Opinião

Enunciado 641 da VIII Jornada de Direito Civil consagra avanços no Direito de Família

Autor

  • Rafael Mansur

    é mestrando em Direito Civil na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) pesquisador da Clínica de Responsabilidade Civil da Uerj e sócio do Schreiber Advogados.

21 de julho de 2018, 7h26

Foi aprovado na última Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal o Enunciado 641, que assim dispõe:

“A decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do artigo 1790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável”.

Trata-se de proposta voltada a explicitar os fundamentos da decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do regime sucessório do companheiro, previsto pelo Código Civil, afastando dúvidas acerca de uma possível equiparação total entre os regimes jurídicos do casamento e da união estável.

Como se extrai do voto do ministro Luís Roberto Barroso, condutor da maioria formada no RE 878.694/MG:

Como se vê, a ampliação do conceito jurídico de família pela CF/1988 não significou uma equiparação absoluta do casamento às demais entidades familiares. Especificamente em relação à união estável, a Constituição, de um lado, dispõe que ela é reconhecida como entidade familiar para efeito de proteção do Estado, mas, de outro, prevê que a lei deve facilitar sua conversão em casamento. À luz do texto constitucional, casamento e união estável são, assim, organizações familiares distintas. Caso não o fossem, não haveria sentido tratá-las em trechos distintos da Constituição, nem se afirmar que a lei deve facilitar a conversão da união estável em casamento. (…) Essa é uma primeira constatação importante que decorre do sistema constitucional: o legislador pode atribuir regimes jurídicos diversos ao casamento e à união estável. Todavia, como será detalhado adiante, a partir da interpretação conjunta de diversos dispositivos da Constituição de 1988, que trazem a noção de funcionalização da família, alcança-se uma segunda constatação importante: só será legítima a diferenciação de regimes entre casamento e união estável se não implicar hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra, desigualando o nível de proteção estatal conferido aos indivíduos.

A ideia de “níveis desigualados de proteção estatal conferida aos indivíduos”, todavia, exige um certo cuidado para ser bem compreendida. Não por outra razão o ministro Barroso retoma a ideia, acrescentando uma nota fundamental:

Se o papel de qualquer entidade familiar constitucionalmente protegida é contribuir para o desenvolvimento da dignidade e da personalidade dos indivíduos, será arbitrária toda diferenciação de regime jurídico que busque inferiorizar um tipo de família em relação a outro, diminuindo o nível de proteção estatal aos indivíduos somente pelo fato de não estarem casados. Desse modo, a diferenciação de regimes entre casamento e união estável somente será legítima quando não promover a hierarquização de uma entidade familiar em relação à outra. Por outro lado, se a diferenciação entre os regimes basear-se em circunstâncias inerentes às peculiaridades de cada tipo de entidade familiar, tal distinção será perfeitamente legítima.

A chave para compreender a diferença — constitucionalmente legítima — entre os regimes jurídicos do casamento e da união estável reside justamente na precisão da peculiaridade que distingue essas entidades familiares. Nesse sentido, enquanto o casamento é fundado em ato jurídico formal e solene, a união estável deriva de constituição espontânea, aferível apenas na concretude da relação (socio)afetiva do casal, e não em declarações de vontade. Todavia, em ambos os casos, têm-se a constituição de entidades familiares, que encontram uma unidade teleológica na proteção e promoção da dignidade de seus membros, expressão da solidariedade constitucional (CR, artigo 3º, I) no âmbito familiar, não havendo qualquer fundamento axiológico para se admitir uma prioridade hierárquica de uma em relação à outra. Em síntese: “A união estável se distingue fundamentalmente do casamento naquilo que diz respeito à chancela estatal da convivência, mas se equipara ao casamento naquilo que diz respeito aos direitos dos conviventes”[1].

Essa concepção, cristalizada no Enunciado 641, não é uma efetiva novidade no campo doutrinário, sendo há muito sustentada por Gustavo Tepedino[2] e empregada por Ana Luiza Maia Nevares para defender a inconstitucionalidade do artigo 1.790[3]. Trata-se, em última instância, de simples aplicação do princípio constitucional da isonomia: regula-se distintas relações jurídicas de forma igual naquilo em que se igualam, e de forma distinta naquilo em que se diferenciam, na medida dessa diferença.

