Opinião

Longe de ser diminuído ou extirpado, o quinto constitucional deve ser celebrado

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19 de julho de 2018, 15h54

A recente polêmica em relação ao quinto constitucional estabelecida pelas associações conservadoras de magistrados que defendem o ingresso na magistratura exclusivamente por concurso público, e a extinção da nomeação de desembargadores e ministros através desse sistema merece atenção. Com efeito, a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais publicou, em 11 de julho de 2018, um “manifesto contra o quinto constitucional”[1]. A preocupação, de acordo com o presidente da referida associação, seria “que a prestação jurisdicional pode estar sendo entregue a pessoas cuja capacidade é altamente questionável”[2]. Tal cenário faz imprescindível uma avaliação racional quanto ao questionado instituto e a sistemática do próprio concurso público.

Para esclarecimento, os juízes de primeira instância, assim como os membros do Ministério Público, ingressam na carreira por concurso público. Por sua vez, os juízes de segunda instância, desembargadores, que oficiam nos tribunais de Justiça e tribunais federais, são compostos de quatro quintos de juízes de carreira promovidos e um quinto de membros do Ministério Público e advogados.

A escolha do desembargador oriundo do quinto constitucional é feita por meio de votação entre profissionais — que devem contar com mais de dez anos de atividade profissional — apontados em lista sêxtupla pelo Ministério Público ou pela Ordem dos Advogados do Brasil. A lista é encaminhada ao Tribunal de Justiça, que elege uma lista tríplice e a encaminha ao chefe do Poder Executivo, conforme regra insculpida no artigo 94 da Constituição Federal. No caso de vagas para o Superior Tribunal de Justiça, requer-se a idade mínima de 35 anos, competindo a nomeação pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, na forma dos artigos 101 e 104, da Constituição Federal, sendo que um terço dos ministros deve ser indicado entre advogados e membros do Ministério Público.

A realização de eleição para juízes não é uma jabuticaba brasileira: no sistema norte-americano, os juízes e membros do Ministério Público são eleitos[3]. De modo semelhante, Robert Carnwath, juiz na High Court da Inglaterra, explica que no país britânico os juízes devem ter prática anterior como advogados por 10 anos ou mais[4], enquanto que na França a idade mínima para se torna juiz é de 26 anos. Já no Uruguai, 28 anos é a idade mínima para a carreira judicial[5].

Pois bem, o objetivo declarado do quinto constitucional é oxigenar as instâncias revisoras com os juízes nomeados fora da magistratura de carreira, é dizer, ao inserir nos quadros dos tribunais juízes experientes na prática do Direito a partir de visões da advocacia ou do Ministério Público, há um ganho em maturidade e sensibilidade na administração da Justiça.

Nessa toada, a questão central proposta no presente texto é tratar sobre a medida na qual a sistemática dos concursos públicos destinados a magistrados de primeira instância tem comprometido a maturidade do Judiciário.

A prova de concurso é conduzida pelos próprios magistrados ou membros do Ministério Público, com pouca participação da Ordem dos Advogados do Brasil. Dentre as provas de alternativa, redação de sentença e a subjetiva prova oral, o concurso público falha em testar adequadamente a capacidade profissional do candidato, e, mais do que isso, não garante que o ser humano que ocupará o cargo de juiz tenha a experiência e a maturidade necessária para julgar.

Por outro lado, a profissão de advocacia, pela qual o profissional de Direito toma contato com os problemas do cidadão, civis ou criminais, e passa a representá-lo perante o sistema judicial, é o que mais permite que o profissional entenda as mazelas do jurisdicionado. É através da prática da advocacia que o profissional pode compreender de forma mais ampla o comportamento de diversas autoridades públicas, incluídos os próprios juízes.

Por isso, a Constituição prevê a exigência de poucos três anos de exercício de atividade jurídica como pré-requisito profissional para fazer o concurso público para juiz e membro do Ministério Público, conforme o inciso I, do artigo 93, da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional 45, de 2004.

Essas alterações vêm em consonância com o conceito do quinto constitucional, ou seja, assim como desembargadores advindos da advocacia, requerer a prática da advocacia ao candidato a juiz é prestigiar a experiência. Experiência e maturidade que, aliada ao saber jurídico, aproxima o Judiciário da expectativa de contar com julgadores que sejam excelentes profissionais técnicos, mas, sobretudo, seres humanos compreensivos da realidade social.

