirmei que crimes contra a humanidade estão sujeitos à jurisdição universal “se o Direito interno não opera”.

O Brasil foi condenado por não cumprir normas de Direito Internacional a que está submetido ao não investigar e eventualmente punir torturadores e assassinos da ditadura militar. Está submetido a essas normas tanto pelas obrigações que assumiu por um ato de soberania, aderindo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos e reconhecendo a competência da Corte Interamericana (jus dispositivum), e, portanto, por um ato de vontade do qual não pode se furtar quando lhe convém (pacta sunt servanda), quanto por normas de jus cogens, imperativas, que vinculam independentemente da vontade do sujeito de direito.

A minha crítica ao ponto de vista de Toron consistiu exatamente no fato de que desconsiderou tanto o Direito dispositivo quanto o Direito cogente internacional, que confluíram.

Em sua resposta ao meu texto, incide no mesmo equívoco ao afirmar: “Meu artigo, assim como meu depoimento na Corte Interamericana de Direitos Humanos, tinha o objetivo, exclusivo, de relatar os fatos a partir do Direito interno”.

Ora, trata-se exatamente disso. Não é possível tratar o tema apenas “a partir do Direito interno”. Se fosse, toda a construção universal dos crimes contra a humanidade desabaria. Se fosse, as forças aliadas que ocuparam a Alemanha no pós-guerra estariam obrigadas a reconhecer as mais torpes e bárbaras leis da história humana. Se fosse, não teria havido o Tribunal de Nuremberg e estaríamos atolados em nenhum patamar civilizatório. O tema é de Direito Penal Internacional e por isso jamais pode ser analisado apenas à luz da lei penal interna.

Toron reproduziu em linhas básicas a defesa do Estado brasileiro perante a CIDH e construiu seu texto apenas com isso. Ignorou toda a fundamentação da sentença da corte que rebateu, um a um, exaustivamente, os argumentos do Estado, esgotou o assunto em 103 páginas com abundantes precedentes. A sentença é um tratado sobre o estado atual da matéria. Meu artigo traz essa informação ao leitor, mostra os argumentos da corte e sintetiza a questão.

Jus cogens
Ainda que o Brasil não tivesse aderido à Convenção Americana e não estivesse submetido por um ato de sua própria soberania à Corte Interamericana, seria obrigado a investigar e punir os crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar porque está vinculado, como sujeito de direito que integra a ordem jurídica internacional, a normas cogentes, imperativas:

“Essa obrigação internacional está seguramente consolidada no Direito Internacional, em um processo que teve início ainda no fim da Primeira Guerra Mundial, com a assinatura do Tratado de Sevrés, pela Turquia e pelas potências aliadas, cujo artigo 230 previa a entrega de quaisquer pessoas que tivessem participado do massacre da minoria armênia dentro do território do Império Turco, durante o período de guerra, a tribunais internacionais que viessem a ser instituídos pela Liga das Nações” (Marlon Alberto Weichert, Justiça Transicional, Coleção Para Entender Direito, Estúdio Editores, 2015).

Essa obrigação ficou definitivamente estabelecida com os julgamentos de Nuremberg. Desde então não cabe mais invocar tipicidade ou retroatividade, mesmo porque, como consta da sentença da corte:

“Um crime contra a humanidade não é um tipo penal em si mesmo, mas uma qualificação de condutas criminosas que já eram estabelecidas em todos os ordenamentos jurídicos: a tortura (o seu equivalente) e o assassinato/homicídio. A incidência da qualificação de crime contra a humanidade a essas condutas tem como efeito impedir a aplicação de normas processuais excludentes de responsabilidade como consequência da natureza de jus cogens da proibição dessas condutas. Não se trata de um novo tipo penal”.

O artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados dispõe que “é nulo o tratado que, no momento de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional da mesma natureza”.

