Limite Penal

O uso da realidade aumentada no processo penal: a era do Pokémon Go

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20 de julho de 2018, 8h00

Spacca
Você deve ter visto a febre do Pokémon Go, em que se caçavam pokémons em diversos lugares com o uso de um aplicativo — o mais baixado no mundo —, pelo qual a realidade da câmera do celular era ampliada pela visualização de pokémons caçados e apreendidos. Quem tem filhos pequenos sabe como o programa funciona, se bem que até mesmo nas salas de aulas tinha gente caçando pokémons. Esse era um programa de realidade aumentada (RA). O êxito foi apresentar um elemento consonante com a realidade pelas lentes do celular (aqui). Até mesmo rótulos de cerveja já se valem de realidade aumentada (aqui). E isso chegou ao processo penal. Calma, não os pokémons, mas a tecnologia. Como?

Apresentar a informação processual de modo a se fazer compreendido é o desafio cognitivo do processo penal. Não basta só canalizar informação qualificada. Será necessário escolher o modo pelo qual a informação será apresentada de maneira a fazer com que o julgador tenha uma compreensão melhor alinhada com a estratégia[1]. Esse campo até então era ocupado pela argumentação jurídica. Entretanto, agora se pode usar realidade aumentada, inventada por Morton Heilig em 1962 e recentemente utilizada, sem muito sucesso, pelo Google Glass (aqui). Mas a tecnologia se reinventou.

Imagine por um momento que, quando você for julgar/defender/acusar um caso de lesão corporal ou homicídio na direção de veículo automotor (CTB, artigos 302 e 303), poderia apresentar não só a narrativa, mas também a visão de cada um dos envolvidos (condutor do carro, vítima, testemunhas etc.), descortinando ao julgador o evento por via de realidade aumentada. No caso de dolo eventual (CP, artigo 121), aos jurados no tribunal do júri. A assimetria de informações, de versões, deixa de deslizar no imaginário para ganhar o componente da construção de realidades que serão vistas pelos olhos. O impacto cognitivo é avassalador, desde que benfeito e com sentido aderente.

Para que não se confunda as coisas, realidade virtual (RV) é o que se faz nos videogames, em que a realidade é transformada de modo realístico, embora totalmente virtual. Vale, aliás, conferir o novo e excelente livro de Salah Kaleh Jr (VideoGame e Violência: cruzadas morais contra os jogos eletrônicos no Brasil e no Mundo – Civilização Brasileira, 2018). A distinção necessária é que a realidade virtual suprime a realidade real e faz um mundo paralelo desprovido de coordenadas realísticas, por isso se pode jogar num castelo medieval ou mesmo no espaço cósmico. Já na realidade aumentada, a partir de dados realísticos, amplia-se o foco cognitivo[2], proporcionando diversas perspectivas cognitivas mediante o incremento de elementos virtuais[3]. Boa parte dos filmes atuais sobrepõe de modo bem realístico realidade filmada com cenas criadas por computador — e, na maioria das vezes, nem sequer notamos. Recentemente, no filme All the Money in the Word, o ator Kevin Spacey teve sua face totalmente substituída (aqui), enfim, foi “apagado do filme”.

Diferente de um filme de realidade virtual — como Pearl —, no caso de realidade aumentada, os sentidos (tato, visão, movimento, perspectivas etc.) têm o potencial cognitivo incrementado por elementos criados por computador. Constrói-se uma realidade ampliada por mecanismos capazes de servir para avaliar as condutas praticadas, a responsabilidade penal e a culpabilidade. Contudo, é verdade que o custo ainda é alto e os profissionais não são muitos a oferecer o serviço. A Microsoft já indica tal possibilidade (aqui).

