Opinião

Decisão de Laurita Vaz que nega domiciliar a mãe é o desmonte de um avanço

Autores

  • Marina Dias

    é advogada associada no escritório Damiani Sociedade de Advogados master of laws em Direito Societário e pós-graduada em Compliance e em Direito Penal Econômico e Europeu.

  • Daniella Meggiolaro

    é advogada criminal vice-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e presidente da Comissão de Direito Penal da OAB-SP.

14 de julho de 2018, 6h27

Há momentos em que o Judiciário escancara sua incapacidade de dialogar com o mundo real e de calcular os efeitos nefastos que uma decisão pode ter na vida de milhões de pessoas, inclusive nas gerações futuras. São ocasiões em que construções sociais complexas e fundamentais para o avanço da Justiça e da democracia perdem lugar para julgamentos morais, circunstanciais e irresponsáveis.

Nesta semana, testemunhamos um desses episódios: em decisão liminar, a presidente do Superior Tribunal de Justiça, Laurita Vaz, primeira mulher a ocupar o cargo, negou a uma mãe presa o direito de responder ao processo em prisão domiciliar por supostamente guardar drogas em sua casa. A notícia com trechos do despacho, que ainda não foi publicado integralmente, foi dada pela assessoria de imprensa do STJ.

O pedido formulado pela defesa estava respaldado na histórica decisão prolatada pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que concedeu Habeas Corpus coletivo para que todas as presas grávidas ou mães de crianças com até 12 anos respondam ao processo em prisão domiciliar, como garante o artigo 318 do Código de Processo Penal.

Menos de seis meses depois da determinação do STF, celebrada por justamente fazer cumprir o Marco Legal da Primeira Infância, a ministra lançou mão de argumentos morais e de gênero perversos para julgar a capacidade daquela mulher de exercer a maternidade. Ao afirmar, por exemplo, que a acusada não provou imprescindibilidade para o cuidado dos filhos, reforçando o argumento do desembargador Eugênio Achille Grandinetti, do TJ-PR, onde o caso tramita, ignorou por completo que uma mãe é sempre imprescindível para o desenvolvimento de seus filhos e que sua ausência tem impactos irreversíveis e incalculáveis na estrutura familiar.

Além de desrespeitar o acórdão do STF, que afirma que, “para apurar a situação de guardiã dos filhos da mulher presa, dever-se-á dar credibilidade à palavra da mãe”, a ministra perdeu de vista que o espírito do legislador, no caso do Marco Legal, era dar total prioridade ao convívio entre mães e filhos.

A ministra também apagou de sua decisão o reconhecimento, por parte do STF, de que a situação do encarceramento feminino no Brasil é gravíssima e demanda uma atuação responsável e comprometida do Judiciário. Segundo dados do Ministério da Justiça de junho de 2016, 62% das mulheres presas no Brasil respondem por crimes relacionados ao tráfico de drogas.

Nos últimos seis meses, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) fez um mutirão carcerário no presídio feminino de Pirajuí, em São Paulo, para dar efetividade ao Marco Legal da Primeira Infância. Foram atendidas cerca de 200 mulheres, a grande maioria em situação de extrema vulnerabilidade, cujas vidas foram marcadas por histórias de violência de gênero. Muitas delas respondem sozinhas pelo sustento do lar — fator que não pode ser negligenciado. A realidade que os papéis não mostram é que grande parte dessas mulheres busca no pequeno tráfico uma fonte de renda para alimentar seus dependentes. E tantas outras são presas no lugar de seus companheiros por estarem em casa cuidando de seus filhos.

A decisão do STJ nesse caso não importa apenas por tudo o que ignora, mas também pela mensagem que passa. O acompanhamento que está sendo feito pelo IDDD sobre o cumprimento do HC coletivo mostra que a exceção excepcionalíssima prevista no acórdão do STF[1], que a ministra evoca ao indeferir o pedido de liminar, corre sério risco de virar a regra em instâncias inferiores, e a sentença do desembargador do TJ-PR é apenas um exemplo. Com sua decisão, Laurita Vaz respaldou e reforçou a inversão de valores nas pontas do sistema.

É preciso romper com a perpetuação da violência, e os fatos mostram que o encarceramento massivo de mulheres, particularmente as que são mães, é absolutamente incompatível com esse objetivo, com consequências desastrosas para toda a sociedade. Não é alarmista dizer que a prática do Judiciário, dessa maneira, está jogando por terra um dos avanços mais substanciais em matéria de política penal e de atenção à primeira infância que o Brasil já fez.


[1] “Excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes” ou situações excepcionalíssimas devidamente fundamentadas.

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