Ambiente Jurídico

Os tribunais de contas e o licenciamento ambiental de obras públicas

Autor

  • Talden Farias

    é advogado professor associado da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) professor adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e membro da Comissão de Direito Ambiental do IAB.

14 de julho de 2018, 11h08

Spacca
A Constituição Federal de 1988 procurou consolidar as atribuições e a independência dos tribunais de contas enquanto órgãos de controle externo responsáveis pela apreciação das contas dos entes e órgãos públicos. Além de verificar a questão contábil, financeira, orçamentária e patrimonial propriamente ditas, tais cortes observam também critérios de legalidade, legitimidade, economicidade e operacionalidade na fiscalização das pessoas físicas ou jurídicas que responsam ou que assumam obrigações em nome do poder público[1].

Além do Tribunal de Contas da União, há no Brasil 26 tribunais de contas estaduais, um Tribunal de Contas do Distrito Federal, três tribunais de contas estaduais dos municípios (Bahia, Goiás e Pará) e dois tribunais de contas municipais (Rio de Janeiro e São Paulo). Essas cortes possuem atuação, estrutura e responsabilidades semelhantes, pois existe certa simetria no seu modo de agir em razão da fundamentação constitucional comum[2].

Como o objetivo do presente artigo é analisar o papel dos tribunais de contas no que diz respeito ao licenciamento ambiental, é importante destacar que essas cortes também possuem atribuições em matéria de meio ambiente. Ao dispor sobre a obrigação do poder público de proteger o meio ambiente, o caput do artigo 225 da Constituição Federal não quis restringir essa obrigação ao Poder Executivo ou a algum órgão específico, pois esse é um dever que perpassa qualquer Poder ou órgão na medida de suas atribuições e possibilidades.

Em se tratando especificamente do licenciamento ambiental, que é apontado por parte significativa da doutrina como o mais importante instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente, é claro que existe um papel relevante a ser cumprido. É que, de acordo com o artigo 10 da Lei 6.938/81, toda atividade efetiva ou potencialmente poluidora está sujeita ao licenciamento ambiental prévio para poder se instalar e operar, independente de ser de responsabilidade da administração pública ou da iniciativa privada[3].

O licenciamento ambiental deve ser compreendido como o processo administrativo no decorrer ou ao final do qual a licença ambiental poderá ou não ser concedida pelo órgão ambiental competente, seja ele federal, estadual ou municipal. O artigo 19 do Decreto 99.274/90 dispõe que em regra o processo se desdobra em três etapas, devendo cada uma dessas três etapas culminar com a concessão do ato administrativo compatível, que no caso é a Licença Prévia, a Licença de Instalação e a Licença de Operação[4].

A ausência ou o descumprimento dos termos da licença ambiental é responsabilizável administrativa e criminalmente nos termos do Decreto 6.514/2008 e do artigo 60 da Lei de Crimes Ambientais, a despeito de ter ou não ocorrido dano ao meio ambiente[5]. Impende dizer que por atividade sem licença ambiental se compreende também aquelas cuja licença se venceu ou cujos limites foram extrapolados, pois em ambas as situações a falta da chancela legal é inquestionável.

A ideia de licenciamento ambiental está ligada a uma presunção legal de regularidade ambiental: parte-se do pressuposto de que a atividade licenciada não degrada, e de que a atividade não licenciada degradada. Cuida-se, obviamente, de um juízo relativo, como, aliás, é toda presunção jurídica, uma vez que na prática os seguintes casos podem acontecer: i) a atividade não licenciada obedece aos padrões de qualidade ambiental, ii) a atividade licenciada não cumpre as condicionantes (hipótese mais comum) e iii) a atividade licenciada cumpre as condicionantes mas gera degradação ambiental mesmo assim.

No Brasil a administração pública é responsável por um número significativo de atividades sujeitas ao licenciamento ambiental, haja vista o tamanho da presença do Estado na economia nacional. É o caso das obras públicas, as quais causam ou que podem causar impactos ao meio ambiente e que por isso devem buscar a chancela dos órgãos ambientais[6].

Se não há diferença entre uma obra pública e uma obra privada no que diz respeito ao licenciamento ambiental, impende dizer que no primeiro caso a ausência da licença ambiental configura uma presunção não apenas de dano ambiental, mas também de lesão ao erário. Com efeito, o prejuízo financeiro é inevitável, porque a imposição de multa simples e de embargo não é uma faculdade do órgão ambiental competente, mas uma obrigação.

Na verdade, os prejuízos imediatos são os seguintes: i) pagamento de multa simples cujo valor pode variar de R$ 500 a R$ 10 milhões e ii) despesa com a manutenção de obra embargada, cujos custos costumam ser bastante representativos. Contudo, há ainda gastos com o pagamento de possíveis compensações ambientais, quando for constatado dano ao meio ambiente, bem como com os projetos e procedimentos de regularização ambiental.

Tudo isso, é certo, a ser pago pelo bolso do contribuinte. Porém, existe ainda outra dimensão dessa novela a ser considerada: a coletividade também sofre ao deixar de receber uma obra da qual necessita, seja uma adutora, um aterro sanitário, uma barragem ou um ginásio poliesportivo.

No entanto, como algumas situações não são passíveis de regularização, a exemplo de uma construção que não se enquadre nas hipóteses legais de intervenção em área de preservação permanente ou no bioma mata atlântica, a ausência do licenciamento ambiental nesses casos significa a perda de todo o dinheiro investido. Imagine-se, em não sendo mais possível retomar a construção de uma obra pública relevante, o estrago em termos de dinheiro e de tempo para a administração pública.

