Opinião

Desconstruindo a decisão do Supremo que suspendeu a RN 433 da ANS

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18 de julho de 2018, 6h19

Com registro inicial do meu total respeito à OAB e ao STF, preciso dizer que ambos cometeram grave erro ao, respectivamente, propor a ADPF 532 e deferir medida cautelar nela requerida. Tudo sem entrar no tema do cabimento ou não de ADPF para combater ato infralegal.

Relembrando o tema:

Em 27 de junho, a ANS editou a Resolução Normativa 433/2018, a qual dispõe sobre mecanismos de regulação (entenda-se coparticipação e franquia) de planos de saúde. Na última sexta-feira (13/7), a OAB propôs a ADPF 532, requerendo o reconhecimento da incompatibilidade da RN 433 com a CF, “a fim de se preservar os preceitos fundamentais narrados”. Cautelar, requereu e viu deferida pelo STF medida cautelar suspendendo a eficácia da RN 433.

A peça inicial apresentada pela OAB apresenta, em síntese, o argumento de que o direito fundamental à saúde foi violado pela RN 433, já que tal direito passa a ser restringido por norma infralegal. Avança dizendo que a ANS não detém competência para normatizar coparticipações e franquias.

Na decisão, o STF apresenta palavras de ordem: “Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”. Segue dizendo que “direitos conquistados não podem ser retrocedidos” e que houve “inovação normativa primária, sem respaldo constitucional ou legal”.

Sem ignorar a importância do objeto do contrato de plano de saúde, qual seja a saúde do beneficiário contratante, é muito importante que se compreenda que essa relação não visa atender ao direito fundamental de acesso à saúde.

Explico:

Ao se analisar o conteúdo constitucional já é possível perceber a quem recai o dever de atender ao direito à saúde previsto na CF. Basta a leitura do artigo 196 da CF, para entender que esse é do Estado e de mais ninguém. Há outra espécie de atuação, que não se volta à garantia social do direito à saúde, que é a exploração privada de serviços de saúde, prevista no artigo 199 da CF. Ou seja, a norma constitucional permite a mercantilização de serviços de saúde, que devem certamente ser prestados em atenção à dignidade do cidadão, mas que, inequivocamente, podem visar ao lucro.

Aqui já se revela o primeiro cuidado necessário quando da aplicação ou interpretação das normas que regulam a prestação de serviços de saúde. É fundamental localizar se se está diante do regime de direito público ou privado. Um tem essência de função pública para atender ao direito social; outro é embasado na livre-iniciativa de atividade econômica e, apesar de ter como escopo o atendimento à saúde do indivíduo, não diz respeito ao atendimento do direito social à saúde.

É importante não confundir a hipótese em que o privado faz as vezes do Estado na prestação de serviços públicos de saúde com aquele que presta saúde na formatação privada. Lembre-se que a própria CF permite a participação privada, complementar à pública, como instrumento de auxílio na consecução do dever estatal de garantir o direito dos cidadãos à saúde (parágrafo 1º do artigo 199). Assim, há: (i) a saúde pública, executada diretamente pelo Estado e voltada a garantir o direito do cidadão à saúde; (ii) a saúde pública complementar, executada por particular em nome do Estado, e também voltada a garantir o direito do cidadão à saúde; (iii) a saúde privada, executada por particular com o fim de explorar atividade econômica, cuja finalidade é o lucro.

Portanto, o primeiro, mas crucial equívoco da OAB e do STF foi confundir o regime jurídico aplicável às relações de prestação de serviços públicos e privados de saúde.

Certamente que o direito fundamental à saúde irradia efeitos a todos, incluindo as operadoras de planos de saúde. Entretanto, é preciso diferenciar, como ensina Canotilho[1], a função prestacional do direito fundamental (atribuível ao Estado) da função de proteção perante terceiros. Esta última, sim, pode ser atribuída às operadoras como uma espécie de non facere, ou seja, de evitar certas condutas capazes de violar o direito fundamental. Não podem, por exemplo (e como disciplina a própria Lei dos Planos de Saúde — Lei 9.656/98), direcionar seus beneficiários para tratamentos de alto risco, como os experimentais. É por causa dessa função, aliás, que a CF elegeu (artigo 197) a saúde como de relevância pública, justificando a regulação estatal das atividades privadas que exploram economicamente a saúde. Mas, insista-se, o dever prestacional voltado a atender ao direito fundamental é exclusivamente estatal.

Superado o tema do direito fundamental, a questão final que fica é se a ANS detém ou não competência para regulamentar o tema dos mecanismos de regulação (coparticipação e franquia) ou se, ao fazê-lo, estaria afrontando o princípio da reserva de lei. Esse tema me parece de mais fácil solução. O parágrafo 1º do artigo 1º da Lei dos Planos de Saúde anota que está “subordinada às normas e à fiscalização da ANS qualquer modalidade de produto, serviço ou contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencia de atividade exclusivamente financeira, tais como: (…) d) mecanismos de regulação”. Ora, a letra da lei deixa clara a competência da ANS de regulamentar mecanismos de regulação criados pela própria Lei dos Planos de Saúde.

Além desses aspectos jurídicos, que me parecem importantíssimos para demonstrar o grande equívoco gerado na ADPF 532, há outro, de cunho social e econômico, que me parece ainda mais relevante. Mecanismos de regulação servem para tornar os planos de saúde mais atrativos. Eles concentram custos nos momentos de materialização do risco, ao passo que diminuem o preço mensalmente pago. Sua utilização deve ser facultada, e não imposta ao consumidor, a quem devem ser direcionadas informações detalhadas e descomplicadas.

Mecanismos de regulação podem, portanto, viabilizar a aquisição de planos de saúde, desonerando o SUS e permitindo que seu aparato se volte ao atendimento daqueles mais necessitados. Ou seja, bem utilizados, podem exercer papel decisivo no dever estatal de atendimento ao direito à saúde dos cidadãos. Devem ser, por isso, incentivamos, e não rechaçados, como querem OAB e STF.


[1] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 6.ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 407.

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