Opinião

Roubo com arma de brinquedo: fim de uma discussão e início de outra

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15 de julho de 2018, 11h53

Em recente artigo publicado na ConJur, Cezar Roberto Bitencourt fornece uma análise minuciosa sobre a Lei 13.654/2018, que criou hipóteses de aumento da pena para os delitos de furto e roubo, nos casos em que o meio de execução ou o objeto da subtração esteja ligado a material explosivo, cabendo também à lei em questão, especificamente em relação ao roubo, o estabelecimento de nova redação, de cunho mais específico, para a hipótese de aumento de pena decorrente do emprego de arma de fogo ou do qual resulte lesão corporal de natureza grave.

Como se trata, aqui, de uma análise de índole complementar ao quanto já suscitado por Bitencourt no artigo inicialmente citado, deixa-se de ofertar uma abordagem ampla sobre a integralidade das alterações já comentadas, privilegiando-se o foco num único aspecto, referente aos efeitos da criação de uma nova redação sobre a hipótese da prática de roubo à mão armada, buscando-se, em complemento, o lançamento da discussão sobre a legitimidade dos novos parâmetros punitivos estabelecidos em lei para a hipótese ora objeto de estudo.

O fim da discussão sobre a arma de brinquedo
Até o advento da nova lei ora estudada, havia no Brasil uma acalorada discussão doutrinária/jurisprudencial sobre a eventual incidência da majoração da pena nos casos de roubo caracterizados pelo emprego de simulacro de arma de fogo ou, conforme uma denominação menos formal: de arma de brinquedo.

Para que se compreenda a origem e razões da discussão ora tida por encerrada, faz-se necessário revisitar o art. 157, §2º, inc. I, do CP, em sua redação atualmente revogada, donde se extrai o quanto abaixo segue:

“Art. 157. Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos, e multa.

[…]

§2º A pena aumenta-se de um terço até metade:

I – se a violência ou ameaça é exercida com emprego de arma;” (grifamos).

Como visto, limitara-se o legislador a estabelecer uma previsão genérica sobre o emprego de arma, sem esmiuçar a natureza ou qualidade do instrumento, o que causara a propalada divisão, entre os aplicadores do direito, quanto ao cabimento da causa de aumento de pena para as hipóteses em que o uso de arma está mais ligado ao ardil, à criação de uma ilusão, do que ao perigo propriamente dito, caso do simulacro ou arma de brinquedo.

Neste ponto, parcela da doutrina e jurisprudência sustentava que diante da utilização de um simulacro não incidiria a causa de aumento ora sob análise, vez que faltaria à ação a necessária qualificação da ofensividade da conduta pela criação do perigo extra decorrente do uso de arma de fogo (Paulo José da Costa Júnior, cit., p. 83).

Em sentido oposto, havia quem sustentasse que a majoração da pena não se ligava à ofensividade da conduta, mas ao maior grau de temor infundido na vítima pela visualização de uma arma, elemento presente em igual escala tanto para o uso de arma real como para a fictícia (Nelson Hungria, cit., p. 58).

Conforme dito, o debate se caracterizou pela natureza acalorada, contando inclusive com constantes alterações de posicionamento por parte da jurisprudência, conforme se destaca da claudicante orientação do Superior Tribunal de Justiça que, após firmar posicionamento sumulado sobre o cabimento do aumento da pena no roubo praticado com arma de brinquedo (Súmula 174, STJ), optou, no ano de 2001, pelo cancelamento da Súmula em questão[2], posicionamento este novamente revisto, anos mais tarde, para voltar a considerar o cabimento da majorante na hipótese ora debatida (STJ, REsp 1662618-MG, Rel. Min. Ribeiro Dantas, 5ª Turma, DJe 22.06.2017).

Sem que haja necessidade de adentrar ao mérito deste ou daquele posicionamento supra relatado, observa-se ser evidente o atual descabimento da causa de aumento de pena na hipótese em questão, tendo, por base, uma razão de índole eminentemente legal, qual seja: o advento da Lei 13.654/18, que determinara a revogação do inc. I, do parágrafo 2º, do art. 157, do CP, onde se encontrava a previsão do aumento pelo emprego de arma (1/3 até metade da pena), transportando-se a hipótese para o recém criado parágrafo 2º-A, do art. 157, do CP, norma apta a estabelecer uma agravação de índole mais severa (padrão fixo em 2/3 da pena), desde que constatado o emprego de arma de fogo.