Vejamos ainda alguma doutrina para esclarecer o ponto:

“Existem muitas regras de direito internacional consuetudinário que se situam em uma categoria superior e que não podem ser deixadas de lado ou modificadas pelos Estados contratantes; é mais fácil ilustrar essas regras do que defini-las. São regras aceitas expressamente por tratados ou tácitamente pelo costume, como necessárias para proteger os interesses públicos das sociedades ou para manter os padrões de moralidade pública reconhecidos por eles. Por exemplo, a pirataria é estigmatizada pelo direito consuetudinário internacional como crime, no sentido de que um pirata é considerado hostis humani generis e pode legalmente ser punido por qualquer Estado em cujas mãos ele caia. Pode haver alguma dúvida de que um tratado em que dois Estados concordam em permitir a pirataria em uma determinada área, ou contra os navios mercantes de um certo Estado seria nulo? Ou um tratado pelo qual dois aliados concordam em fazer a guerra por métodos que violam as regras consuetudinárias da guerra, como o dever de não matar o inimigo vencido?” (Arnold D. Mcnair, apud Bassouini, Cherif, Crimes Against Humanity, Cambridge University Press, 2011).

“Existem certas formas de ação ilegal que nunca podem ser justificadas (…) São atos que não são apenas ilegais, mas malum in se, como certas violações dos direitos humanos, das leis da guerra, e outras normas que tem a natureza de jus cogens — isto é, obrigações de caráter absoluto, que não dependem do cumprimento correspondente por outros, mas são exigíveis em todas as circunstâncias” (Gerald Fitzmaurice, apud Bassouini, Cherif, idem).

Jus dispositivus
No plano da convencionalidade, reconhecido que a tortura e o assassinato de Vladimir Herzog foi um episódio dos crimes contra a humanidade praticados pela ditadura militar, imprescritíveis e insuscetíveis de anistia, tem-se que a partir da adesão do Brasil à Convenção Americana e do reconhecimento da competência da CIDH, em 1992 e 1998, respectivamente, a omissão do Estado ao não investigar e ao não apurar responsabilidades violou as obrigações que assumiu por meio desses atos. Conforme a dicção da CIDH na sentença Herzog, ficaram feridas “as obrigações internacionais do Brasil, decorrentes do direito internacional, particularmente as dispostas nos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, em relação aos artigos 1.1 e 2 do mesmo instrumento” (Garantias e proteção judicial).

Toron afirma que a democracia deve respeitar as formas instituídas pelo Direito legitimamente posto. Não é outra coisa o de que trato aqui, o que escrevi no artigo anterior e escrevo neste. Respeitar as formas jurídicas construídas pela consciência democrática universal, tanto mais democráticas quanto mais destinadas a coibir ameaças à humanidade, preservar minorias étnicas, políticas, sociais, preservar o humano em sua integralidade e pluralidade. Direitos e garantias fundamentais têm justamente esse sentido e foram construídos para proteger os seres humanos, não para destroçá-los, permitindo que criminosos se autoanistiem quando assumem o Estado porque mataram e torturaram os indivíduos que deviam proteger.

Quando essas formas e figuras jurídicas que protegem a humanidade não são as do Direito interno, há um problema com a democracia, que não significa respeito em abstrato a formas jurídicas. Se assim fosse, qualquer ditadura poderia dizer-se democracia. Até mesmo Pinochet respeitou formas jurídicas e fez um plebiscito para legitimar-se. Hitler governou com poderes que estavam previstos na Constituição de Weimar, que nunca foi revogada. A prescrição, assim como o ne bis in idem, aplicados a crimes contra a humanidade, fere as obrigações assumidas pelo Estado brasileiro perante o sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, como a sentença da corte demonstra abundantemente. A Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra Humanidade não criou Direito novo. Teve caráter apenas declaratório porque já era norma cogente de Direito Penal Internacional e é irrelevante a adesão formal de qualquer Estado. Mais uma vez, fez-se ausente a dialética na argumentação de Toron porque repisa os mesmos argumentos sem responder aos contrários.

Quanto ao fantasmagórico “acordo” que teria resultado na Lei de Anistia, temos aqui uma divergência factual. Sendo assim, a única forma de resolver isso é recorrer a dados empíricos. O Pacto de Moncloa, que pôs fim ao regime franquista, pode ser demonstrado empiricamente. Sabemos que a negociação se deu no Palácio de Moncloa, em Madrid, que foram assinados em 25 de outubro de 1977 e quem os assinou. Quanto ao nosso “acordo”, ninguém ainda se dignou a esclarecer à sociedade brasileira quem foram os negociadores, em que lugar se deu, com que autoridade e com mandato de quem e o que rigorosamente foi acordado. No entanto, essa fantasmagoria, afirma-se, ainda nos governa à guisa de “norma fundamental” de todo o ordenamento jurídico, a nós e às futuras gerações, como cláusula pétrea.

