Ativismo positivo

Em Londres, Gilmar Mendes defende reorganização do Judiciário

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15 de julho de 2018, 10h47

A judicialização do país, assim como o aumento vertical da interferência da Justiça na vida dos brasileiros, não foi uma opção da magistratura, mas uma imposição das circunstâncias. Esse foi o raciocínio do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, durante seminário na Universidade de Londres, no início deste mês. “O Brasil se tornou um país Judiciário-dependente”, afirma.

Nelson Jr./SCO/STF
Solução para o Brasil seria desjudicializar os conflitos sociais, diz o ministro Gilmar Mendes.
Nelson Jr./SCO/STF

Para o ministro, a explosão da demanda criou disfuncionalidades que só serão enfrentadas com uma nova organização judiciária. A solução seria desjudicializar os conflitos, com iniciativas como a reforma trabalhista ou o recente acordo feito entre os bancos e investidores, no caso dos planos econômicos.

O ministro defendeu que fórmulas como essas devam ser aplicadas em outras áreas como nas relações de consumo: “É preciso planejar os próximos trinta anos da Constituição de 1988”.

Leia os principais trechos da palestra:

Os trinta anos da Constituição Federal em vigor são extremamente marcantes. Com todas as turbulências e dificuldades pelas quais passamos, não tivemos qualquer ruptura institucional e este é um dado positivo. O Judiciário também teve um papel marcante. É uma Constituição, já disse o ministro Lewandowski, com muitas peculiaridades.

Um parlamentar importante que foi embaixador aqui em Londres, meu conterrâneo Roberto Campos, foi muito irônico em relação à Constituição de 1988. Disse que um dos problemas era ser de 1988. Se fosse de 1989, no clima vivido com a queda do muro de Berlim, ela não teria essa tendência estatizante, socializante que a marcou inicialmente. Já se disse também que essa Constituição foi extremamente detalhada. Isso se explica, nós vínhamos, como já disse o ministro Lewandowski, de um momento longo autoritário. Mais de vinte anos de uma ditadura militar.

Os setores organizados se mobilizaram para inscrever as suas preocupações no texto constitucional. Já disse, com muita graça o ex-senador, ex-vice-presidente da República, ministro de vários governos, Marco Maciel, contava uma história sobre essa Constituição de 1988 ocorrida no ambiente de sua feitura.

Dizia ele que certa vez foi chamado para dialogar com o ministro da Justiça. Ele estava no senado. Voltou ali para a área de saída do Congresso e não encontrou seu motorista. Então, decidiu tomar um táxi. O taxista enredou uma conversa que ilustra bem o momento de feitura da Constituição. O taxista viu que era uma viagem muito curta. No geral os taxistas não gostam de viagens curtas. Logo interpelou o senador e disse: “Senador, esta Constituição está toda errada”. O senador, que é um homem muito (…) disse: “Ah, é? Está errada por quê?”. Ele disse: “Todo dia eu vejo pessoas chegando no Congresso para inserir alguma coisa no texto constitucional. No final da tarde, já noite, eles saem e dizem que conseguiram aquilo, que as lideranças foram sensíveis àquele apelo. Senador, esta Constituição está tratando de muita coisa. Agrupou todos os interesses de índio, garimpeiro e seringueiro, mas ainda não tratou dos taxistas”. Era a percepção do homem comum de que havia, de fato, uma busca por abrigo no texto Constitucional, que se explica de alguma forma.

Era um momento inaugural de institucionalização do país depois de atos institucionais, decretos-leis. Portanto, era uma tentativa de se colocar uma nova ordem e, claro, grupos buscaram então esse tipo de fortalecimento. Uma das novidades, já foi dito aqui pelo presidente da mesa e também pelo ministro Lewandowski, foi o fortalecimento do Judiciário. Um modelo singular da chamada autonomia administrativa, mas também de autonomia financeira, que hoje é também objeto de bastante discussão. E o fortalecimento institucional do Judiciário com, inclusive, o surgimento de novas ações ou garantias.

Ao lado do tradicional habeas corpus vem também o tradicional Mandado de Segurança, mas as novas ações: o Mandado de Injunção, o Habeas Data. Nós tínhamos, até então, como sabem aqueles que se dedicam ao constitucionalismo nacional, uma práxis que enfatizava muito ou uma cultura que enfatizava o que muitos hoje chamam de constitucionalismo simbólico. Promessas que eram colocadas no texto constitucional, mas não se efetivavam. Não se efetivavam porque o legislador não o regulamentava.

O constituinte de 1988, incorporando práxis que se desenvolvia em outras ordens como, por exemplo, a alemã e, inicialmente, a portuguesa, que permitia cobrar a chamada omissão inconstitucional.