Vejamos, por exemplo, a reconstituição da cena do crime. Assim, para além da atividade realizada pela autoridade policial, essa agora pode ser feita com recursos tecnológicos, dentre eles o da realidade aumentada. Desde as coordenadas de GPS, ou mesmo de mapas on-line, pode-se reconstruir as condições de tempo e espaço, garantindo-se a fidedignidade dos elementos e causas do crime. É um ganho para todos os envolvidos, ampliando-se a qualidade do julgamento e da reconstrução da cena do crime com realidade ampliada. Noutro viés, embora o livro de Niella[4] sugira a aplicação da tecnologia, destaco que tive contato com seus trabalhos e fiquei impressionado com o impacto cognitivo da realidade aumentada em caso de homicídio na condução de veículo automotor (CTB, artigo 302). O trabalho realizado exigirá uma atividade probatória do Ministério Público impensável na era do processo penal 3.0. A tendência é cada vez mais ampliar as possibilidades da realidade ampliada no processo penal 4.0 (aqui).

Na era do processo penal Go — 4.0. —, o uso de tecnologia de realidade aumentada exigirá recursos tecnológicos diferenciados e conhecimento técnico sobre “como” se pode produzir contextos de realidade factíveis, isso porque a quantidade de dados disponíveis é catalisada em uma versão narrativa visual. Por isso, dominar a forma como o caso penal será apresentado é um desafio atual, uma vez que o controle da narrativa pode ser facilmente manipulado. Logo, tanto julgadores como acusadores e defensores necessitam atualizarem-se, porque amanhã, em um processo penal, pode-se juntar material dessa ordem, e, se não souberem lidar com isso, serão presas fáceis para seus adversários.

Ainda, notável que a forma da cognição judicial modificou-se muito com os recursos tecnológicos, dado que gera conforto de assimilação de componentes caóticos da realidade (aqui). Nesse sentido, a exemplo da polícia holandesa (aqui), o regime de novidades tecnológicas chegou ao processo penal — tema que pretendo voltar a abordar noutras colunas. Ademais, em breve teremos uma nova edição do livro com o parceiro Yuri Felix (Novas Tecnologias de Prova no Processo Penal, pela EMais editora), alinhando o que há de impacto no sistema de controle penal. Há, de fato, uma revolução acontecendo e você não pode ficar de fora da realidade aumentada. O futuro chegou ao processo penal, e o desafio é pensar como se pode efetivar garantias processuais mínimas em face dos aparatos tecnológicos[5].


[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Teoria dos Jogos e Processo Penal: a short introduction. Florianópolis: Emais, 2018.
[2] LIMA, José Erigutemberg Meneses de. A contribuição da Realidade Aumentada no Direito Penal. “Realidade aumentada consiste numa técnica avançada de interface computacional, que permite a sobreposição de objetos virtuais no mundo real. Considerada uma variante da realidade virtual, a realidade aumentada suporta uma visualização de maneira altamente realista, incrementando a percepção do usuário no uso de uma interface de computador. Em linguajar simples é a interação de objetos reais e virtuais. A realidade aumentada é uma realidade virtual, mas não é algo que faça parte, exclusivamente do mundo virtual artificial, como se pode pensar. A realidade aumentada mantém o contexto refletido pelo mundo real, apenas sobre a cena que se observa são inseridas novas informações.” Consultar: https://www.google.com/url?hl=pt-BR&q=https://guteri.jusbrasil.com.br/artigos/162582790/contribuicao-da-realidade-aumentada-ao-direito-penal&source=gmail&ust=1532041347305000&usg=AFQjCNFvcjncMw-Va2j4-sgV3xhyxcxOZg
[3] WEINERSMITH, Kelly; WEINERSMITH, Zach. Logo, Logo. Dez novas tecnologias que vão melhorar e/ou arruinar tudo. Trad. Bruno Casotti. Rio de Janeiro: Intrínseca, p. 172-197
[4] NIELLA, Roberto Carlos Meza. Criminalística para criminalistas, criminólogos e peritos judiciais. Florianópolis: Emais, 2018. É um profissional qualificado (www.consultoriapericial.com)
[5] No mestrado e doutorado da Univali, em SC, criamos um projeto de pesquisa somente para investigar o tema, já com convênios efetivados e pesquisas (dissertações e teses) em andamento.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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