Segunda Leitura

A insegurança jurídica sobre o tratamento legal da maconha

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de julho de 2018, 10h33

Spacca
O uso da maconha avança na informalidade, porém o tratamento legal da matéria, sob todos os seus vieses, continua indefinido, criando insegurança jurídica aos que se envolvem com a matéria.

Ela, tal qual as drogas em geral, não faziam parte das preocupações do legislador brasileiro. Com efeito, o Código Criminal do Império, que entrou em vigor através de Lei de 16 de dezembro de 1830[i], não continha previsão alguma a respeito, nem sequer fazia menção a crimes contra a saúde.

Da mesma forma o Decreto 847, de 11 de outubro de 1890, editado após a Proclamação da República[ii]. Este tinha referência aos crimes contra a saúde, dos quais dispunha no Capítulo III, artigos 156 a 164. Muito embora severo quanto a práticas como o uso de “talismans e cartomancias para despertar sentimentos de odio ou amor” (art. 157), ele nada dispôs sobre o uso ou o comércio de entorpecentes.

Mas quando da edição do Código Penal de 1940[iii], o mundo havia mudado e o legislador fez expressa referência, no artigo 281, ao crime pelo uso de entorpecentes, de variadas formas, punindo-o com “ reclusão, de um a cinco anos, e multa, de dois a dez contos de réis”.

Anos depois, o Decreto-lei 385, de 1968,[iv] deu nova redação ao artigo 281, § 1º da lei penal, adicionando o inciso III, punindo o uso com o mesmo tempo de prisão que o tráfico, e multa de 10 a 50 vezes o maior salário-mínimo vigente no país. Sobreveio a Lei 6.368, de 1976[v], que separou em diferentes artigos o tráfico e o uso, punindo o segundo de forma bem menos severa, ou seja, seis meses a dois anos de detenção e multa. Finalmente, em 2006 entrou em vigor a Lei 11.343[vi], a que maior insegurança jurídica trouxe à matéria.

Sobre o uso de entorpecentes a nova lei foi particularmente branda. Sem coragem para tornar o fato atípico, acabou por fazê-lo por vias indiretas ao estabelecer, no artigo 28, incisos I a III, as sanções cabíveis: advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Ora, advertência é mero alerta, quase um conselho, que pode ou não ser aceita. Serviços à comunidade são, na maioria dos casos, um nada jurídico, porque não há servidores públicos encarregados de exercer fiscalização séria sobre a prestação. Comparecimento a programas ou cursos acabam caindo na mesma falta de estrutura do Estado.

Em caso de descumprimento das penas, segundo o § 6º do mesmo dispositivo, poderá o juiz admoestar o infrator e aplicar multa. Admoestar é o que se chamava de “dar um pito” e multa é penalidade inócua, porque não paga transforma-se em execução fiscal, que usualmente também não é quitada.

Mas, o problema maior está na indefinição do que é uso e o que é tráfico de entorpecentes. O primeiro foi implicitamente permitido. O segundo é punido severamente, cinco a quinze anos de reclusão e multa. Então, como é óbvio, todos os traficantes tentam demonstrar que são irremediavelmente viciados e se a quantidade da droga for expressiva, dirão que a compra foi a maneira de tê-la disponível por longo prazo.

Ainda. Como o artigo 33, § 3º dispõe que “oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem” é apenado com apenas seis meses a um ano de detenção e multa, óbvio que esta também é uma boa alternativa para quem se acha traficando.

O Instituto Igarapé fez uma tentativa válida de estabelecer quantidades que serviriam de orientação à magistratura, principalmente ao STF no julgamento do Recurso Extraordinário n. 635.659, que sustenta a inconstitucionalidade do crime de uso de drogas. Uma Comissão de Especialistas, focando nas drogas mais usadas, maconha, crack e cocaína, ofereceu três hipóteses alternativas como critérios de referência para consumo per capita.[vii] Para maconha em gramas, o cenário 1 é de 25 g, o 2 de 40 g e o 3 de 100g.

No entanto, a sugestão não foi levada em conta e a falta de critérios faz com que se um acusado estiver sob julgamento em um Juizado Especial Criminal, por possuir 50 gramas de maconha, pode ser considerado consumidor. No Juizado ao lado, traficante, tudo a depender de quem é o juiz e qual a sua visão sobre o assunto. O mesmo poderá ocorrer em outras instâncias e Tribunais, inclusive no STJ e no STF. Uma loteria jurídica.

