Opinião

Caso Vladimir Herzog: o Estado brasileiro fora da lei

Autor

  • Marcio Sotelo Felippe

    é advogado e ex-Procurador Geral do Estado (SP). Mestre em Filosofia e Teoria Geral do Direto publicou Razão Jurídica e Dignidade Humana Brasil em Fúria (em coautoria) e Moral e Direito (coleção Para Entender Direito).

18 de julho de 2018, 14h44

1.
“Sem justiça o que é todo reino senão grande pirataria?” Correram 1500 anos para que a constatação de Agostinho ultrapassasse a Filosofia para se tornar um conceito jurídico. Diante do ente mais poderoso que a história conheceu, o Estado moderno, detentor do monopólio da violência e da norma jurídica e que dispõe dos fabulosos recursos modernos da ciência e a tecnologia, a humanidade não está singelamente à mercê da delinquência política.

Não cabe mais entender ingenuamente que seja possível a soberania absoluta do Estado e o monopólio da norma jurídica após o genocídio armênio, 1,5 milhão de mortos em 1915/16, o Holocausto, as tragédias de Ruanda, dos Balcãs, as ditaduras militares sul-americanas, o assassinato de milhões de cidadãos pelo próprio Estado.

Tais conceitos, soberania e monopólio da norma jurídica (fundamentado teoricamente pelo positivismo), cedem em alguns casos, como nos crimes contra a humanidade e correlatos. E, para além ainda do Direito, isto é imperativo categórico sem o qual não podemos nos reconhecer em um estágio mínimo de civilização porque implicaria admitir que indivíduos ou grupos, na condição eventual de dirigentes ou agentes do Estado, possam cometer os mais bárbaros crimes e produzir normas que os afastem de quaisquer responsabilidades, autoprotegendo-se.

Nos crimes contra a humanidade e correlatos, outra ordem de conceitos e normas jurídicas é observada. Ela não se confunde com alguma espécie de “punitivismo”. É rigorosamente o contrário. Combater o punitivismo é proteger o cidadão da violência do Estado, e respeitar a ordem jurídica que não isenta de responsabilidade assassinos estatais significa exatamente proteger os cidadãos da violência do Estado.

2.
Recentemente, veio à luz um documento secreto de 1974, liberado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, em que o então chefe da CIA afirma que o ditador Ernesto Geisel aprovou a política de execuções sumárias de adversários da ditadura militar. Teve apenas a “cautela” de orientar o seu chefe do SNI e futuro ditador, João Baptista Figueiredo, para que autorizasse pessoalmente os assassinatos.

Na época, a resistência armada à ditadura já havia sido dizimada. Mais de 400 assassinatos, desaparecidos políticos e milhares de torturados. Restava ainda incólume o Partido Comunista Brasileiro, que não havia aderido à luta armada. O documento da CIA está relacionado à última grande ofensiva contra adversários políticos do regime que visou justamente o PCB.

Entre 1974 e 1976, foram mortos pela ditadura militar 19 militantes do PCB, entre os quais 11 membros do Comitê Central. David Capistrano, herói da Resistência Francesa (o então presidente da França, Giscard D’Estaing, intercedeu por ele) e dirigente histórico do PCB, foi executado e esquartejado na Casa da Morte, em Petrópolis, e seus restos mortais ensacados e jogados em um rio. Entre março de 1974 e janeiro de 1976, essa ofensiva prendeu 679 membros do PCB, entre eles Vladimir Herzog, detido em outubro de 1975 juntamente com outros jornalistas. Morreu sob torturas bárbaras na tarde de 25 de outubro.

A ofensiva contra o PCB é um dos episódios da brutal repressão contra os adversários da ditadura militar. Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, os mortos e desaparecidos somaram 434. O total de torturados é muito maior. Este foi apenas o número alcançado pela CNV. Havia 30 formas de torturas: choques elétricos, “cadeira do dragão” (cadeira elétrica em que a pessoa é colocada nua recebendo choques elétricos), palmatórias com pregos, afogamentos (água ou amoníaco no nariz das vítimas), corredor polonês, sufocamento, enforcamento, pau de arara, exposição a animais — cachorros, ratos, jacarés, cobras, baratas, às vezes introduzidos no corpo da vítima.