Não é por outra razão que o inciso VII do artigo 12 da Lei de Licitações exigiu a consideração do impacto ambiental na análise dos projetos básicos e nos projetos executivos[7]. Logo, é direta a relação entre a licitação e o licenciamento ambiental, visto que algum tipo de análise ou de chancela deve acontecer previamente por parte do órgão ambiental competente.

Sendo assim, os tribunais de contas têm, sim, um papel deveras relevante no que diz respeito ao licenciamento ambiental, seja fiscalizando, alertando ou até responsabilizando os gestores públicos que não compreenderem a importância do instrumento. É patente que a consideração técnica sobre o licenciamento continuará sendo feita pelos órgãos ambientais, cabendo a tais cortes apenas verificar se a licença ambiental foi obtida em tempo hábil a fim de evitar prejuízos para a administração pública e a coletividade.


[1] Artigo 70. A fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da União e das entidades da administração direta e indireta, quanto à legalidade, legitimidade, economicidade, aplicação das subvenções e renúncia de receitas, será exercida pelo Congresso Nacional, mediante controle externo, e pelo sistema de controle interno de cada Poder. Parágrafo único. Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.

Artigo 71. O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União, ao qual compete: I – apreciar as contas prestadas anualmente pelo Presidente da República, mediante parecer prévio que deverá ser elaborado em sessenta dias a contar de seu recebimento; II – julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público federal, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; III – apreciar, para fins de registro, a legalidade dos atos de admissão de pessoal, a qualquer título, na administração direta e indireta, incluídas as fundações instituídas e mantidas pelo Poder Público, excetuadas as nomeações para cargo de provimento em comissão, bem como a das concessões de aposentadorias, reformas e pensões, ressalvadas as melhorias posteriores que não alterem o fundamento legal do ato concessório; IV – realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II; V – fiscalizar as contas nacionais das empresas supranacionais de cujo capital social a União participe, de forma direta ou indireta, nos termos do tratado constitutivo; VI – fiscalizar a aplicação de quaisquer recursos repassados pela União mediante convênio, acordo, ajuste ou outros instrumentos congêneres, a Estado, ao Distrito Federal ou a Município; VII – prestar as informações solicitadas pelo Congresso Nacional, por qualquer de suas Casas, ou por qualquer das respectivas Comissões, sobre a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial e sobre resultados de auditorias e inspeções realizadas; VIII – aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, que estabelecerá, entre outras cominações, multa proporcional ao dano causado ao erário; IX – assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; X – sustar, se não atendido, a execução do ato impugnado, comunicando a decisão à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal; XI – representar ao Poder competente sobre irregularidades ou abusos apurados. § 1o No caso de contrato, o ato de sustação será adotado diretamente pelo Congresso Nacional, que solicitará, de imediato, ao Poder Executivo as medidas cabíveis. § 2o Se o Congresso Nacional ou o Poder Executivo, no prazo de noventa dias, não efetivar as medidas previstas no parágrafo anterior, o Tribunal decidirá a respeito. § 3o As decisões do Tribunal de que resulte imputação de débito ou multa terão eficácia de título executivo. § 4o O Tribunal encaminhará ao Congresso Nacional, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades.

[2] Artigo 75. As normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios. Parágrafo único. As Constituições estaduais disporão sobre os Tribunais de Contas respectivos, que serão integrados por sete Conselheiros.

[3] Artigo 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores ou capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental dependerão de prévio licenciamento ambiental.

[4] Artigo 19. O Poder Público, no exercício de sua competência de controle, expedirá as seguintes licenças: I – Licença Prévia (LP), na fase preliminar do planejamento de atividade, contendo requisitos básicos a serem atendidos nas fases de localização, instalação e operação, observados os planos municipais, estaduais ou federais de uso do solo; II – Licença de Instalação (LI), autorizando o início da implantação, de acordo com as especificações constantes do Projeto Executivo aprovado; e III – Licença de Operação (LO), autorizando, após as verificações necessárias, o início da atividade licenciada e o funcionamento de seus equipamentos de controle de poluição, de acordo com o previsto nas Licenças Prévia e de Instalação.

[5] Artigo 66. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar estabelecimentos, atividades, obras ou serviços utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, em desacordo com a licença obtida ou contrariando as normas legais e regulamentos pertinentes: Multa de R$ 500,00 (quinhentos reais) a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Parágrafo único. Incorre nas mesmas multas quem: I – constrói, reforma, amplia, instala ou faz funcionar estabelecimento, obra ou serviço sujeito a licenciamento ambiental localizado em unidade de conservação ou em sua zona de amortecimento, ou em áreas de proteção de mananciais legalmente estabelecidas, sem anuência do respectivo órgão gestor; e II – deixa de atender a condicionantes estabelecidas na licença ambiental.

Artigo 60. Construir, reformar, ampliar, instalar ou fazer funcionar, em qualquer parte do território nacional, estabelecimentos, obras ou serviços potencialmente poluidores, sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes, ou contrariando as normas legais e regulamentares pertinentes: Pena – detenção, de um a seis meses, ou multa, ou ambas as penas cumulativamente.

[6] O artigo 1º da Resolução n. 01/86 do CONAMA dispõe o seguinte: Para efeito desta Resolução, considera-se impacto ambiental qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia resultante das atividades humanas que, direta ou indiretamente, afetam: I – a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II – as atividades sociais e econômicas; III – a biota; IV – as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente; V – a qualidade dos recursos ambientais.

[7] Artigo 12. Nos projetos básicos e projetos executivos de obras e serviços serão considerados principalmente os seguintes requisitos: (…) VII – impacto ambiental.

Autores

  • Brave

    é advogado e professor da UFPB, mestre em Ciências Jurídicas (UFPB), doutor em Recursos Naturais (UFCG) e em Direito da Cidade (Uerj). Autor de publicações nas áreas de Direito Ambiental e Minerário.

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