Repito que, ainda que tivesse existido, seria juridicamente irrelevante. A questão é de fundamental importância, no entanto, porque diz respeito ao direito à memória e à verdade do povo brasileiro e das futuras gerações.

No texto anterior transcrevi parte de artigo de Paulo Sergio Pinheiro sobre o assunto publicado logo após o julgamento da ADPF 153, que julgou válida a Lei de Anistia, utilizando, entre outros, o argumento do “acordo”. Paulo Sergio esclarecia que a lei foi aprovada com 206 votos do partido da ditadura contra 201 da oposição consentida e objeto de manifestações populares contrárias. Nenhum dos 201 parlamentares oposicionistas foi avisado de que havia um acordo e tampouco o povo que foi às ruas rejeitar a lei.

Também logo após o julgamento da ADPF 153, Maria Inês Nassif publicou no Valor Econômico artigo no mesmo sentido, baseado na tese de doutorado defendida em 2003 por Heloísa Amélia Greco no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia. Transcrevo algumas passagens.

“Desde o envio do projeto ao Congresso, em 27 de junho, até sua aprovação, 56 dias depois, imperou o ato de vontade dos militares, acatado pelos civis que formavam, no parlamento, uma maioria destituída de coragem e vontade”.

“A Comissão Mista do Congresso Nacional que analisou a proposta foi escolhida a dedo. Dos 23 integrantes, 13 eram incondicionalmente fiéis ao governo. O presidente da Comissão, o arenista Teotônio Vilela, dissidente e partidário de uma anistia ampla, somente exerceria o seu voto no caso de empate, o que jamais aconteceu. O relator, Ernâni Satyro, seguiu à risca o roteiro traçado para ele. As emendas aceitas em seu substitutivo foram definidas no Ministério da Justiça, em reuniões com o ministro Petrônio Portela, o líder da maioria no Senado, Jarbas Passarinho, o líder da maioria na Câmara, Nelson Marchezan e o presidente do partido, José Sarney. Todas as votações da comissão cravavam um inevitável placar de 13 a 9”.

“O projeto do governo, aprovado pelo Congresso em 22 de agosto, foi uma obra solitária do governo militar, referendada por uma maioria parlamentar bovina, totalmente submissa ao poder”.

Para cúmulo e remate, vejamos o que teria sido esse acordo ectoplasmático. Figueiredo vetou a expressão “e outros diplomas legais”, com o que foram anistiados apenas os punidos por atos institucionais. Esse veto excluiu militares, sindicalistas e estudantes punidos por sanções administrativas e pelo Decreto 477 (que estabelecia sanções no âmbito dos estabelecimentos de ensino).

Os crimes que a ditadura denominava “de sangue”, terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal, foram excluídos da anistia. Com isso, permaneceram presos os condenados que pegaram em armas, que imediatamente após a lei fizeram greve de fome. Mas perdoados foram os torturadores e assassinos. Estranho acordo esse em que uma parte concorda em permanecer na cadeia para que a outra parte proteja assassinos e torturadores.

Por fim, Toron afirma, corretamente como democrata e humanista que é, com uma trajetória que a advocacia brasileira respeita, que a repressão da ditadura foi “ilegal e atroz”. No entanto, diz que foi “localizada” e que havia “abissal diferença” entre ela e os crimes praticados em Ruanda e nos Balcãs.

Observo o risco de essa noção ressuscitar a infeliz expressão da Folha de S.Paulo, “ditabranda”, com a qual ela tentou acertar-se com sua má consciência por ter cedido seus veículos para que a Operação Bandeirantes capturasse — e matasse e torturasse — os adversários do regime. A ditadura deixou 430 mortos ou desaparecidos e 1.800 torturados, segundo a Comissão Nacional da Verdade. Ditaduras não são mais ou menos ditaduras, não existem “ditabrandas” nem meia ditadura. Quanto aos crimes contra a humanidade, não há como passar a mensagem aos governantes ou ditadores de hoje ou de amanhã que 430 mortos e 1,8 mil torturados sejam uma “nota de corte” abaixo da qual não correm o risco de punição.

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