Em que pese a existência de uma legislação específica sobre armas (Lei 10.826/2003), bem como do posterior advento de um decreto para a regulamentação desta (Decreto 5.123/2004), a delimitação do conceito de arma de fogo ainda exige o socorro do antigo Decreto 3.665, de 20 de novembro de 2000, que estabelece, em seu art. 3º, inc. XIII, caracterizar-se como arma de fogo toda: “arma que arremessa projéteis empregando a força expansiva dos gases gerados pela combustão de um propelente confinado em uma câmara que, normalmente, está solidária a um cano que tem a função de propiciar continuidade à combustão do propelente, além de direção e estabilidade ao projétil.”

Evidente que o conceito acima não abrange as hipóteses referentes à utilização de armas brancas ou impróprias (facas, canivetes, porretes, caco de vidro), não sendo possível, de igual maneira, sustentar a paridade entre a noção traçada no Decreto supra aludido e os contornos de um simulacro ou arma de brinquedo.

Nessa esteira, resta evidenciado que mais do que lançar uma pá de cal na discussão sobre a caracterização ou não do simulacro como causa apta a estabelecer o aumento de pena para o roubo, figura-se a inovação ora comentada, especificamente em relação ao uso de simulacro de arma, como verdadeira novatio legis in mellius, tudo a tornar forçosa a revisão das penas outrora agravadas pelo emprego de arma ficta, operação esta a ser feita, em regra, pelos juízos da execução (cf. Súmula 611, do STF).

Em complemento, para os casos de roubo praticado com arma de fogo em período anterior ao advento da nova lei ora comentada, o quadro se inverte, qualificando-se a lei como novatio legis in pejus, haja vista ter sido adotado um parâmetro de aumento maior do que aquele inicialmente previsto para a mesma hipótese. Nesse ponto, deve ser respeitado, no momento da apenação destes casos, o panorama previsto no hoje revogado inc. I, do §2º, do art. 157, do CP, qual seja: com limitação de um terço até metade.

Da aplicação analógica à extorsão
Conforme o entendimento de Rogério Greco[3], o roubo e a extorsão compreendem crimes da mesma espécie em sentido absoluto, vez que não apenas se localizam no mesmo capítulo do Código Penal, como também caracterizam ofensa ao mesmo grupo de bens jurídicos (patrimônio, liberdade individual e integridade física).

Resta natural, portanto, a compreensão pela paridade de tratamento a ambas as hipóteses delitivas, entendimento este reforçado pela identidade absoluta das penas cominadas pelo legislador para os dois crimes (reclusão, de 4 a 10 anos, e multa).

Neste ponto, considerando-se que também a extorsão conta com uma causa de aumento de pena decorrente do “emprego de arma” (art. 159, §1º, do CP), e considerando-se ainda que aludida causa de aumento implica na majoração da pena em patamares idênticos àqueles até então previstos para a mesma hipótese envolvendo os casos de roubo (1/3 até metade da pena), tem-se por inequívoco que a ausência de remodelação da hipótese no âmbito da extorsão está longe de caracterizar o resultado de uma opção legislativa, apresentando-se, simplesmente, como fruto do esquecimento do legislador a respeito da paridade de ambos os fenômenos delitivos.

A situação parece afrontar a garantia constitucional da isonomia, mormente quando adotado, para o princípio em questão, o entendimento capitaneado por Alberto Silva Franco, para quem: “ocorre desrespeito ao princípio da igualdade quando situações fáticas iguais são arbitrariamente cuidadas pelo legislador, como desiguais ou situações fáticas desiguais recebem, de modo arbitrário, tratamento igual." Em complemento, José Joaquim Gomes Canotilho sustenta que: “quando não houver motivo racional evidente, resultante da ‘natureza das coisas’, para desigual regulação de situações de facto iguais ou igual regulação de situações de facto desiguais, pode considerar-se uma lei que estabelece essa regulação, como arbitrária.”

A esse modo, por força do princípio da igualdade, resta evidente a inviabilidade da adoção, a partir do advento da lei ora estudada, de tratamento diverso para os casos de roubo e extorsão, cabendo ao operador do direito a busca da adequação da lei no plano normativo, a saber: i) aplica-se ao delito de extorsão a exclusão da majorante com base em arma de brinquedo, mantendo-se a base do aumento ali previsto (de 1/3 até metade); e ii) incide no delito de roubo a exigência do uso de arma de fogo para fins de reconhecimento da qualificadora, aplicando-se, por meio da combinação de leis, a pena prevista para a agravante no âmbito da extorsão e consequente descarte da nova base punitiva (fixada em 2/3).

