Opinião

A condenação do Brasil e as dificuldades do caso Vladimir Herzog

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13 de julho de 2018, 7h17

A condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) foi recebida por muitos como um sopro de justiça diante da atrocidade praticada contra Vladimir Herzog. 25 de outubro de 1975 é a data em que se deu o covarde e cruel assassinato do destacado jornalista, que voluntariamente se apresentou às autoridades para ser inquirido. A farsa montada para encobrir o vil assassinato indignou a todos. O rabino Sobel, num ato de coragem e independência, não o enterrou na ala dos suicidas, como é o costume na religião judaica. O saudoso cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, empenhado na luta contra a ditadura, celebrou memorável missa ecumênica na Catedral da Sé. Em 1978, um jovem juiz, que depois veio a ser presidente do Tribunal Regional Federal de São Paulo, Marcio Mores, obrigou a União a indenizar a família por danos materiais e morais. Para a época, a sentença foi considerada um marco contra os desmandos da ditadura e dava sinais de um novo Judiciário que parecia querer sair do jugo militar.

Com a redemocratização do país, logo em 1995, no governo Fernando Henrique Cardoso, criou-se a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos, o que implicou no reconhecimento pelo Estado do assassinato de Herzog. Já no governo da presidente Dilma Rousseff, em 2012, instalou-se a Comissão Nacional da Verdade, que culminou na desconstrução de “verdades” estabelecidas no regime militar, sendo reconhecidas pelo Estado as atrocidades praticadas e determinada a indenização à família. Em 2012, foi determinada a retificação da causa mortis de Vladimir Herzog para maus-tratos seguido de morte, e não mais suicídio.

Certo, porém, é que a punição dos algozes, medida de justiça para com a sociedade e, sobretudo, em relação aos familiares, nunca se deu. Sim, a Lei da Anistia, promulgada em 1979, era — e ainda é — um óbice ao exercício da repressão penal. No caso Herzog há outros complicadores.

Depois de uma entrevista concedida à revista IstoÉ Senhor, de 22 de março de 1992, sob o título “Eu, Capitão Ramiro, interroguei Herzog”, o promotor de Justiça do I Tribunal do Júri de São Paulo Luiz Antonio Marrey, que mais tarde veio a ser procurador-geral de Justiça no governo Covas, requisitou a abertura de inquérito policial, tomando referida entrevista como prova nova.

Em 13 de outubro de 1992, o Tribunal de Justiça de São Paulo, ao julgar o Habeas Corpus impetrado em favor do alcunhado “Capitão Ramiro”, considerou plenamente justificada a reabertura da investigação, “por ocorrência de fato novo e superveniente, fruto daquela edição semanal”. Todavia, determinou o seu trancamento por causa da anistia. O relator do HC foi o então juiz substituto de segundo grau Péricles Piza.

Da decisão do TJ-SP, houve recurso especial do Ministério Público estadual para o Superior Tribunal de Justiça e, aos 18 de agosto de 1993, ao julgá-lo (REsp, n. 33.782), a 5ª Turma, sem divergência, não o conheceu por falta de pressuposto processual (prequestionamento da matéria relativa à idoneidade do writ para trancar inquérito policial). Como quer que seja, o parecer da Subprocuradoria-Geral da República, bem como o voto vencedor do ministro Assis Toledo, já alertavam para a incompetência da Justiça estadual para tratar da matéria. Importante destacar que o recurso não atacava a aplicação da Lei da Anistia, mas apenas a suposta inidoneidade do HC para trancar o inquérito.

Foi somente em 5 de março de 2008, portanto 15 anos após aquela decisão, que membros do Ministério Público Federal sem atribuição para cuidar de assuntos criminais despertaram e solicitaram que um colega de São Paulo, com atribuição para matéria penal, iniciasse uma investigação sobre o assassinato de Vladimir Herzog. Porém, em alentada manifestação, o procurador da República Fábio Elizeu Gaspar, revelando independência funcional, rechaçou a pretensão de se abrir a investigação, pois, mesmo reconhecendo a competência da Justiça Federal, entendeu ocorrer a prescrição e a existência de coisa julgada em sentido material, ambas a impedir a nova investigação. Tal manifestação foi acolhida pela juíza federal da 1ª Vara Criminal Federal de São Paulo, Paula Mantovani, e arquivada a pretensão investigatória sem qualquer recurso.

O procurador da República, com propriedade, sustentou que a garantia da coisa julgada (CF, artigo 5º, inciso XXXVI) prepondera sobre as regras de competência, uma vez que é garantia individual fundamental e alçada à condição de cláusula pétrea (CF, artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV). De resto, tal entendimento representa ponto pacificado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, como se vê da ementa do HC 83.346, relatado pelo ministro Sepúlveda Pertence (DJ 19/8/2005):

Inquérito policial: arquivamento com base na atipicidade do fato: eficácia de coisa julgada material. A decisão que determina o arquivamento do inquérito policial, quando fundado o pedido do Ministério Público em que o fato nele apurado não constitui crime, mais que preclusão, produz coisa julgada material, que — ainda quando emanada a decisão de juiz absolutamente incompetente —, impede a instauração de processo que tenha por objeto o mesmo episódio. Precedentes: HC 80.560, 1ª T., 20.02.01, Pertence, RTJ 179/755; Inq 1538, Pl., 08.08.01, Pertence, RTJ 178/1090; Inq-QO 2044, Pl., 29.09.04, Pertence, DJ 28.10.04; HC 75.907, 1ª T., 11.11.97, Pertence, DJ 9.4.99; HC 80.263, Pl., 20.2.03, Galvão, RTJ 186/1040.

