Opinião

A Lei de Segurança Jurídica e o futuro do contrato administrativo

Autor

  • Mário Saadi

    é sócio de Direito Público e Infraestrutura do Cescon Barrieu Flesch & Barreto Advogados. É professor do mestrado profissional da FGV Direito SP. Doutor (USP/2018) mestre (PUC-SP/2014) e Bacharel (FGV-SP/2010) em Direito.

20 de julho de 2018, 6h10

A Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, que inclui no Decreto-Lei 4.657, de 4 de setembro de 1942, disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do Direito Público, traz importantes inovações em matérias de contratos administrativos.

Há ao menos quatro pontos que tratam diretamente do tema: (i) necessidade de motivação adequada em caso de invalidação de contratos (artigo 20, parágrafo único); (ii) verificação de aspectos consequencialistas caso se decida por sua invalidação (artigo 21); (iii) consideração de circunstâncias práticas que permeiam a decisão administrativa de celebrar contratos (artigo 22, parágrafo 1º); e (iv) observância das normas aplicáveis aos contratos administrativos à época de sua celebração (artigo 24).

Além deles, outros dois temas podem ser contratualizados: (i) compromisso entre os interessados para solucionar irregularidades, incertezas e disputas (artigo 26); e (ii) compromisso processual para prevenir ou regular eventuais compensações por benefícios ou prejuízos (artigo 27, parágrafo 2º).

Esses assuntos devem trazer inovações na celebração de contratos, sobre sua gestão e em soluções de disputas eventualmente surgidas ao longo de sua execução. Novidades jurídicas, invariavelmente, surgirão com a recente publicação da lei. Sua edição levantou discussões entre diversas esferas e agentes (e suas interpretações e aplicação devem continuar a levantar), sobre o atual estado e sobre o futuro do contrato administrativo. Bem aplicada, a nova lei trará importantes — e necessários — incrementos para a prática relativa a contratos administrativos no país.

No contexto de edição da Lei de Segurança Jurídica, o contrato administrativo no Brasil pode ser visualizado como um pequeno barco, meio desamparado, a navegar por grande mar, bastante agitado. Diversas ondas o arrastam, jogam-no para frente e para trás. Algumas o fazem adentrar no oceano: trazem o medo, mas também o novo — possibilidade de progressão em meio à vastidão. Outras o arrastam para trás, levam-no de volta à praia, à calmaria — algo clichê. A força das ondas define o espaço exato no qual o pequeno barco atracará.

A metáfora exemplifica o verdadeiro conflito no qual visualizo o contrato administrativo inserido. A nova lei tenta trazer alguma calmaria e permitir que o pequeno barco continue a explorar a vastidão. Mostrar-nos uma prática melhor. De todo modo, os agentes que lidam com ele são diversos, e as discussões são (e serão) travadas em vários terrenos:

(i) na interpretação e na aplicação de leis sobre contratos administrativos: a disputa aqui está na tentativa de se fugir do regime geral, que em boa medida os intérpretes do Direito entendem como unificador, da Lei 8.666/1993. Desde 1993, tivemos diversas iniciativas (Lei de Concessões, Lei do Programa Nacional de Desestatização, Lei do Pregão, Lei de Consórcios Públicos, Lei de PPPs, Lei do RDC, Lei do PPI e Lei das Empresas Estatais, além da imensa experiência legislativa em setores específico, como, exemplificativamente, petróleo e gás, energia, telecomunicações, saneamento básico e portos, que fizeram com que diversas práticas disciplinadas pela Lei 8.666 fossem (ou devessem ter sido) relegadas ao passado. O legislador já reconheceu a inexistência de regime jurídico único — afinal, ele próprio editou várias leis, aplicáveis a casos distintos, todos eles peculiares entre si.

Em virtude desse reconhecimento, a Lei de Segurança Jurídica traz novo incremento: é aplicável a todo tipo de contrato administrativo exatamente para trazer aplicação adequada (bom-senso, por que não?) para a interpretação e execução de contratos administrativos distintos. Mostra, por exemplo, desdobramentos da teoria geral dos contratos à realidade desse tipo de contrato: parte de suas novidades nada mais são do que desdobramentos do princípio da boa-fé e do dever de colaboração entre as partes.

(ii) no Poder Executivo: aqui, parece-me que a disputa será travada interna e externamente. Internamente, haverá aqueles que verão a necessidade de adoção de novas soluções para os distintos problemas com os quais as administrações contratantes se deparam (não é esse mesmo um dos propósitos da Lei 13.655?). Doutro lado, haverá aqueles apegados ao formalismo e à tradição. Possivelmente com receio de seus controladores, três tenderão ou a manter as coisas como estão ou a adotá-las mediante provocação dos próprios órgãos de controle. Apatia ou movimento: é essa a disputa.

(iii) no Poder Judiciário: a complexificação da administração pública, o aumento no número de contratos, de regimes jurídicos e a diversificação entre eles tendem a fazer com que novos e mais conflitos na matéria sejam levados ao conhecimento do Poder Judiciário. Este poderá solucioná-los de maneira igualmente cada vez mais complexa, aprofundada, heterogênea, ou se manter apegado às velhas e fáceis soluções do passado (e que se tornam cotidianas). As discussões aqui serão plurais: unidade de regime e diversidade de regime; simplificação e ônus da argumentação; manutenção do estatismo e desenvolvimento de negócios; formalidade e consequencialismo (mais um ponto bem abordado pela Lei 13.655).

(iv) nos órgãos de controle: a sua imersão nos contratos administrativos (de maneira prévia, analisando a legalidade de sua pactuação, ou posterior, controlando a sua regularidade) tornará o seu papel cada vez mais importante. Porém, pergunta essencial deverá ser enfrentada: qual será esse papel? A luta aqui é das mais ferrenhas: liberdade para controlar e estabelecimento de agenda; bom gestor e possibilidade de desvio.

(v) na via negocial: finalmente, o futuro reservará espaço para discussões sobre a efetiva possibilidade de existência de contratação administrativa no Brasil. Tal como atualmente colocadas, as coisas são mais unilaterais (ato administrativo) do que bilaterais (contratação administrativa) ou plurilaterais (processos administrativos e contratos multipartes).

Em muitos casos, a administração pública adota soluções para suas contratações de maneira isolada, sem permeabilidade incisiva para discussão, para reconhecimento de erros, para oitiva e adoção de sugestões, para negociação, para análise de impactos que se causam com nãos simplistas e formais, para consequências de cada nova decisão e de suas modificações. A disputa aqui, portanto, será entre burocracia e contratualização; inércia e novas soluções; insulamento e permeabilidade.

Obviamente que existem exceções. Existência de audiências e consultas públicas, celebração de termos de ajustamento de conduta, procedimentos de manifestação de interesse, procedimentos de prorrogações contratuais e de realização de novos investimentos, dentre outros, evidenciam a possibilidade de ação bilateral ou multiparte no âmbito da administração pública. A Lei de Segurança Jurídica reconhece esse tipo de atuação, sua importância para a administração pública e como é fundamental para lidar com problemas concretos.

As grandes ondas se debaterão. O pequeno barco se movimentará. Os anos de aplicação da Lei de Segurança Jurídica mostrarão um oceano de fertilidade, desafio, aventura — medo, por que não? Desgaste, resiliência e superação.

Involução, estagnação ou evolução. Qual amanhã você escolhe? A nova lei já fez a sua própria escolha e deve nos mostrar um futuro mais promissor.

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