Diário de Classe

Gincana institucional: o novo pacto antirrepublicano no Brasil

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14 de julho de 2018, 8h00

Se alguém ainda tinha dúvidas sobre a gravidade da situação brasileira, o último domingo (817) deve ter servido para escancarar a nossa deterioração jurídico-política. Não que uma sequência de decisionismos judiciais (para todos os gostos) seja algo inteiramente novo em nosso país. Nossa prática jurídica já opera com esse mal há muito tempo, tendo criado várias artimanhas para acomodá-lo. Estamos longe de ser ingênuos quanto à violência das disputas pelo poder no país. Aliás, já em 2016[1] se falava em supremacia judicial consentida, uma espécie de conveniente moderação entre os Poderes sobre quem tem mais autoridade e sob quais circunstâncias. Então, qual a novidade? A novidade é que a coisa toda virou uma gincana, uma espécie de competição cujas regras exigem de seus participantes uma exposição crescente ao ridículo[2].

Não há nada mais perigoso para a autoridade do que se tornar ridícula. E quando todas as autoridades concorrem para jogar as instituições no ridículo, o que nos aguarda?

O republicanismo nasceu para conter exageros passionais na vida pública, que poderiam jogar um país numa guerra de facções. Atualmente, o arranjo e os atores brasileiros estão conseguindo produzir uma curiosa antirrepública, em que a guerra de facções e as passionalidades não só passam ao centro do sistema como são espetacularizadas. Nessa conjuntura, o surpreendente seria alguém abrir mão de suas convicções/interesses pessoais em favor do Direito, ao menos pelo temor de comprometer as próprias condições da convivência democrática.

Ao que tudo indica, o pai fundador dessa antirrepública brasileira foi Eduardo Cunha. Não que ele seja o vilão cujas ações, por força prática, o tornem o único responsável pela crise atual. Se não existe república de um homem só, tampouco corrosão republicana que tenha único culpado. Contudo, talvez seja possível dizer que ele foi seu mito (des)civilizador. A questão aqui é a dimensão simbólica, o paradigma que ele ajudou a instaurar. Como bem observou Marcos Nobre[3], normalmente, quando um ator político atraía muitos ataques, ele se afastava dos holofotes até as coisas esfriarem. Com essa “moderação” à brasileira, o sistema ia se reacomodando. Cunha reconfigurou esse quadro. Ao ser atacado publicamente, forçava sua posição o máximo que podia, subia ao lugar mais visível da disputa, e de lá passava à ofensiva contra todos. Nesse nível de ousadia, foi uma tática inédita. Funcionou bem até que passou a ser adotada por todos. Ficou patente a falta de incentivos para a “autocontenção”, por mais precária (e até hipócrita) que ela pudesse ser. Assim, para não se sentir perdendo, todos os demais atores começaram a forçar as regras e jogar pesado, sem importar quão absurda pudesse se tornar a escalada. Eis os fundamentos do novo pacto nacional, vigente nos últimos anos.

Não deixa de ser irônico que aquele a quem todos aprenderam a criticar tenha se tornado o grande modelo atitudinal, inclusive no âmbito do Direito. Pensem nos vários momentos recentes quando atores jurídicos não aceitaram “perder”: decidiram jogar pesado — arriscando esculhambar tudo — e foram aumentando a aposta uns contra os outros ao serem desafiados. Isso é muito pior do que no caso político, já que atores jurídicos nem sequer deveriam estar “competindo”. Esquecem que, para os árbitros, que, em tese, não torcem para time algum, a exposição ao ridículo é bem mais perigosa. E vergonhosa. Se, no começo, ganharam simpatia de uma das torcidas, com o tempo, ninguém acredita mais no jogo do árbitro[4].