Por outro lado, com o país redemocratizado e seu Judiciário independente, o STF, ao julgar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, julgou válida a Lei da Anistia. O ministro Eros Grau, antigo militante de esquerda e, portanto, insuspeito do ponto de vista ideológico para o tema, foi categórico ao dizer que a “chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia”. Dito de outra maneira, a Lei da Anistia, no cenário político da época, foi uma etapa essencial para a superação da ditadura. E mais, “a anistia da lei de 1979 foi reafirmada, no texto da EC 26/85, pelo Poder Constituinte da Constituição de 1988. Daí não ter sentido questionar-se se a anistia, tal como definida pela lei, foi ou não recebida pela Constituição de 1988; a nova Constituição a [re]instaurou em seu ato originário. A Emenda Constitucional n. 26/85 inaugura uma nova ordem constitucional, consubstanciando a ruptura da ordem constitucional que decaiu plenamente no advento da Constituição de 5 de outubro de 1988; consubstancia, nesse sentido, a revolução branca que a esta confere legitimidade. A reafirmação da anistia da lei de 1979 está integrada na nova ordem, compõe-se na origem da nova norma fundamental”.

Portanto, diferentemente do que ocorreu em outros países da América Latina, cujas leis de anistia foram julgadas inconstitucionais, no nosso caso, além de a anistia não ter sido uma farsa, mas uma conquista, como lembra Nilo Batista, veio a ser incorporada à nossa ordem constitucional democrática (cf. Notas introdutórias à Justiça de transição no Brasil, ed. Saraiva, 2010). Daí, muito antes, a expressiva manifestação do então vice-presidente do Conselho Federal da OAB, Sepúlveda Pertence, em expressivo parecer que fizera em nome da entidade, ao afirmar que “nem a repulsa que nos merece a tortura impede reconhecer que toda a amplitude que for emprestada ao esquecimento penal desse período negro de nossa História poderá contribuir para o desarmamento geral, desejável como passo adiante no caminho da democracia”.

Mas cabe perguntar: é saudável para a democracia brasileira, que enfrenta graves problemas, revogar a Lei da Anistia para punir os agentes da repressão de outrora? Se o pacto estabelecido à época não foi uma farsa e, mais que isso, veio a ser incorporado pela Constituição de 1988, rompê-lo revela-se um erro capaz de provocar mais instabilidade política e social, sobretudo num cenário de escassa legitimidade política do poder civil.

Por fim, não se pode esquecer que a nossa Constituição Federal de 1988, ao cuidar dos direitos e garantias fundamentais, no seu artigo 5º, inciso XLII, estabeleceu que a prática do racismo “constitui crime inafiançável e imprescritível”. Idem quando tratou da “ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático” (artigo 5º, inciso XLIV). Todavia, ao cuidar da tortura, crime então não tipificado na legislação ordinária brasileira, mesmo proclamando que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (artigo 5º, inciso III), limitou-se a estabelecer que essa prática será considerada pela lei crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia (artigo 5º, inciso XLIII). A Constituição, portanto, não qualificou o crime de tortura como imprescritível.

A tipificação da tortura como crime, sob esse nomen iuris, só veio a ocorrer na legislação ordinária brasileira com a edição da Lei 9.455/97, a qual, além de estabelecer as hipóteses do crime em foco, na linha da Constituição, fixou sua inafiançabilidade e a impossibilidade da concessão de anistia ou graça aos seus infratores, mas não a imprescritibilidade (cf. artigo 1º, parágrafo 6º). Afora isso, mesmo se considerando a tortura como crime contra a humanidade e, segundo os tratados internacionais, imprescritível, é bem de ver que o Brasil é não é signatário da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade e, por outro lado, só o foi da Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, sendo, portanto, inaplicável retroativamente, no Direito interno, regras de Direito Penal, como a prescrição, mais gravosas.

A própria Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH) estabelece no artigo 9º o princípio da legalidade e a retroatividade benéfica, excluindo de modo claro a incidência de tratamento penal mais gravoso do que o vigente à época dos fatos [Ninguém poderá ser condenado por atos ou omissões que, no momento em que foram cometidos, não constituam delito, de acordo com o direito aplicável. Tampouco poder-se-á impor pena mais grave do que a aplicável no momento da ocorrência do delito. Se, depois de perpetrado o delito, a lei estipular a imposição de pena mais leve, o delinquente deverá dela beneficiar-se].

Como se não bastasse, o artigo 29 do Estatuto de Roma do Tribunal Penal internacional, promulgado no Brasil aos 25 de setembro de 2002, dispõe que os crimes de competência da sua jurisdição não prescrevem. Considera crime contra a humanidade e imprescritível o delito de tortura (artigo 7º, n. 1, ‘f’) quando praticado “no quadro de um ataque generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque”. Também este, por força da irretroatividade da lei penal mais gravosa, não pode ser aplicado para fatos anteriores à sua internalização no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, ao cuidar da competência ratione temporis, o estatuto do TPI restringe a competência da referida corte ao julgamento dos crimes cometidos após a sua entrada em vigor (artigo 11, n. 1).

A democracia, gostemos ou não, só é verdadeira quando respeitadas as formas instituídas pelo Direito legitimamente posto. Fora daí, o que se tem é a prática do arbítrio. Por isso, direitos e garantias individuais não podem ser transpostos ou violados, máxime em matéria tão sensível quanto a penal. Os interesses coletivos na punição encontram limites que, em última análise, dizem com a própria sobrevivência da sociedade politicamente organizada e não podem ser invocados em detrimento do direito posto, por mais nobres que sejam os fins e os valores perseguidos.

Autores

  • é advogado criminalista, doutor e mestre em Direito Penal pela USP e ex-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Foi ouvido como perito jurista em nome do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso Herzog.

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