Embargos Culturais

O homem que sabia javanês e a crítica aos intelectuais desonestos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

15 de julho de 2018, 8h00

Spacca
O escritor Lima Barreto viveu estado de permanente exclusão, o que certamente justificou o alcoolismo crônico que o derrubou, tirando-lhe a vida ainda muito jovem: faleceu com pouco mais de 40 anos. Observador de ordem política da escravidão — ele mesmo descendente direto de escravos — Lima Barreto também criticou a cultura oficial que ornava o Brasil dos bacharéis. Grande parte deles era de intelectuais oportunistas. Há muitos deles até hoje.

Lima Barreto também faz com que reflitamos a propósito da ética da verdade: deslegitimou a mentira como mecanismo de ascensão social. Ele viveu à margem. Foi amanuense no Ministério da Guerra, com salários que permitiam sobrevivência frugal, situação que se agonizava com a necessidade de cuidar da família, sustentando o pai (que sofria de demência aguda) e os irmãos. Especificamente, indagava Lima Barreto: haveria legitimidade em se construir carreira com fundamento em uma mentira? Ele percebia nos bacharéis trajetórias montadas a partir de bases pouco sólidas.

O Homem que Sabia Javanês, parece-me, é um delicioso conto que denuncia este estado de coisas. O narrador, Castelo, relata a um amigo (Castro), em uma confeitaria, como pregou peças contra “às convicções e às respeitabilidades, para poder viver”. Castelo trabalhava no serviço diplomático, chefiava um consulado. O modo como alcançou a posição é a alavanca que Lima Barreto usou para denunciar o bacharelismo. O artifício de uma mentira — Castelo não sabia a língua exótica que um dia se propôs a ensinar — fora o ponto de apoio para que obtivesse posição de cônsul.

Castelo confessou ao amigo que já fora professor de javanês. E acrescentou que foi nomeado cônsul justamente por isso. Contou que quando chegou no Rio de Janeiro vivia na miséria, fugindo dos cobradores de aluguel das casas de pensão. Foi quando leu anúncio no Jornal de Comércio, que dava conta de que alguém necessitava de um professor de malaio. Imaginou que se tratava de ocupação para a qual não haveria muitos pretendentes. Castelo lembrou que continuava fugindo credores, o que evidenciava que a necessidade de empregar-se era absoluta. Enviou uma carta ao jornal, oferecendo-se para a vaga inusitada que se abria.

Castelo informou que foi conhecer o autor do anúncio, um interessado em tomar aulas de javanês. Tratava-se de um ancião. Teimosamente (coisa peculiar de velhos, segundo Castelo), o aluno queria saber onde o professor aprendeu javanês. Castelo observou que não contava com aquela pergunta. Disse que imediatamente arquitetou uma mentira. Teria falado que o pai era javanês, tripulante de navio mercante, que se estabeleceu nas proximidades de Canavieiras, na Bahia, como pescador; que teria se casado, e que prosperou. Foi com o pai que aprendeu javanês, explicou-se Castelo. Mentiu.

O aluno era da nobreza. Tratava-se do Barão de Jacucanga. Uma estória curiosa justificaria o interesse no estudo de língua tão pouco falada por estas bandas, e de utilidade questionável. O velho então explicou a Castelo porque queria aprender javanês: queria cumprir um juramento de família, que possuía um livro nessa inusitada língua, e que deveria ser lido.

Contrataram condições, preço e hora. Comprometeu-se a fazer com que o velho “lesse o tal alfarrábio antes de um ano”. As aulas começaram. O ancião não era muito diligente. Pelo contrário, preguiça e displicência pareciam ser as características de estudante. Castelo observou que levaram um mês com metade do alfabeto. Castelo obtinha algumas informações sobre o javanês em enciclopédias. O aluno aprendia e desaprendia. O bote foi dado.

A partir do genro do Barão, Castelo teria conseguido se aproximar da vida diplomática. Trata-se do momento mais significativamente crítico do conto, na medida em que Lima Barreto indicou as linhas gerais que marcaram a entrada de Castelo para o serviço diplomático. A diplomacia era o sonho de muitos intelectuais, que disporiam de tempo para dedicação exclusiva ao estudo e às atividades literárias.

Castelo estava definitivamente empregado. Observou ao amigo que nada sabia de javanês, e que representaria o Brasil num congresso de sábios. O Barão havia morrido um pouco antes. O livro escrito em javanês ficou com o filho, que o deixaria para o neto. Castelo foi brindado no testamento do aluno, com alguns benefícios materiais. Continuava estudando as línguas malaio-polinésias, porém confessava que não havia forma de as aprender. Comprava livros, assinava revistas. Era apontado nas ruas como o homem que sabia javanês.

Castelo contou ao amigo que descrevia a ilha de Java com o auxílio de dicionários, com alguns livros de geografia, que citava o tempo todo. O amigo perguntou se alguém duvidara do conhecimento que Castelo teria do javanês, se já teria passado por algum apuro. Castelo ainda contou sua participação no encontro de sábios. O professor de javanês estava entre os eruditos, era especialista em assunto hermético, e de conhecimento reduzido a um pequeno grupo de iluminados.

Castelo não se arrependia de tudo que viveu, e pelo que passou. A opção para o ensino de javanês, uma língua que desconhecia, fora a alternativa para a sobrevivência, para que se livrasse das agruras na cidade-grande. Fez-se como professor de javanês, língua que ninguém conhecia. Parece que Lima Barreto pretendia alcançar equilíbrio nas relações humanas, que deveriam ser marcadas pela franqueza e pela honestidade; não haveria espaço para mentiras. De tal modo, inconcebível o triunfo que decorreria de uma falsidade. O Homem que Sabia Javanês é, nesse sentido, denúncia contra bacharelismo que não tinha limites para que se alcançasse posição social de relevo.

Ao denunciar o homem que sabia javanês Lima Barreto tornava pública a revolta que vivia. Intelectual, porém com possibilidades limitadas de ascensão social, por conta das origens e da ascendência escrava, Lima Barreto fora preterido inúmeras vezes. Não conseguiu a imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Jamais foi lembrado para posto no exterior. Mofou como amanuense em repartição pública que odiava. Enquanto isso, muitos professores de javanês atendiam congressos e representavam o país no exterior. Quando voltavam, eram recebidos com júbilo. Lima Barreto, vencido pela dipsomania, terminava seus dias num manicômio.

Se os fins justificam os meios, a premissa legitimaria a estratégia de Castelo. Se do ponto de vista kantiano, a verdade o é para quem a merece, não se saberá se o velho Barão teria direito de não ser enganado. Mas se a verdade é imperativo para convivência respeitosa, o Homem que Sabia Javanês inscreve-se no panteão nacional que plasma anti-heróis marcados pelo mau-caráter.

Autores

  • Brave

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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