A necessidade de maturidade para prestar o serviço público como autoridade judicial pode ser observada em exemplo real. Nesse sentido, recorda-se que o midiático procurador Deltan Dallagnol esteve em evidência nos veículos de comunicação por ter sido pivô de polêmica envolvendo o requisito da prática jurídica para assunção do cargo. De fato, noticiou-se que a ascensão ao cargo de procurador se fez sem a devida comprovação da experiência jurídica deste, que se formou em fevereiro de 2002 e tomou posse no cargo em janeiro de 2003, tendo sua investidura no cargo se dado por meio de ordem judicial proferida pela Justiça Federal do Paraná, que entendeu que a exigência de dois anos de formado era inconstitucional[6].

Em contraposição à lógica perfeita da Constituição, recentemente se construiu uma argumentação que visa tratar o quinto constitucional como algo deletério.

O certo é que deferir a alguém sem experiência de vida, maturidade intelectual e consciência da realidade social os cargos de autoridade judicial de alto escalão, tornando-os responsáveis por definir o destino das pessoas — e até o futuro do país —, é permitir a deturpação do sistema de Justiça.

É óbvio que cada indivíduo passa por experiências de vida diversas, o que contribui à composição da sabedoria e prudência colegiada de um Tribunal de Justiça. De outro lado, a uniformização do conhecimento oriundo simplesmente dos livros acadêmicos e das aulas de cursinho conjugada à parca vivência são as condições que contribuem à infiltração de juízes desumanizados nas carreiras jurídicas.

A circunstância é bem diagnosticada pelo professor Fernando Fontainha, que afirma que, “a menos que se considere que é nos cursinhos preparatórios que circulam os valores fundamentais da instituição judicial, ou as competências e habilidades de um bom juiz, parece razoável afirmar que a única certeza que o cidadão brasileiro pode ter é que um magistrado iniciante sabe o Direito necessário para responder a questões de múltipla escolha”[7].

Difícil é crer que jovens que acenderam ao Judiciário nutridos em uma redoma social desconhecendo os dramas sociais sejam as melhores opções de julgador para definir questões como aposentadorias, direitos do trabalhador e amargas situações de família. Em casos como esses, é prudente que o julgador tenha discernimento para compreender como vivem os outros seres humanos, com suas dificuldades de trabalho, instabilidade econômicas e sofrimentos familiares, assim como os empresários empreendedores precisam entender seus riscos e o suplício que é o próprio sistema jurídico.

Não é possível defender com lucidez que jovens juízes, cândidos neófitos, tenham o poder de julgar e encarcerar outro ser humano.

A frieza dos julgadores deve ser evitada, a empatia deve substituir a apatia: é esse o objetivo de requerer experiência profissional na advocacia aos juízes e promotores ingressantes na carreira, bem como o ingresso de desembargadores advindos da advocacia.

Longe de ser diminuído ou extirpado, o quinto constitucional deve ser celebrado, e os requisitos para ingresso na carreira, incrementados, especialmente a necessária vivência da advocacia para tornar apto o profissional a se candidatar a cargo de autoridade pública.

Nesse contexto, importa ressaltar que tramita no Senado Federal a proposta de Emenda à Constituição 54, de 2015, que visa alterar dispositivos da lei maior para aumentar a idade mínima requerida para investidura em cargos do Judiciário[8]. A proposição sugere a fixação da idade mínima de 55 anos para investidura no Supremo Tribunal Federal, de 50 anos para tribunais superiores e de 45 anos para os tribunais regionais federais, tribunais regionais eleitorais e tribunais de Justiça estaduais.

Nas palavras dos autores da PEC 54/2015, “justifica-se a alteração na medida em que são requisitos bom desempenho de tão relevantes funções a experiência e a ponderação, o que somente se faz presente com o alcance da maturidade”[9]. E, ainda, de parecer à proposta:  “Objetiva-se, assim, que todos os Tribunais, federais ou estaduais, sejam compostos por magistrados com experiência jurídica e vivência prática, de forma que possam contribuir para a agilidade e eficiência da prestação jurisdicional”[10].

Outras tentativas já foram feitas para estabelecer idade mínima para concurso de juízes e promotores. A PEC 399 de 2014, apresentada pelo deputado Moreira Mendes (PSD-RO), foi apensada à PEC 25/2011, de autoria do deputado Fábio Trad (PMDB-MS), ex-presidente da OAB-MS. A PEC 260/08, do deputado Décio Lima (PT-SC), previa a exigência de 10 anos de advocacia e 30 anos de idade para ingresso na magistratura e no MP.