Os debates ocorridos na Plenária da VIII Jornada, por ocasião da aprovação do enunciado[4], revelam a necessidade de algumas reflexões adicionais, de modo a evitar uma aplicação precipitada do verbete.

Nessa esteira, impõe-se esclarecer que o enunciado não implica qualquer retrocesso em relação à decisão do STF no RE 878.694/MG, apenas reflete a diferenciação já admitida no próprio acórdão, conforme demonstrado. Da inaplicabilidade das regras fundadas na publicidade e formalidade do ato jurídico constitutivo do casamento à união estável não resulta qualquer desvalorização desta segunda entidade familiar. Busca-se apenas assegurar a coerência do ordenamento jurídico. Poderíamos, por exemplo, reputar anuláveis os negócios celebrados sem a autorização do convivente (artigos 1.647 e 1.649 do CC), prejudicando terceiros que desconheciam a existência da entidade familiar? Tal regra, embora perfeitamente justificável no âmbito de uma relação matrimonial, revela-se incompatível com a dinâmica específica da união estável.

Note-se, portanto, que, a rigor, a distinção entre os regimes pode, sim, em determinadas situações, resultar em um grau menor de proteção aos integrantes do casal: a esposa poderá pleitear a anulação do negócio celebrado em detrimento do patrimônio familiar, enquanto a companheira não terá a mesma prerrogativa, por exemplo. Nada obstante, a diferenciação reputa-se legítima, pois fundada em característica própria da união estável, qual seja, a ausência de publicidade de sua constituição.

A diferenciação proposta não se presta a legitimar um tratamento discriminatório em relação à união estável. Muito ao contrário, seu pressuposto é precisamente a impossibilidade de hierarquização entre as múltiplas entidades familiares. Não há que se invocar o verbete para sustentar que a união estável seria um minus em relação ao casamento, como se deteriorada em razão de sua informalidade, uma vez que tal interpretação foi acertadamente rechaçada pelo Supremo, na esteira da doutrina majoritária. Como consequência: (i) não pode o legislador estabelecer distinções arbitrárias entre estas modalidades de família, e (ii) cabe ao intérprete superar aquelas que atualmente constam da legislação.

O grande mérito do enunciado reside justamente em sua parte final, com a indicação de critérios (solidariedade familiar e solenidade do ato) para a verificação da constitucionalidade das divergências nos regimes jurídicos. Embora evidentemente abertos, dependendo da indagação nem sempre fácil acerca da ratio das regras legais, esses critérios não podem ser convenientemente ignorados em prol de uma suposta liberdade maior a ser reconhecida no âmbito das uniões estáveis[5]. Impõe-se, em verdade, sua rigorosa aferição, de modo a garantir um tratamento isonômico entre as diversas formas de família, superando o senso comum de que a ausência de chancela estatal deva resultar na constituição de famílias de segunda classe.

Entendido deste modo, o Enunciado 641 contribui não apenas para consagrar uma noção de família funcionalizada à dignidade humana como também para oferecer uma maior segurança jurídica, através da fixação de parâmetros que permitam ao intérprete aplicar a lógica empregada pelo STF no caso do regime sucessório a situações análogas, determinando a adequação do regime jurídico da união estável ao conjunto de valores constitucionais.


[1] SCHREIBER, Anderson. União Estável e Casamento: uma equiparação? Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/uniao-estavel-e-casamento-uma-equiparacao/17554>. Acesso em 29/4/2018.
[2] TEDPEDINO, Gustavo. Novas Formas de Entidades Familiares: efeitos do casamento e da família não fundada no matrimônio. In: Temas de Direito Civil, 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 384-386.
[3] NEVARES, Ana Luiza Maia. A Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, pp. 214-238.
[4] Os debates podem ser assistidos no seguinte link: <https://www.youtube.com/watch?v=zihYzj4CE5M>, a partir de 3h01min.
[5] Sobre o equívoco desse raciocínio, seja consentido remeter a MANSUR DE OLIVEIRA, Rafael. O Argumento da Liberdade no Debate sobre a Constitucionalidade do Regime Sucessório do Companheiro: notas ao RE 878.694/MG. In: Revista da EMERJ, v. 19, n. 4, set./dez. 2017, pp. 144-155.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!