Constituição e Poder

Direito fundamental à educação demanda garantia de seu financiamento

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

23 de julho de 2018, 11h17

Spacca
Superando o arquétipo clássico do constitucionalismo liberal oitocentista e sem recair nas propostas totalitaristas da primeira metade do século XX, a Constituição da República de 1988 se notabilizou pela estrutura típica do constitucionalismo social e democrático do período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial.

Isso significa que, para além dos direitos de defesa (direitos fundamentais individuais, garantias da liberdade e separação dos Poderes), a Carta de 88 adotou claros mandamentos em torno de direitos fundamentais de índole social, motivados pela busca de igualdade material na construção de um projeto que buscou conciliar a proteção da livre iniciativa e do direito de empresa com melhor distribuição de riquezas.

É assente e praticamente tranquilo na atual doutrina e jurisprudência que o direito à educação (artigo 6° e artigo 205 CF/88) figura dentre os direitos fundamentais sociais reitores na Constituição brasileira[1], demandando forte atuação prestacional positiva pelos poderes políticos e, caso necessário, intervenção judicial a fim de assegurar sua concretização.

Essa característica se torna um verdadeiro “trunfo” do cidadão em face do Estado, conforme lembra Jorge Reis Novais a partir da ideia originária de Dworkin[2]. Isso porque, nas palavras de Novais:

“Já que, primariamente, os direitos fundamentais são posições jurídicas individuais face ao Estado, ter um direito fundamental significará, então, ter um trunfo contra o Estado, contra o Governo democraticamente legitimado, o que, em regime político baseado na regra da maioria, deve significar, a final, que ter um direito fundamental é ter um trunfo contra a maioria, mesmo quando esta decide segundo os procedimentos democráticos instituídos”[3].

Certamente, esse “trunfo” jurídico não está em contraposição, mas antes integra a própria construção da chamada democracia constitucional, sob pena de a democracia se tornar alguma espécie de ditadura da maioria.

Se o direito fundamental à educação é compreendido em sua dimensão coletiva, e não meramente individual, a garantia de sua eficácia e concretização demanda vinculação orçamentária e financeira, ainda que vinculações desse tipo devam ser evitadas e aceitas apenas em casos muito específicos, sob pena de retirar do administrador público a possibilidade de atuar de acordo com parâmetros democráticos.

Seguindo essa linha de raciocínio, a vinculação orçamentária e a garantia de recursos para a educação se justificam por, ao menos, três motivos substanciais: i) o direito à educação em dimensão coletiva se constitui um “trunfo” em face da política ordinária; ii) a eficácia do direito à educação é condição estruturante na realização do projeto civilizatório de nação previsto na Carta de 88; e iii) os resultados obtidos com o atendimento ao direito à educação apenas são aferíveis ao longo do tempo, às vezes em prazos geracionais que não podem depender de pretensões políticas eleitorais imediatistas.

Nesse sentido, é plenamente justificável o mandamento constitucional previsto no artigo 212 da Constituição brasileira, determinando que a União aplique ao menos 18%, e os estados e municípios, ao menos 25% da receita proveniente de impostos, anualmente, na manutenção e desenvolvimento do ensino.

Contudo, a exigência de eficácia do direito fundamental à educação não se restringe a esses parâmetros. Um exemplo importante de política pública que necessita assumir caráter permanente reside no Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb).

Instituído no Brasil por meio da Emenda Constitucional 53, de 2006, o Fundeb representou um grande avanço para a educação pública. Ele é formado, praticamente em sua totalidade, por recursos provenientes de impostos e transferências, vinculados à educação por força do disposto no artigo 212 da Constituição Federal.

Os recursos que compõem o Fundeb advêm de oito fontes, em um percentual de 20% de cada um, dentre os quais se destacam os Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM), o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA). A União é responsável pela complementação dos recursos no percentual de 10% do valor total do fundo nos estados e municípios.

Apesar dos grandes ganhos registrados após a sua criação, o prazo para vigência do Fundeb se encerra em 2020. Nos últimos anos, houve algumas tentativas para prorrogá-lo ou torná-lo permanente, porém nenhuma delas prosperou.

Atualmente, encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 15/2015, que busca tornar o Fundeb permanente e impede que haja retrocessos na educação, como supressão ou redução de direitos.

A PEC tem sido amplamente debatida por uma comissão especial criada com essa finalidade e concluiu que, além de tornar o Fundeb permanente, é necessário que haja um complemento do financiamento da educação por parte da União. A sugestão é que esse aumento seja gradual, até alcançar um percentual mínimo de 30%, o que tem encontrado muita resistência por parte do governo federal.

As discussões avançam, mas, a título de conclusão, é preciso que o financiamento da educação, incluindo a remuneração dos profissionais, seja pleno e não fique à mercê de decisões políticas, pois aqui se trata de um direito fundamental enquanto trunfo coletivo em face das deliberações majoritárias.


[1] Para um estudo aprofundado sobre o direito à educação na Constituição de 88, conferir: MALISKA, Marcus Augusto. O direito à educação e a Constituição. Porto Alegre: S. A. Fabris, 2001.
[2] NOVAIS, Jorge Reis. Direitos fundamentais: trunfos contra a maioria. Coimbra: Coimbra Editora, 2006. p. 17.
[3] Ibidem, p. 17-18.

Autores

  • é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli studi Roma Tre. É ex-presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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