Opinião

Discurso de ódio, redes sociais e o Marco Civil da Internet (parte 1)

Autores

  • Fernando Lottenberg

    é advogado mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Confederação Israelita do Brasil.

  • Rony Vainzof

    é consultor em Proteção de Dados da FecomercioSP sócio do Opice Blum Bruno e Vainzof Advogados e coordenador do curso de pós-graduação em Direito Digital da Escola Paulista de Direito (EPD) e do curso de Extensão em LGPD da Fundação Instituto de Administração (FIA).

13 de julho de 2018, 6h14

As redes sociais (provedores de aplicação de internet) são usualmente fornecidas por entidades privadas, inseridas na grande rede mundial de computadores. Verdadeiros territórios digitais, são povoados por seus usuários, que aceitam as regras, expressas ou tácitas, formais ou informais, para utilização das respectivas funcionalidades e necessitam conviver dentro dos ditames legais, tanto quanto às normas (Termos de Uso) das plataformas utilizadas como do ordenamento jurídico do país em que presta o seu serviço[1].

Especificamente sobre o discurso de ódio, cujo conceito guarda profunda complexidade, operando uma rede de interconexões com outros conceitos como a liberdade de expressão, a intimidade, os direitos de minorias, a dignidade da pessoa humana e a preservação da identidade de grupos sociais[2], Winfried Brugger o define como: “O conjunto de palavras que traz o potencial de insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião; ou que tem a capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação”[3].

Visando aperfeiçoar a precisão do conceito, a doutrina criou diversas chaves de análise, tais como as tentativas de estigmatizar ou estereotipar grupos sociais, o uso de expressões que em si denotam ódio e podem ser capazes de gerar ameaças à ordem pública, atos de incitação ao ódio a grupos ou indivíduos identificados com grupos sociais, a negação de fatos históricos como o holocausto, crimes de ódio, dentre outras[4].

No Brasil, importante lembrar o processo e o julgamento de Sigfried Ellwanger Castan, editor revisionista do Rio Grande do Sul, acusado de prática do crime de racismo contra o povo judeu, em razão do teor de seu livro Holocausto – Judeu ou Alemão?, que representou marco histórico e paradigmático como leading case no Supremo Tribunal Federal[5], nos seguintes termos:

“O preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o 'direito à incitação ao racismo', dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica”.

Portanto, tratando-se de direitos humanos no Brasil, o denominado “Caso Ellwanger” é um marco na jurisprudência. Conforme leciona o professor Celso Lafer, que figurou como amicus curiae no caso, a Constituição de 1988, que tem como uma de suas notas identificadoras o Estado Democrático de Direito, sustenta “os valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos e contempla, entre os objetivos da República, o de promover o bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. No capítulo dos direitos, a Constituição brasileira consagra o princípio genérico da igualdade e da não-discriminação. Especifica também que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei”[6].

De fato, os principais provedores de aplicação têm papel relevante no debate acerca do discurso de ódio, em especial por três razões:

  • são nas plataformas dessas empresas que ocorrem grande parte dos incidentes relacionados ao discurso de ódio[7];
  • são essas empresas que têm sido demandadas a tomar decisões sobre a manutenção ou remoção de conteúdos acusados de incitar o ódio; e
  • são essas empresas que têm desenvolvido um quadro normativo-conceitual para orientar a remoção, consubstanciados em seus termos e condições de uso.

Assim, referidos provedores, de acordo com seu público-alvo e leis aplicáveis, podem — e devem — estabelecer as regras para a utilização das suas aplicações, bem como os freios e contrapesos tecnológicos no caso de violações, além dos procedimentos extrajudiciais, por meio eletrônico, para resolver conflitos entre seus usuários.

Também devem exercer, sempre de acordo com os princípios constitucionais e legais, com autonomia jurídica limitada, uma “autorregulação regulada”, resolvendo conflitos oriundos da sua plataforma, advertindo e excluindo usuários de acordo com a gravidade e a reincidência de condutas irregulares, assim como removendo conteúdos que considerem ilegais, a partir da sua ciência.

No entanto, o artigo 19, caput, da Lei 12.965/14, conhecida como Marco Civil da Internet, ao dispor que o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, flexibiliza a exigência da atuação diligente na apuração das solicitações extrajudiciais, em virtude de potenciais ilicitudes em seu próprio ambiente.

Ainda mais grave, no caso de não atendimento extrajudicial, o tempo para atendimento da solicitação, até a obtenção de ordem judicial, será necessariamente mais longo, o que tende a agravar exponencialmente o dano. E mais, o Poder Judiciário receberá demandas que deveriam ser resolvidas diretamente pelos provedores de aplicações, cujas receitas tendem a variar de acordo com o sucesso de suas funcionalidades e quantidades de usuários.

