Constituição e Poder

A Constituição de 1988 e a perda de sua força normativa

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16 de julho de 2018, 18h07

Spacca
No momento em que completa os seus 30 anos, a Constituição de 1988 vê-se obrigada a confrontar, com incômoda persistência, a ameaça de uma nova constituinte. Tanto à esquerda como à direita, não são poucos aqueles que começam a advogar a tese de que a atual Constituição brasileira, tão plena de virtudes, teria perdido, nos últimos anos, e de forma acentuada, a capacidade de atender às mais importantes tarefas de qualquer Constituição democrática, consistentes em propiciar, de modo adequado, a formação e a manutenção da unidade política do Estado, bem como a existência de uma ordem jurídica duradoura[1].

Para cumprir essas tarefas fundamentais, “a Constituição se converte não só na ordem jurídica fundamental do Estado mas também na da vida não estatal dentro do território de um Estado, isto é, na ordem jurídica fundamental da comunidade”[2].

Entretanto, a formação da unidade política que o Estado representa e a manutenção da ordem jurídica que o governa não são realidades indefectivelmente pressupostas à ação dos indivíduos, ou, para dizer com Konrad Hesse, não correspondem a “algo que venha dado sem outros motivos”[3]. Na verdade, o Estado Democrático e a sua Constituição são sempre cultivados em meio a expressivas dificuldades.

Não obstante essas conclusões, no nosso caso, observando a cena política e jurídica brasileira, tem-se a impressão de que os agentes políticos e operadores do Direito (inclusive os magistrados) acreditam que a Constituição está e permanecerá sempre à sua disposição, não importa o que façam, tudo admitindo e suportando, como se fosse um pressuposto indestrutível de nossa vida comunitária.

Infelizmente, não é assim. Ao contrário, as Constituições democráticas, e não é diferente com a Constituição brasileira, têm que realizar as suas funções e justificar a sua existência em meio a consideráveis adversidades. De fato, da mesma forma que o Estado Democrático, a Constituição deve assegurar a sua sobrevivência, nas modernas sociedades democráticas e pluralistas, em meio a um processo político de complexa e difícil conformação, em que se justapõem e contendem “numerosos grupos, nos quais a compensação entre as diferentes opiniões, interesses e aspirações, como a resolução e regulação de conflitos, converteram-se, por igual, em tarefa arquetípica e condição de (sua) existência” (do Estado e de sua Constituição)[4].

Muito especialmente no caso brasileiro, vivemos um momento em que os grupos de interesses não parecem predispostos a contribuir para um mínimo de consenso em que a Constituição possa bem desempenhar as suas tarefas. Para o nosso infortúnio histórico, contudo, gostemos ou não, “onde falta ou elimina-se o consenso básico no qual a força normativa da Constituição em última instância se baseia”, ela acaba perdendo os “elementos de sua força vital e a sua eficácia”, sendo que as salvaguardas institucionais de que é dotada não são capazes de, isoladamente, socorrê-la. Não é que as salvaguardas da Constituição (no caso brasileiro, previstas nos artigo 60, 136-139) sejam supérfluas, mas apenas que não podem ser sobrevalorizadas[5].

Não é difícil compreender que, nas sociedades em que, pela pluralidade e divergência de interesses, já não se mostre viável, consistentemente, a formação de uma vontade coletiva vinculante, e onde “já não se consiga estabelecer e realizar, pela via do entendimento ou das decisões majoritárias, os objetivos políticos” (da comunidade), não só a Constituição, mas, segundo Konrad Hesse, o próprio Estado sucumbe, seja como ordem jurídica, seja “como unidade política de ação”[6].

No caso brasileiro, mesmo aqueles que têm a obrigação de concretizar o Direito e, em especial, a Constituição, mostram-se tão envolvidos em impor novas e grandiloquentes tarefas para a ordem constitucional, que acabam por esquecer as difíceis funções, absolutamente insubstituíveis, que, desde o seu surgimento, são impostas ao Direito Constitucional moderno.

Tudo se passa como se a ordem jurídica e, em especial, o texto constitucional, na sua concretização, pudessem suportar qualquer sobrecarga política, ou hermenêutica, isto é, como se fosse possível impor à ordem jurídica constitucional qualquer interpretação, ou interesse, desde que se atenda aos desígnios, à visão de mundo e à vontade política de quem se julga legitimado a realizar e a impor “a sua” Constituição.

Numa inversão completa e mal explicada da hermenêutica jurídica, aqueles que deveriam ter a função de guardar o Direito e a Constituição passam a sustentar a tese, velada ou abertamente, de que têm à sua inteira disposição o sentido dos textos normativos, de tal modo que, ao invés de se concretizar uma legítima interpretação segundo a Constituição (interpretação constitucionalmente adequada), passamos a aceitar a ideia, sem contraste, de que a Constituição é, na verdade, o que dizem os seus intérpretes, numa espécie de Constituição segundo a interpretação, ou consoante a vontade soberana do intérprete (interpretação política ou moralmente adequada).

Contudo, toda experiência do Direito Constitucional demonstra que a Constituição e o Direito Constitucional não estão, sem se degradarem, à disposição de todo e qualquer interesse, demanda, ou hermenêutica. A Constituição, afirma-o Hesse, depende para um ótimo desenvolvimento de sua força normativa “não apenas de seu conteúdo mas também de sua práxis”. Depende, em síntese e em grande medida, daquilo que o próprio Hesse designou de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)[7]. Valendo-se de Walter Burckhardt, para bem esclarecer o que entende por vontade de Constituição, anotou ainda em lição imorredoura (cito):

“Aquilo que é identificado como vontade de Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar a alguns benefícios ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele, que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado’”[8].