A reação do auditório é tanto cognitiva quanto emocional: descrédito, escárnio, zombaria, a chamada vergonha alheia — “É sério que eles vão fazer isso?”. A gincana suspende o senso do ridículo dos jogadores, criando uma competição cada vez mais absurda para quem assiste. Todo mundo quer ganhar, a qualquer custo. O problema é que, na gincana institucional, paramos de levar o Direito a sério[5], pressuposto silencioso de toda a integração social contemporânea. Não por acaso, pesquisas recentes de opinião pública têm mostrado o pessimismo com relação às instituições brasileiras[6]. Embora o Judiciário ainda não tenha sido gravemente atingido, não parece despontar como salvador da nação. Para agravar, candidatos já propõem mudanças profundas na composição das cortes, como lembrou Lenio Streck na sua última coluna.

Não estamos sendo catastrofistas, mas insistindo numa previsão óbvia, muitas vezes invisível para quem só analisa as linhas de ação individuais. Os comportamentos começam a se coordenar para o prejuízo de todos. O esboço de soluções exige que os atores jurídicos se coloquem minimamente fora da disputa, justamente para repensá-la, isto é, sem perder de vista que ela não se resolve espontaneamente, por mera acomodação.

Por tudo isso, não basta recuperarmos a (falsa) estabilidade de antes[7]. Um apaziguamento sustentável exige a canalização dos conflitos e o compartilhamento de bases racionais para dirimi-los, honrando os princípios constitutivos de nossa comunidade[8]. Ou seja: precisamos de critérios públicos para o controle das decisões e de modos de operacionalizá-los. Sem isso, a jurisprudência segue caracterizada por uma confusão cotidiana até explodir em episódios mais visíveis[9].

Se há algo bom a extrair dessa história, é que, talvez agora, possamos concordar: “As instituições não estão ‘funcionando normalmente’”; há uma continuidade nos problemas que assistimos, já conhecidos pelo “andar de baixo”, que tem que lidar com mandonismos do “andar de cima”; e todo este quadro está se agravando rapidamente.


[1] Esse foi o tema da tese de doutorado de Clarissa Tassinari, defendida em 2016, indicando que, para além da judicialização da política e do ativismo judicial, o Judiciário brasileiro vivenciava um novo fenômeno: viver em supremacia, como produto de autorizações que ocorrem em três níveis político, social (simbólico) e jurídico (interpretativo).
[2] O ridículo vem se tornando categoria para análise de nossas misérias, como em: TIBURI, Márcia. Ridículo político: uma investigação sobre o risível, a manipulação da imagem e o esteticamente correto. São Paulo: Record, 2017. A autora dedica algumas páginas ao “ridículo jurídico”.
[3] Em palestra ministrada na Unisinos, em São Leopoldo (RS), no dia 12 de março de 2015.
[4] Veja-se o que escreve sobre o “jogo ao arbítrio do marcador”: HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p.183-187.
[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
[6] Por exemplo, veja-se os seguintes levantamentos feitos pelo Instituto de Pesquisas Datafolha: Partidos, Congresso e Presidência são instituições menos confiáveis do país (15/6/2018); Cai percepção de que corrupção irá diminuir após Lava Jato (17/4/2018); e 92% acreditam que Justiça trata melhor os ricos do que os pobres (26/6/2017).
[7] Veja-se a discussão levantada por Streck sobre a redação que tinha no projeto do CPC o artigo 926 e outros que o operacionalizavam. Reduziam-se à busca pela estabilidade da jurisprudência e vinculavam apenas os tribunais inferiores. Ou seja: reduzia-se a questão a uma concordância formal com o que quer que o “andar de cima” determinasse livremente a cada momento. A partir de sugestões do autor, passou-se a prever o dever de manutenção de coerência e integridade da jurisprudência, cujo conteúdo (a holding das decisões) vinculava a todos, inclusive os órgãos que tivessem formado o entendimento, devendo-se justificar sua eventual superação. STRECK, Lenio Luiz. O novo Código de processo civil (CPC) e as inovações hermenêuticas — O fim do livre convencimento e a adoção do integracionismo dworkiniano. Revista de Informação Legislativa, v. 52, p. 33-51, 2015.
[8] DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jeferson Luiz Camargo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
[9] Insistimos na força da interpretação e na deliberação racional, em um Direito que “faça sentido”, sem se abandonar à mera disputa de poder.

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