Desse modo, seja pela quantidade de novos conflitos, seja em razão da celeridade necessária pelo agravamento da lesão às vítimas no caso de morosidade, o Poder Judiciário deve ser uma segunda instância para solução de tais tipos de controvérsias cibernéticas — e apenas e tão somente para eventuais revisões dos procedimentos adotados ou das decisões administrativas adotadas pelos provedores.

Sobre o assunto, há um leading case na Europa, de 2014[8], conhecido por tratar do chamado “direito ao esquecimento”[9], que versa sobre a ponderação e proporcionalidade de inúmeros direitos e garantias fundamentais, como liberdade de expressão, acesso à informação, honra, imagem e nome[10]. O Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que o “direito ao esquecimento” pode ser exercido contra motores de busca na internet, e não apenas contra o provedor de hospedagem original, fonte dos dados; esse direito se estende não somente a dados falsos, equivocados ou obtidos ilicitamente, mas também os lícitos e verdadeiros, sendo necessário provar o prejuízo concreto ou o constrangimento ao sujeito envolvido, em decorrência da manutenção da informação do resultado além do prazo razoável; a remoção não é cabível caso exista interesse público que justifique a sua preservação[11].

Diante da referida decisão, o Google disponibilizou um formulário em suas páginas europeias de busca para receber pedidos de desindexação de resultados[12] e analisa extrajudicialmente as solicitações de acordo com os direitos de personalidade do solicitante, o interesse público e os direitos de acesso à informação[13].

Como pode haver conflitos entre direitos fundamentais na análise dos pedidos, o Google formou um conselho de especialistas por toda a Europa para avaliar os casos extrajudicialmente, por meio de contribuições do governo, empresas, mídia, academia, setor de tecnologia, entidades de proteção de dados, entre outras organizações, para debater uma temática de tamanha complexidade[14].

Dessa maneira, o Google estabeleceu um mecanismo interno para solução de controvérsias do “direito ao esquecimento”, da seguinte forma:

a) preenchimento do formulário disponível em sua plataforma;

b) resposta automática confirmando o recebimento da solicitação;

c) como as solicitações são avaliadas de acordo com o caso concreto, novas informações poderão ser solicitadas;

d) ao chegar a uma decisão, enviará um e-mail com a notificação do resultado. Caso a remoção não seja efetuada, fornecerá uma breve explicação;

e) para chegar à decisão, o Google verificará se a solicitação contém todas as informações necessárias; se o requisitante tem uma conexão com um país europeu, como residência ou cidadania; se o conteúdo reclamado aparece nos resultados da pesquisa para o nome do requisitante; se o nome do requisitante consta nas páginas solicitadas para remoção; se a página solicitada para remoção inclui informações inadequadas, irrelevantes, excessivas ou que deixaram de ser relevantes, com base nas informações fornecidas pelo requisitante; se há algum interesse público para que as informações permaneçam disponíveis nos resultados da pesquisa gerados com a pesquisa pelo nome do requisitante;

f) a equipe do Google que avalia as solicitações é treinada especialmente para esse propósito, utilizando caminhos de escalonamento dedicados para que a equipe sênior e os advogados do Google pronunciem uma decisão relacionada a casos de natureza complexa; e

g) caso seja negado o pedido, o reclamante poderá procurar a autoridade competente para contestar a decisão administrativa privada[15].

Ou seja, autorregulação regulada, como sistema de soluções de controvérsias, não pode ser forma alternativa para mitigar o discurso de ódio, mas iniciais, ao trazer maior eficiência diante de conteúdos tão sensíveis.

Nesse sentido, não há violação à livre manifestação do pensamento ou censura (artigos 5º, II, IV, IX, XIV, XXXIII e 220, parágrafos 1º, 2º e 6º da CF), bem como violação ao princípio constitucional da reserva de jurisdição (artigo 5º, XXXV da CF), pois, caso a remoção extrajudicial de conteúdo de ódio seja contestada, o Poder Judiciário poderá ser procurado para rever a decisão administrativa adotada.

*Clique aqui para ler a segunda parte deste artigo.


