Opinião

País da impunidade poderá atingir 1,5 milhão de encarcerados em 2025

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24 de julho de 2018, 15h52

Os dados e o diagnóstico:
O diagnóstico sobre o Sistema Prisional Brasileiro, apresentado pelo ministro extraordinário da Segurança Pública, Raul Jungmann, revela que a população carcerária que hoje, segundo último levantamento até 2016, é de cerca de 750 mil presos — terceira maior do planeta — pode chegar a 1,5 milhão em 2025.

A taxa de aprisionamento de 352,6 presos a cada 100 mil habitantes está entre as mais elevadas, no mundo a média é de 144 para cada 100 mil habitantes. Com um déficit de mais de 350 mil vagas a população carcerária vem crescendo a cada ano. Outro dado bastante preocupante — segundo o Infopen de junho de 2016 — é que cerca de 40% da população carcerária é composta de presos provisórios (que não foram condenados definitivamente), situação que tem se agravado com a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a execução provisória (antecipada) da pena.

Os jovens entre 18 a 29 anos representam 55% da população carcerária brasileira.

A população carcerária é formada em sua grande maioria por homens, mas o encarceramento feminino tem aumentado vertiginosamente. Em junho de 2016, a população prisional feminina atingiu a marca de 42 mil mulheres privadas de liberdade (Infopen), o que representa um aumento de 656% em relação ao total registrado no início dos anos 2000, quando menos de 6 mil mulheres se encontravam no sistema prisional.

Em relação a raça/cor, segundo o último levantamento do Infopen, 64% da população prisional é composta por pessoas negras.

No que diz respeito a escolaridade verificou-se, pelos últimos dados de 2016, que 51% dos encarcerados não completou o ensino fundamental.

Entre os homens, o crime de tráfico de drogas representa 28% das pessoas condenadas ou que aguardam julgamento. Roubo e furto somam 37%. Já em relação as mulheres, a condenação por tráfico representa 62%.

Em relação aos crimes previstos no Código Penal, verifica-se que do total, arredondado, de 587 mil presos (condenados ou aguardando julgamento), em torno de 83 mil homens estão presos pela prática de crimes contra a pessoa (homicídio, lesão corporal, violência doméstica etc.); 270 mil por crimes contra o patrimônio (roubo, furto, extorsão etc.); 25 mil, é o número de homens presos por crimes contra a dignidade sexual (estupro, atentado violento ao pudor, estupro de vulnerável etc.).

Já no que se refere aos crimes previstos na legislação especial, notadamente em relação as drogas (Lei 6368/76 — já revogada, e a Lei 11.343/06), quase 156 mil homens estão presos pelos crimes de tráfico, associação para o tráfico etc.

Note-se que o total de presos por tráfico e afins é praticamente o dobro dos presos por todos os crimes contra a pessoa previstos no Código Penal.

Conforme já registrado, em relação as mulheres os crimes relacionados ao tráfico, correspondem a 62% das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016, o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional por crimes ligados ao tráfico. Entre as tipificações relacionadas ao tráfico de drogas, o crime de Associação para o tráfico corresponde a 16% das incidências e o crime de Tráfico internacional de drogas responde por 2%, sendo que o restante das incidências se refere à tipificação de tráfico de drogas, propriamente ditas.

O discurso da impunidade:
A prisão continua — e ninguém pode negar — sendo há mais de dois séculos a principal forma de punição para os “perigosos”, “vulneráveis”, “estereotipados” e “etiquetados”, enfim, para os que são criminalizados (criminalização primária e secundária) em razão de um processo de estigmatização, segundo a ideologia e o sistema dominante.

Não obstante, hodiernamente, tem sido comum recorrer ao “discurso contra a impunidade” para fomentar a necessidade de incrementar o Estado penal em detrimento do Estado social. No dizer de Ricardo Genelhú “o discurso contra a impunidade tem servido de motivo para uma suposta restauração da “segurança social” quando na verdade, serve ela mesma, per se, é de desculpa para a perseguição ao “outro” (…)”.[1]

Apesar de todas as descobertas e avanços da humanidade a indústria do encarceramento, alimentada pela indústria do crime, continua funcionando a todo vapor, em pleno século XXI.

A cultura do encarceramento é responsável pelo substancioso aumento da população carcerária — superpopulação prisional — que se materializa através da criação de novos tipos penais, cerceamento de direitos e garantias, prisão com primeira opção etc.

Em alerta aos punitivistas, Tiago Joffily e Airton Gomes Braga já destacaram que “o problema é que a imaginada correlação entre encarceramento, de um lado, e redução da criminalidade, de outro, nunca foi demonstrada empiricamente. Ao contrário, as mais recentes e abrangentes pesquisas empíricas realizadas sobre o tema apontam para a inexistência de qualquer correlação direta entre esses dois fenômenos, havendo praticamente consenso entre os estudiosos, hoje, de que o aumento das taxas de encarceramento pouco ou nada contribui para a redução dos índices de criminalidade”.[2]

Não se pode negar que o discurso midiático — criminologia midiática — da impunidade, contribui sobremaneira para o avanço do Estado autoritário e para a cólera do punitivismo.