A inércia legislativa poderia facilmente ser suprida pela jurisprudência dos Tribunais. Bastaria fixar os parâmetros em uma Súmula. Preferencialmente, no STJ. Mas, na ausência de definição por esta Corte Superior, também os TJs poderiam suprir a falta de critérios claros, ainda que houvesse o risco de posterior revogação da Súmula por entendimento diverso do STJ ou STF.

O uso medicinal da maconha para doenças com epilepsia e Parkinson, é outro aspecto que não avança. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, reconheceu a maconha como planta medicinal, incluindo-a na Lista Completa das Denominações Comuns Brasileiras (DCB).[viii] No entanto, isto não autoriza o plantio para fins medicinais que, nos Estados Unidos da América, é permitido em 29 estados e em Washington D.C.[ix]

No Brasil “a alternativa é manter a importação do insumo, um caminho mais caro, burocrático e com menor controle de qualidade, mas que já é permitido”.[x] Todavia, pessoas de baixa renda tem conseguido plantar em casa mediante autorização judicial. Noticia a mídia que “O juiz Silvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo concedeu salvo-conduto ao designer aposentado, Gilberto Castro (45 anos), para que ele possa plantar até 20 sementes de maconha por mês em sua casa sem sofrer ações de autoridades. Gilberto usa a erva no tratamento de esclerose múltipla”.[xi]

Finalmente, registre-se que o plantio da maconha envolve, ainda, interesses econômicos vultuosos. Uma verdadeira indústria desenvolveu-se nos Estados Unidos nas sete unidades federativas que admitem tal prática, inclusive para fins recreativos. Segundo a mídia, era esperado com a venda legal de maconha um investimento de “US $ 9,7 bilhões na América do Norte em 2017, de acordo com um relatório da Arcview Market Research”.[xii]

O mercado econômico é tão promissor que empresas que exploram o plantio de maconha já têm ações na Bolsa de Valores. Consta que “as ações da Tilray produtora canadense de cânabis, estrearam nesta quinta-feira (19) com alta de 32% na Nasdaq, o mais recente esforço da indústria da maconha para entrar no mercado financeiro convencional”.[xiii]

O tema tem muito mais a ser discutido. Aspectos de saúde pública, direito individual ao próprio corpo, direito social sobre os reflexos físicos e psicológicos dos usuários, vez que se refletem economicamente na Previdência Social, efeitos econômicos do uso da maconha por expressiva parcela da população, vez que uma das críticas é a de que os usuários ficam com reflexos mais lentos, aplicação (ou não) do pragmatismo norte-americano explorando economicamente o plantio e tantos outros.

Em suma, sem assumir qualquer posição definitiva sobre qualquer das facetas do tema ora exposto, sublinho a necessidade do Brasil fixar posição diante do tema. A omissão gera insegurança jurídica, decisões judiciais contraditórias e uso medicinal restrito a um pequeno grupo que pode promover a importação ou se valer do Poder Judiciário.

 

[i] BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-16-12-1830.htm. Acesso em 18/7/2018.

[ii] BRASIL. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 18//2018.

[iii] BRASIL. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em 18/7/2018.

[iv] BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0385.htm#art281. Acesso em 18/7/2018.

[v] BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6368.htm#art46. Acesso em 18/7/2018.

[vi]BRASIL. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11343.htm#art75. Acesso em 18/7/2018.

[vii] Disponível em: https://igarape.org.br/criterios-objetivos-de-distincao-entre-usuarios-e-traficantes-de-drogas-cenarios-para-o-brasil/. Acesso em 20/7/2018.

[viii] Revista Veja, 16/5/2017. Disponível em: https://veja.abril.com.br/saude/anvisa-reconhece-cannabis-sativa-como-planta-medicinal/. Acesso 20/7/2018.

[ix] Disponível em: https://www.thirdway.org/infographic/map-of-state-marijuana-legalization-laws. Acesso em 20/7/2018.

[x] Folha de São Paulo, Atraso da Anvisa em regular maconha frustra farmacêuticas. São Paulo: 17/7/2018, A17.

[xi] Disponível em: http://independente.jor.br/juiz-da-salvo-conduto-para-paciente-plantar-maconha-com-fins-medicinais/. Acesso em 20/7/2018.

[xii] Disponível em: https://nordic.businessinsider.com/legal-marijuana-states-2018-1/. Acesso em 20/7/2018.

[xiii] Folha de São Paulo. Prmeira produtora de maconha a abrir capital nos EUA estreia com alta de 32%. São Paulo: 20/7/2018, A10.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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