Isso tudo significa, de pleno direito, que a ditadura militar cometeu crimes contra a humanidade, tal como os cometidos pelo III Reich nazista, pelo Império Otomano contra os armênios, por Estados democráticos como a França na Argélia, nos Balcãs e por tantos outros regimes ao longo do século XX. Por isso o Estado brasileiro foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) e, recentemente, pela tortura e assassinato de Vladimir Herzog.

3.
Quando crimes são cometidos por indivíduos comuns, é função do Estado buscar a responsabilização. Quando crimes são cometidos por agentes do Estado isolada e contingencialmente, também é função do Estado responsabilizar. Mas, quando crimes são cometidos pelo Estado planejadamente, como estratégia ou política manifesta contra a população ou grupo de pessoas, levada a efeito por agentes do Estado encarregados da execução desse plano ou política por meio de assassinatos, torturas, estupro, de maneira sistemática ou generalizada, são responsáveis perante uma jurisdição universal em qualquer tempo ou lugar. Esse é o conceito básico de crimes contra a humanidade, e a ordem que cuida da responsabilização por tais atos é o Direito Internacional, se o Direito interno não opera.

Aí certos conceitos têm que ser distintos daqueles aplicáveis aos crimes comuns, com algumas características específicas: são imprescritíveis, não podem ser anistiados, não são protegidos pela coisa julgada e independem, quando caracterizados, do que quer que diga o ordenamento jurídico interno. A soberania e o monopólio da norma jurídica moderno cedem.

Tais características são justificadas por diversos fundamentos, mas confluentes. Destaque-se a extrema gravidade, a insuperável ofensa ao sentimento de humanidade e a ineficácia e inconsistência lógica-jurídica de se permitir que os próprios responsáveis ou perpetradores, ou seus sucessores por cumplicidade, omissão ou razões de Estado permitam que sejam ignorados e permaneçam impunes. Tudo isso é contemplado pelo princípio da não repetição. Em defesa da humanidade, tais fatos não podem ser ignorados para que não se repitam. Para que qualquer dirigente político saiba que o poder não significa um salvo conduto para cometer crimes e atrocidades.

4.
Neste espaço da ConJur, o grande criminalista Alberto Toron, que foi perito do Estado brasileiro no julgamento do caso Herzog na Corte Interamericana de Direitos Humanos, passou ao largo de tais questões para sustentar que o Brasil não deve cumprir a sentença que condenou o Estado e que os responsáveis pela tortura e assassinato de Herzog não podem ser mais processados. Invocou preceitos jurídicos próprios apenas do Direito interno, inaplicáveis na esfera da proteção jurídica internacional da humanidade, além de desconsiderar que as normas relativas aos crimes contra a humanidade são de Direito Internacional cogente (imperativas, vinculantes) e, portanto, independem de convenções ou tratados.

Desde Nuremberg, crimes contra a humanidade estão tipificados, são imperativos e obrigam e responsabilizam agentes do Estado em qualquer nível de hierarquia. Estão submetidos à jurisdição universal. Nenhuma norma de Direito interno pode licitamente ignorá-los, e não há coisa julgada ou anistia que possa impedir a apuração e responsabilização penal dos perpetradores. Nos termos da sentença da CIDH no caso Herzog, temos:

“A Corte determinou que os fatos cometidos contra Vladimir Herzog devam ser considerados como crime de lesa-humanidade, tal qual é definido pelo Direito Internacional desde, pelo menos, 1945. O fato de que a proibição de crimes de Direito Internacional e crimes contra a humanidade alcançaram o status de norma imperativa de Direito Internacional (jus cogens) impõe ao Brasil a obrigação de investigar, julgar e punir os responsáveis pelas condutas mencionadas, uma vez que elas constituem uma ameaça à paz e à segurança da comunidade internacional”.