Atingidos pela criminologia midiática e pelo discurso da impunidade, políticos tendem a apresentar projetos de leis com viés autoritário, conservador e reacionário. Já os juízes, tendem agir de igual modo quando usam e abusam das medidas repressoras e de exceção, como a prisão preventiva, transformando a medida excepcional em regra e em antecipação da tutela penal, ou quando fixam penas privativas de liberdade bem acima do razoável em nome de uma prevenção geral positiva e/ou negativa e do apelo à prevenção especial negativa — neutralização e incapacitação do infrator — em prejuízo dos princípios garantistas, notadamente, o da culpabilidade.

A questão das drogas e o encarceramento:
Pela análise dos dados e diagnóstico trazido pelo Infopen-2016, verifica-se que o crime de tráfico e afins — além do abissal número de presos provisórios — é um dos principais vetores para o encarceramento em massa. Razão, mais que suficiente, para que a atual política de drogas seja repensada e revista.

O número de pessoas aprisionadas e condenadas por “tráfico de drogas” se deve muito a falta de critérios objetivos para diferenciar o tráfico do uso pessoal, como a quantidade de drogas. A Lei 11.343/2006 em vigor desde outubro de 2006 trata com extremo rigor aqueles que são criminalizados como “traficantes” impossibilitando uma série de medidas que poderiam levar ao desencarceramento.

Pesquisa do Núcleo de Estudo de Violência da USP de 2012 apontou que em 62% dos casos de flagrante por tráfico em São Paulo a pessoa era presa com menos de 100 gramas da droga; 80,6 % dos detidos eram réus primários.

É forçoso destacar que o que é considerado tráfico para alguns, no caso os mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou a autora da pesquisa (Mapa do Encarceramento – 2014) Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. "A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras, por tráfico", disse a pesquisadora.

Importante observar que a grande maioria destes condenados por “tráfico” são na verdade usuários ou que fazem do comércio um meio para manter seu vício. O problema se agrava pelo fato da lei ser genérica o que fere inclusive o princípio da taxatividade dos tipos penais e, ainda, não diferenciar claramente o traficande do usuário ou de tratar com o mesmo rigor, pena mínima de 5 anos, pessoas que se encontram em escalas e situações distintas.

Sendo assim, visando a redução de danos, através de nova política de drogas propõe-se: 1) Que o Supremo Tribunal Federal (STF) imediatamente reconheça a inconstitucionalidade da criminalização do uso de drogas (todas as drogas); 2) Que de forma gradual seja descriminalizado o tráfico de drogas; e 3) Que enquanto não for descriminalizado o tráfico que se estabeleça critérios objetivos em relação a quantidade para uso próprio, sempre levando-se em consideração o tipo de droga.

Conclusão:
Segundo os dados extraídos do Infopen-2016 — últimos dados atualizados sobre o Sistema Penitenciário — o Brasil, hoje terceira maior população carcerária do planeta, caminha a passos largos para chegar a simbólica cifra de 1 milhão de presos.

O sistema punitivo tornou-se uma máquina de produzir a criminalidade e está longe de trazer alguma espécie de paz social, verdadeiro paradoxo, um sistema seletivo, repressor e estigmatizante. Sistema que humilha e controla capaz de transformar potencialmente seus destinatários em seres humanos mais violentos, mais perversos, como o próprio sistema. Uma realidade muito distante da sociedade que o recebe sem a mínima chance de reintegração social. Muitas das condutas definidas como criminosas é um fenômeno social inevitável, fruto de uma sociedade injusta e desigual. O sistema de justiça punitiva, comprovadamente, não educa e nem reintegra, pelo contrário, avilta e degrada.

É necessário que a demagogia seja colocada de lado e que haja um enfrentamento responsável para conter o avanço do Estado Penal e uma política que seja reduzido, drasticamente, a população carcerária, composta em sua grande maioria – como sói acontecer – por jovens, negros, semianalfabetos e pobres, precisamente os mais vulneráveis da população brasileira.

Os dados do Infopen não deixam dúvidas sobre o caráter repressor, estigmatizante e seletivo do perverso Sistema Penal. Sendo certo, como já profetizou Hassemer, que a melhor política criminal é a sua substituição pela política social.

Por tudo, espera-se dos novos legisladores e do próximo presidente (a) da República que assumam o compromisso, em nome do próprio Estado Constitucional e da Democracia que se almeja, de enfrentarem o “encarceramento em massa” como um problema de Estado, que necessita de medidas corajosas, que surtam efeitos a curto e médio prazo, para reverter a odiosa cultura do encarceramento.


[1] GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015.

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