Isso é um ponto importante sobre o ativismo judicial, porque é um ativismo, diria eu, institucionalizado. É a própria Constituição que cobra que o Judiciário faça essa intervenção, dê resposta em caso de omissão inconstitucional. Esse realmente é um importante desafio. Nós também lidamos com esse tema tendo… Vou chamar assim, para usar uma expressão cara a nosso colega americano-brasileiro, Mangabeira Unger, temos um experimentalismo institucional.

Inicialmente, o Supremo entendeu que a sua competência no quadro, na moldura da separação de poderes, se limitava a apelar ao legislador para que ele atendesse àquela demanda. Mas, talvez a falta de uma cultura constitucional sobre esse tema levou o legislador a não ser sensível a esses apelos.

Não podemos esquecer também das dificuldades políticas que se colocam na realização. O fato é que o legislador, em geral, ficava um pouco indiferente ou quedava inerte diante do apelo quanto à existência de uma omissão, o que levou o Supremo Tribunal Federal – já ia aí dos vinte anos da Constituição, talvez um pouco mais – a mudar seu entendimento e a dizer que em casos de recalcitrância sistêmica ou sistemática era possível regular provisoriamente a situação. De alguma forma, substituir-se ao legislador. Isso ocorreu, já foi citado aqui, no caso de direito de greve do servidor público, em que o Tribunal acabou por fazer uma ampla regulação desse tema.

E nós temos outras disciplinas. Essa é uma singularidade, realmente, que marca a nossa experiência institucional e me parece que é digna de nota. Esse é um ponto realmente relevante e me parece que nos diferencia… Não se pode dizer, como eu já apontei, que a participação do Tribunal nos temas de omissão se dê simplesmente porque o Tribunal quer intervir em uma atividade que é típica do poder Legislativo. Mas talvez o Tribunal tenha sido concitado por essa segunda omissão, que é o não atendimento àquela demanda inicialmente feita pelo Tribunal em face do legislador, diante da judicialização.

São dois os instrumentos importantes nesse contexto. A chamada ação direta por omissão, que é um controle abstrato de normas, e o mandado de injunção, um remédio que assume um caráter individual, mas também coletivo. Esse é um ponto relevante para anotação. A outra nota que me parece importante diz com a discussão que ainda hoje temos sobre direitos e garantias individuais, especialmente os direitos de liberdade. Se olharmos esses anos todos, vamos ver que vivemos uma crise, que está muito presente, inclusive, agora, certo conflito no que diz respeito às defesas tradicionais do direito de liberdade.

O Tribunal, para ficarmos com uma memória mais recente, em 2008, 2009, enfrentou uma grave crise no debate em relação ao combate à corrupção, vis-à-vis a proteção dos direitos e garantias individuais. Uso abusivo, por exemplo, de algemas. Isto foi um debate específico. E agora, com a adoção de novos instrumentos de meios de prova, como a chamada colaboração ou delação premiada, as prisões provisórias alongadas, o Tribunal de novo se vê às voltas com esse debate. Este é um debate permanente. Se olharmos também o texto constitucional, vamos verificar que praticamente a metade daquilo que nós chamamos núcleo dos nossos direitos fundamentais, a partir do inciso 35 até mais ou menos o 77, nós vamos ter normas de caráter processual ou procedimental de proteção. A ênfase ao uso do habeas corpus, a ênfase na proteção dos direitos dos presos.

Em suma, há toda uma temática em torno deste assunto e, nós, neste momento, discutimos no Brasil, inclusive no contexto dessa operação que hoje é muito conhecida, relacionada à Petrobras, a questão dos direitos e garantias individuais, vis-à-vis a necessidade de combate à corrupção. Portanto, aqui não é novidade, se trata do uso do velho e tradicional habeas corpus.

Devo fazer um registro e aí anotar inclusive a participação decisiva do ministro Lewandowski que os novos instrumentos que surgiram, inclusive o mandado de segurança coletivo, nos levaram a mimetizar agora a coletivização do habeas corpus e em um caso bastante singular.

A legislação estabeleceu, não faz muito tempo, que se deveria evitar a prisão provisória das mães com crianças pequenas até doze anos e também das gestantes. Aqui, como sabemos, e nesse cenário, como se sabe, no Brasil, à distância, especialmente no sistema prisional, a distância entre norma e realidade é muito grande, abissal.

A realidade dos nossos presídios – todos que já se debruçaram sobre isso sabem – é realmente uma realidade muito chocante. E também a Defensoria Pública, que também é um órgão agora pensado, fortalecido sob 1988, a Defensoria Pública da União, entrou com um habeas corpus coletivo. Tanto quanto os olhos alcançam, é o primeiro caso de uso de habeas corpus coletivo com esse viés. Isto foi para a turma, nós decidimos. O relator foi o ministro Lewandowski e o Tribunal, o colegiado, por unanimidade deferiu a ordem determinando que todos os juízes que tivessem mães presas, mães de crianças até doze anos ou lactantes, bem como com filhos maiores deficientes, que fossem para a prisão domiciliar.