[1] O artigo 11 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) prevê que, em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverá ser obrigatoriamente respeitada a legislação brasileira. O parágrafo 2º que o disposto no caput aplica-se mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil.
[2] GAGLIARDONE, 2015. Countering Online Hate Speech. Unesco Series on Internet Freedom. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization, p. 10.
[3] BRUGGER, W. Proibição ou Proteção do Discurso do Ódio? Algumas Observações sobre o Direito Alemão e o Americano. Revista de Direito Público n.º 15, Jan-Fev-Mar/2007. P. 118.
[4] BROWN, A. Hate Speech Law: A Philosophical Examination. New York: Routledge, 2015 (Kindle Edition).
[5] Habeas Corpus 82.424, julgado em 2003 pelo Supremo Tribunal Federal.
[6] LAFER, Celso. O STF e o racismo: o caso Ellwanger, 2004. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz3003200409.htm. Acessado em 23 de junho de 2018.
[7] Em 2013, o Simon Wiesenthal Center, organização não governamental de proteção dos direitos humanos da comunidade judaica de Los Angeles, publicou estudo argumentando que a rede social Twitter foi responsável por ampliar a disseminação de mensagens de ódio em 30% em relação aos anos anteriores. Segundo reportagem do Washington Post, foram mais de 20 mil hashtags compartilhadas com conteúdo capaz de incitar ódio na rede social, enquanto no ano de 2012 haviam sido apenas 5 mil. Além de hashtags, foram apontados perfis ligados a movimentos neonazistas e com mensagens de ódio a determinados grupos em sua descrição.
[8] Em maio de 2014, uma decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (C-131/12, 13 de maio de 2014) estabeleceu que usuários podem solicitar que os motores de pesquisa removam resultados específicos de consultas que incluam o seu nome, nos casos em que os direitos de privacidade individuais ultrapassem os interesses na apresentação desses resultados. Cf. UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão C-131/12. Luxemburgo: 13 maio de 2014. Disponível em:: <http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=152065&doclang=PT>. Acessado em 27 de junho de 2016.
[9] São inúmeras as terminologias utilizadas nos EUA, como right to forget (direito de esquecer), right to be forgotten (direito de ser esquecido), right to be let alone (direito de ser deixado em paz), right to erasure (direito ao “apagamento”), rigth to delete (direito de apagar).
[10] É necessário analisar o caso em concreto para saber se, em determinado contexto, uma informação ostenta caráter pessoal ou não, de maneira que lhe seja aplicável o direito ao esquecimento. GRAUX, Hans; AUSLOOS, Jef; VALCKE, Peggy. The Right to be Forgotten in the Internet Era. Interdisciplinary Centre for Law and ICT – ICRI Research Papers. n. 11, pp. 01-20, Nov. 2012. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=2174896>. Acessado em 27 de junho de 2016. “Furthermore, the notion of ‘personal data’ itself is very ambiguous and should not be seen as a static concept. Information can be linked or unlinked to a person over time, vis-à-vis different actors and in different contexts, depending on its use and on how it is enriched with secondary data. A flexible and casuistic approach is required, taking into account the constant transformation of ‘data’ as such”.
[11] UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão C-131/12. Luxemburgo: 13 Curia. maio. 2014. Disponível em:: <http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=152065&doclang=PT>. Acesso em 27 de junho de 2016, p. 13. “Atendendo ao exposto, no âmbito da apreciação dos pedidos apresentados contra um tratamento como o que está em causa no processo principal, importa designadamente examinar se a pessoa em causa tem o direito de que a informação sobre a sua pessoa deixe de ser associada ao seu nome através de uma lista de resultados exibida na sequência de uma pesquisa efetuada a partir do seu nome. A este respeito, importa sublinhar que a constatação desse direito não pressupõe que a inclusão da informação em questão na lista de resultados cause prejuízo à pessoa em causa.
Na medida em que a pessoa em causa pode, tendo em conta os seus direitos fundamentais nos termos dos artigos 7.° e 8.° da Carta [refere-se à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, requerer que a informação em questão deixe de estar à disposição do grande público através da sua inclusão numa lista de resultados deste tipo, há que considerar, como resulta, designadamente, do n.° 81 do presente acórdão, que esses direitos prevalecem, em princípio, não só sobre o interesse económico do operador do motor de busca mas também sobre o interesse desse público em encontrar a referida informação durante uma pesquisa sobre o nome dessa pessoa. No entanto, não será esse o caso se afigurar que, por razões especiais como, por exemplo, o papel desempenhado por essa pessoa na vida pública, a ingerência nos seus direitos fundamentais é justificada pelo interesse preponderante do referido público em ter acesso à informação em questão em virtude dessa inclusão”.
[12] O formulário em referência pode ser acessado por meio da URL <https://support.google.com/legal/contact/lr_eudpa?product=websearch&hl=pt>. Google. Acessado em 27 de junho de 2016.
[13] Para evitar pedidos de remoção fraudulentos, que tentam prejudicar concorrentes ou que procuram eliminar informação legal de forma inadequada, o Google valida a identidade do requerente, que deve anexar uma cópia legível de um documento de sua identidade (ou a identidade da pessoa que está autorizado a lhe representar).
[14] Os integrantes do conselho e as audiências públicas estão disponíveis em Google. <https://www.google.com/advisorycouncil/>. Acessado em 9 de julho de 2016.
[15] Cf. informações extraídas da página Perguntas frequentes do Google. Google. Disponível em: <https://www.google.com/transparencyreport/removals/europeprivacy/faq/?hl=pt-BR#how_does_googles_process>. Acessado em 27 de junho de 2016.

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    é advogado, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Confederação Israelita do Brasil.

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    é advogado, mestre em Soluções Alternativas de Conflitos Empresariais, professor da pós-graduação em Direito Eletrônico na Escola Paulista de Direito e secretário da Confederação Israelita do Brasil.

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