Por autoproteção, ou para não perderem a chance de empregar seus filhos e netos nos concursos, as associações conservadoras que lutam contra o quinto constitucional e a exigência de dez anos de atividade profissional são também contra a idade mínima para concurso, tendo até ingressado com uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo (ADI 5.329), que teve pedido de liminar negado pelo ministro Marco Aurélio[11].

É razoável que a experiência jurídica que se quer alcançar venha a ser obtida pela prática do Direito na forma pura da advocacia, ou seja, a atividade jurídica deve ser comprovada também, de preferência por meio da própria OAB, de modo a se contrapor à falácia da obtenção do requisito através de cursos ou atividades que não representem realmente a prática do Direito.

A conclusão, diante da análise racional, é dupla. A uma, a seleção realizada pelos próprios juízes, com modesta participação da OAB, acentua o "efeito-espelho"[12] existente entre selecionadores e selecionados (o que pode, aliás, ser um dos motivos para o fato de não ser incomum uma espécie de hereditariedade e apadrinhamento em cargos públicos), que acaba por contribuir para a proliferação de juízes rasos de vivência, ainda que conhecedores de linhas doutrinárias.

Prossegue-se, então, à segunda conclusão lógica: é essencial a evolução do método de seleção de autoridades públicas, especialmente nas cadeiras de julgadores. É imperioso exigir idade mínima de 30 anos e dez anos de efetiva advocacia (em isonomia ao disposto no artigo 94, da CF/88 — requisito de dez anos de carreira para investidura em tribunais) e conhecimentos em matérias humanas, como História e Sociologia[13].


[1] http://anamages.org.br/artigos/manifesto-contra-o-quinto-constitucionalhttps://www.conjur.com.br/2018-jul-15/magistrados-culpam-quinto-constitucional-morosidade-justica
[2] https://www.conjur.com.br/2018-jul-15/magistrados-culpam-quinto-constitucional-morosidade-justica
[3] Em grande parte dos Estados americanos, a investidura no cargo de juiz é realizada por votação direta.
[4] Em entrevista ao Ibrajus, discorre o magistrado inglês: “Nós não temos uma carreira como nos países de civil law. Normalmente, os juízes devem ter prática anterior como advogados por 10 anos ou mais. A maioria começa como juízes part-time (em geral 4 semanas por ano), e depois se candidatam a juízes em período integral aos 45-55 anos de idade”. Disponível em: http://www.ibrajus.org.br/revista/entrevista.asp?idEntrevista=10
[5] https://www.conjur.com.br/2011-fev-27/segunda-leitura-idade-minima-juiz-reflexo-decisoes
[6] Cf.: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/noticias-pr/ingresso-no-ministerio-publico-federal-foi-perfeitamente-legal-afirma-procurador-da-lava-jato
[7] https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/entre-a-vocacao-e-a-magistratura-os-concurseiros-10042015. O mesmo autor identifica que “a ideologia concurseira que se firmou ajuda a alimentar uma indústria milionária de cursos preparatórios e um sistema de arrecadação que desvirtuou os processos seletivos” e “o concurso público hoje é uma máquina de exclusão social, e não de inclusão. Esse sistema é voltado para quem tem tempo e dinheiro para pagar um bom cursinho”. Cf.: http://economia.ig.com.br/carreiras/2014-09-15/concurso-publico-e-uma-maquina-de-injustica-social.html
[8] A PEC 45/15 encontra-se desde 18/12/2015 aguardando inclusão em ordem do dia para deliberação no plenário do Senado Federal, cf. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/121203
[9] http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=1400480&disposition=inline
[10] http://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=4338796&disposition=inline
[11] A ação direta de inconstitucionalidade teve liminar negada 18/6/2015 e permanece na conclusão com o ministro Marco Aurélio desde 12/2/2016.
[12] FONTAINHA, Fernando Castro. Como Tornar-se Juiz? – Uma Análise Interacionista sobre o Concurso da Magistratura Francesa – Coleção FGV Direito. Rio de Janeiro: ed. Juruá, 2013.
[13] Cf. FERNANDES, Fernando Augusto. Poder e Saber – Campo Jurídico e Ideologia. Rio de Janeiro: ed. Revan 2012, disponível em: http://uff.br/dcp/wp-content/uploads/2011/03/Tese-de-2011-Fernando-Augusto-Fernandes.pdf

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