Segundo ainda o grande mestre, “todos os interesses momentâneos — ainda quando realizados — não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda”[9].

No caso brasileiro, sobretudo nos últimos anos, quando a Constituição mal completa três décadas de existência, de regra, o que se percebe é que os atores jurídicos e políticos não estão dispostos a ceder em suas demandas, ou em sua visão de mundo. Não aceitam preterir a sua hermenêutica, essencialmente voltada a interesses momentâneos (por mais justos que se revelem), em favor das escolhas e valores fundamentais positivados de forma permanente pelo legislador constituinte.

Igualmente devastador à força normativa de nossa Constituição é o fenômeno, cada vez mais ordinário, de se recorrer frequentemente a reformas à Constituição, sob a alegação de inadiáveis imperativos de caráter político, econômico e até moral. Como bem adverte Konrad Hesse, “cada reforma constitucional expressa a ideia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente”. O desejo de alterar, com criticável assiduidade, o texto constitucional também “abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa”, já que “a estabilidade constitui condição fundamental da eficácia da Constituição”[10].

Não se quer e não se pode afirmar que qualquer Constituição jurídica possa desvincular-se por inteiro da realidade e de seus conflitos, ou que possa isentar-se de toda e qualquer mudança. Em certa medida, os conflitos e as mudanças sociais são um remédio benfazejo à concretização mais equilibrada da Constituição, desde que não se desnature, em particular, o sentido semântico de seus enunciados normativos e, no geral, a essência e a identidade da própria Constituição.

De fato, mostra-se indispensável à força normativa da Constituição jurídica que ela revele alguma identidade com a realidade a qual se dirige, abrindo-se à possibilidade — eventualmente inevitável — de mudança. Considerado um mundo de constantes transformações, numa sociedade de valores divergentes, não pode a Constituição, em consequência, assentar-se numa estrutura unilateral, impedindo a realização de visões de mundo em alguma medida contrastantes, razão pela qual, “se pretende preservar a força normativa de seus princípios fundamentais, deve ela incorporar, mediante meticulosa ponderação, parte da estrutura contrária”[11], conformando aquilo que o Professor Canotilho designou de Constituição compromissória.

Por fim, outro aspecto importante para incrementar (ou enfraquecer) a força normativa da Constituição é sem dúvida a sua interpretação. Num sentido positivo, toda interpretação do texto constitucional deve estar submetida ao princípio da máxima concretização da norma[12].

Mais uma vez, como se viu e ninguém o recusa, tanto a Constituição (em seu texto) como sua interpretação não se desenvolvem alheias às mudanças históricas das relações fáticas, mas, em contrapartida, não se pode esquecer que “o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não podem ser sacrificadas em virtude de um mudança da situação”[13].

Em forma de resumo, nós brasileiros deveríamos também aprender com Konrad Hesse que a Constituição jurídica, é verdade, não pode ser desconectada da realidade, estando por ela condicionada. Em suas próprias palavras, a Constituição “não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo”, sendo que a sua eficácia não pode ser concretizada “sem levar em conta essa realidade”. Mas, com o mesmo vigor, insiste o autor que a Constituição não é e não pode ser apenas “a expressão de uma dada realidade”. Em razão de seu elemento normativo, “ela ordena e conforma a realidade política e social”, de tal modo que “as possibilidades, bem como os limites da força normativa da Constituição, resultam da correlação entre ser (Sein) e dever ser (Sollen)”[14].

Portanto, se, em vez de coveiros da Constituição de 1988, quisermos contribuir para a força vital de sua normatividade e eficácia, teremos, os operadores do Direito (também os magistrados), que operar uma mudança profunda em nossa prática constitucional e, revestindo nossos afazeres com maior humildade institucional, aceitar que nem sempre a solução que, do ponto de vista político ou do momento histórico, se afigura a mais conveniente será também, do ponto de vista jurídico, a resposta constitucionalmente mais adequada. Cuida-se em síntese de abrir mão de uma parcela de nossa vontade de poder, por mais nobres e justos que sejam os fins então perseguidos, em favor dos desígnios e valores permanentemente assegurados e visados pela Constituição.

As sociedades que lograram esse grande feito, refreando a sua vontade de Poder em favor de um pouco mais de vontade de Constituição, têm sido, como testemunha o próprio Konrad Hesse, recompensadas com incalculáveis benefícios históricos, tanto a médio como a longo prazo. De fato, consoante nos comprova a experiência do direito comparado, em tais circunstâncias, a Constituição jurídica consegue modificar a realidade em que se encontra inserida, conseguindo “despertar a força que reside na natureza das coisas” e convertendo-se “em força ativa que influi e determina a realidade política e social. Essa força impõe-se de forma tanto mais efetiva quanto mais ampla for a convicção sobre a inviolabilidade da Constituição, quanto mais forte mostrar-se essa convicção entre os principais responsáveis pela vida constitucional. Portanto, a intensidade da força normativa da Constituição apresenta-se, em primeira plano, como uma questão de vontade normativa, de vontade de Constituição (Wille zur Verfassung)”[15].


[1] Hesse, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20ª Ed., Heidelberg: Müller, 1995, p. 5 e seguintes.
[2] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 7.
[3] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Tradução: Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, SP: Saraiva, 2013, p. 4.
[4] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 4.
[5] Hesse, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20ª ed., Heidelberg: Müller, 1995, p. 288.
[6] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 4.
[7] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 135.
[8] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 135.
[9] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 135.
[10] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 135.
[11] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 134.
[12] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 136.
[13] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 136.
[14] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 137.
[15] Hesse, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional, 2013, p. 137.

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