Vale consignar, como último argumento a favor da paridade entre os crimes e consequente necessidade do tratamento isonômico, que o delito de extorsão determina expressamente, por meio do §2º, do art. 158, do CP, a aplicação dos critérios punitivos estabelecidos para o roubo na hipótese da vinculação à circunstância “violência” (art. 157, §3º, do CP).

Nesse lineamento, entende-se ser absolutamente inviável, por ofensa à garantia ora destacada, a aplicação da agravante de cada delito como se fosse uma realidade fático/normativa de índole independente, cabendo ao aplicador do direito, conforme dito, a adequação dos novos dispositivos à realidade sistêmica em que se encontram inseridos.

Das razões de aumento e do princípio da proporcionalidade.
Por fim, entendemos ser salutar a especialização promovida pela Lei no que tange à vinculação entre a causa de aumento e o emprego de arma de fogo, vez que a utilização do critério da maior ofensividade da conduta parece guardar correspondência com as próprias razões fundamentais do delito de roubo.

Em sentido oposto, não concordamos com o aumento fixo de 2/3 da pena proposto pela nova lei, seja porque retira do juiz a capacidade de dosar, no caso concreto, o cabimento de um aumento mínimo e máximo de acordo com as circunstâncias do crime (conforme previsão anterior), seja porque ao incidir sobre a quase totalidade da pena prevista para o crime, tende a majorante a extrapolar os limites da proporcionalidade.

Como demonstração da ausência de razoabilidade da punição ora comentada, destaca-se que a nova lei prevê a mesma pena para o uso de arma de fogo e o emprego de explosivo ou artefato que cause perigo comum, evento este de índole muito mais grave. Em reforço, verifica-se que são praticamente equivalentes as punições ofertadas para as hipóteses de roubo com emprego de arma de fogo e roubo com advento de lesão corporal grave, vez que ao se aplicar a nova causa fixa de aumento à pena mínima abstratamente prevista para o roubo, chega-se a 6 anos e 8 meses de reclusão, algo muito próximo aos 7 anos de reclusão previstos para a hipótese ora indicada como parâmetro de comparação, esta sim marcada por uma lesão grave ao bem jurídico integridade física.

Esta ausência de proporcionalidade tende a reforçar o cabimento da aplicação, por analogia in bonam partem, da causa de aumento da pena com esteio no prazo definido para a hipótese correlata prevista para o delito de extorsão, qual seja, de 1/3 até metade (art. 158, §1º, do CP).

Conclusão.

Tendo por base as considerações e apontamentos supra, concluímos que a Lei 13.654, de 23 de abril de 2018, promoveu a extinção das razões que socorriam o entendimento sobre o cabimento do agravamento do roubo praticado com emprego de simulacro de arma. Este fato deve ser levado em conta pelos operadores do direito para o fim de readequar a punição daqueles que outrora foram condenados com pena majorada pela consideração da equivalência entre arma de brinquedo e arma de fogo.

De outra ponta, a ausência de cuidado do legislador com o trato de questão absolutamente equivalente prevista no crime de extorsão, evento este aliado à ausência de proporcionalidade dos novos limites para o aumento da pena, tende a fomentar o nascimento de discussão diversa, a respeito da necessidade da combinação de leis para considerar a limitação da causa de aumento às hipóteses da utilização de arma de fogo, aplicando-se, outrossim, os parâmetros punitivos estabelecidos pela figura da extorsão com emprego de arma, raciocínio que pensamos ser o mais correto.

Referências Bibliográficas
BITENCOURT, Cezar Roberto. Mudanças na tipificação dos crimes de furto e roubo. Revista Consultor Jurídico, 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-jul-07/cezarbitencourt-mudancas-tipificacao-crimes-furto-roubo> Acessado em: 08/07/2018.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Coimbra: Coimbra Ed., 1982, p. 382.

COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Curso de direito penal. Vol. 2, São Paulo: Saraiva, 1991, p. 83.

FRANCO, Alberto Silva; STOCO, Rui. Código Penal e sua interpretação. 8ª ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 41.

GRECO, Rogério. Código Penal comentado. 5ª ed., Niterói-RJ: Impetus, 2011, p. 459.

HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. VII, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 58

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