“Seguindo sua jurisprudência constante, a Corte reiterou que a obrigação de investigar e, nesse caso, julgar e punir os responsáveis adquire particular importância ante a gravidade dos delitos cometidos e a natureza dos direitos lesionados. Por isso, concluiu que o Estado não pode invocar: (i) prescrição; (ii) o princípio ne bis in idem; (iii) leis de anistia; assim como (iv) qualquer disposição análoga ou excludente de responsabilidade similar, para eximir-se de seu dever de investigar e punir os responsáveis. Ademais, como parte das obrigações de prevenir e punir crimes de direitos internacional, a Corte considerou que os Estados estão chamados a aplicar o princípio de jurisdição universal em respeito a essas condutas, pois constituem uma ameaça à paz e à segurança da comunidade internacional. Sem prejuízo do que foi exposto anteriormente, a Corte pronunciou-se sobre a aplicação do princípio ne bis in idem e da coisa julgada material. Nesse sentido, considerou que a figura da coisa julgada não é absoluta. Adicionalmente, considerou que a decisão que encerrou a investigação se tratou de uma decisão de um recurso de habeas corpus, tomada por um tribunal que carecia de competência para tal e que se baseou em uma norma (Lei No. 6683/79, Lei de Anistia) que foi considerada por esta Corte como carente de efeitos jurídicos. Em outras palavras, não foi uma sentença absolutória emitida de acordo com as garantias do devido processo. Assim, a Corte considerou que se tratou de uma sentença que não surte efeitos jurídicos”.

5.
Basicamente a partir do voto condutor de Eros Grau na ADPF 153, que julgou válida a Lei da Anistia que ainda impede a persecução penal dos perpetradores dos crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura militar, ganhou certo curso a versão de que ela resultou de um grande acordo nacional para pôr fim à ditadura e por tal deve ser respeitada. A ordem de considerações desenvolvida acima é suficiente para demonstrar a irrelevância disso, se tivesse ocorrido.

Mas não ocorreu. Essa inverdade histórica precisa ser veementemente repelida. Bastaria ver a singela cronologia dos fatos e a mera percepção dos que viveram a época. Em 1979, promulgada a Lei de Anistia, não havia o mais remoto vislumbre de fim da ditadura. Ela foi promulgada porque a oposição de esquerda estava dizimada e interessava ao regime naquele momento legitimar-se por uma certa abertura. Obedeceu à lógica do regime e a nenhum acordo. O fim da ditadura militar estava longe. Ainda transcorreu praticamente todo o mandato de cinco anos de Figueiredo, cujo sucessor, Tancredo Neves, foi eleito em eleições indiretas, derrotada a campanha Diretas Já. Os candidatos da ditadura à sucessão de Figueiredo eram Andreazza, comprometido com o regime militar desde o primeiro momento, e o notório Paulo Maluf, que dispensa comentários. Poderia esse “acordo para pôr fim à ditadura” passar pela eleição de Andreazza ou Maluf? Qual oposição teria feito esse acordo em que seus algozes continuavam no poder?

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo poucos dias após o julgamento da ADPF 153, Paulo Sergio Pinheiro liquidou a versão do “acordo”:

“A Lei da Anistia não foi produto de acordo, pacto, negociação alguma, pois o projeto não correspondia àquele pelo qual a sociedade civil, o movimento da anistia, a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a heroica oposição parlamentar haviam lutado.

Pouco antes de sua votação, em setembro de 1979 houve o Dia Nacional de Repúdio ao Projeto de Anistia do governo e, no dia 21, um grande ato público na praça da Sé promovido pela OAB-SP, igualmente contra o projeto do governo.

A lei celebrada nos debates do STF como saldo de 'negociação' foi aprovada com 206 votos da Arena, o partido da ditadura, contra 201 do MDB.

A oposição, em peso, votou contra ato de Legislativo emasculado pelas cassações, infestado por senadores biônicos. Parece que o movimento da anistia e a oposição na época não tinham sido comunicados de seu papel no 'acordo nacional' que os ministros 30 anos depois lhes atribuiriam”.

Para além ainda da falácia histórica, o ministro Eros Grau, em seu voto, elegeu a Lei da Anistia como a “norma fundamental” da Constituição de 1988. Termino com duas observações. Primeira, se “norma fundamental” aí se refere ao conceito de Hans Kelsen, ele deve estar se revirando no túmulo desde 2010. A norma fundamental de Kelsen é uma categoria vazia de conteúdo. Ela apenas tem função lógica de possibilitar o conhecimento do direito posto, empírico, e é indiferente ao que ele dispõe. Segunda, se assim fosse, nós, brasileiros, ficamos então sabendo em 2010 que a norma que rege todo o ordenamento jurídico deste país pós-1988 destina-se a proteger assassinos e torturadores. Que triste República esta.

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