Aqui é um caso também que podemos dizer de um ativismo positivo. Porque estamos, sem dúvida nenhuma, realizando um modelo que a Constituição reclama. É verdade, porém, como também sabemos, que aqui o Tribunal faz um pouco, pelo menos, de uma micropolítica pública. E tem dificuldade de fazer a implementação. Toda hora chegam pedidos para que essa decisão seja confirmada ou atendida topicamente. Tanto é que discutíamos na turma, há algum tempo, a necessidade…

Este é um ponto que eu gostaria de chamar a atenção. Na medida em que participamos um pouco de reformulação ou controle ou redirecionamento de políticas públicas, talvez tenhamos que mudar também o nosso approach em relação a isso. Discutíamos se não é necessário, por exemplo, ter um juiz auxiliar incumbido de fiscalizar o cumprimento dessa decisão. Esse é um caso singular, que já se colocou também no que diz respeito a decisões que tomamos para uma mudança no sistema prisional. Gostaria de reafirmar que o Judiciário tem um papel no Brasil, hoje bastante importante. Às vezes há queixas e, talvez, queixas pertinentes em relação a algum excesso, especialmente de decisões de caráter liminar ou provisórias.

Mas, ao mesmo tempo, há decisões, inclusive políticas, relevantes, que foram tomadas graças a um, vamos dizer assim, certo ativismo. Eu diria também, nesse ambiente, de um ativismo benfazejo, do Judiciário. Vamos pegar a última crise. E aqui há também uma singularidade. A última crise governamental, em que se colocou o impeachment da presidente Dilma como solução política. Aqui uma nota é importante: nós estamos vivendo este grau de estabilidade institucional em um grau, talvez, de alguma instabilidade política. Nós temos trinta anos de democracia, quatro presidentes eleitos, só dois deles terminaram o mandato. É um fenômeno que, alguém já disse, de uma certa parlamentarização do presidencialismo. É a ideia da parameterization of presidentialism.

Estamos usando o impeachment, talvez, com outro approach, com outro viés. Mas o curioso neste último embate, neste último caso, é que, até agora, nós não temos uma nova lei do impeachment. A lei vem dos anos 1950. Portanto, adaptada a outra Constituição. Se o Supremo não interviesse para regular a temática e dizer como se interpretaria aquela lei à luz da nova Constituição, portanto, fazendo, a grosso modo, uma lei do impeachment para o caso ad hoc, muito provavelmente nós teríamos mais impasse naquele processo.

O papel do Tribunal foi, portanto, importante para desatar o nó. Então, a mim, me parece que todas essas questões precisam ser discutidas. É claro, agora acho que é o momento – e acho que é até um momento importante para estarmos aqui fazendo esse diálogo – de pensarmos nos próximos trinta anos.

Certamente aí com os novos presidentes, planejar o Judiciário desses próximos trinta anos. Nós não podemos lidar com essa massa enorme de processos. O Brasil se tornou, em certa medida também, um país Judiciário-dependente. Muitas das questões dependem do Judiciário e, claro, que nós temos que incentivar outros processos decisórios e outros modos de solução de demandas.

O ministro Lewandowski fez referência a esse célebre acordo feito entre os bancos e os poupadores, uma questão imensa, que teve grande repercussão. Muito provavelmente nós temos que fazer esse tipo de encorajamento. Eu diria, se eu pudesse fazer uma sugestão às novas direções, que nós teríamos que fazer o esforço de desjudicialização, de encorajamento de soluções boas, autônomas nesse processo.

Mas é evidente que hoje temos ainda essa judicialização que tem a ver com o que o ministro Lewandowski falou, com essa consciência cidadã. As pessoas passaram a reivindicar mais seus direitos e nós tivemos realmente essa explosão de demandas que leva, é claro, à disfuncionalidades do próprio processo judicial. Eu queria, portanto, encerrar dizendo que é preciso que nós pensemos em uma nova organização do Poder Judiciário.

Algumas coisas estão acontecendo de maneira positiva. Por exemplo, a recente reforma trabalhista, segundo as anotações, pelo menos que têm sido feitas nos jornais, está levando a uma diminuição das demandas na área do trabalho e ao uso de meios alternativos de solução de conflitos. É possível que outras reformas em outras searas, por exemplo, no direito do consumidor ou em outros setores também estimulem essa dimensão. Os juízes não precisam ficar preocupados porque há trabalho para todo mundo. Continuam a serem demandados em questões relevantes. É preciso planejar os próximos trinta anos da Constituição de 1988 e claro, também, o papel do Judiciário. Muito obrigado.

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