Opinião

Não há invasão de competência com a edição de súmulas vinculantes

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12 de julho de 2018, 6h42

Introdução
A súmula vinculante foi instituída no ordenamento jurídico brasileiro com a Emenda Constitucional 45, de 2005. De acordo com definição de Lenio Luiz Streck, as súmulas são o resultado da jurisprudência predominante de um tribunal superior brasileiro, que é autorizado pelo Código de Processo Civil a emiti-las toda vez que existir um incidente de uniformização de jurisprudência, ou, no caso do Superior Tribunal de Justiça, também como resultado de decisão firmada por maioria absoluta de pelo menos dois julgamentos concordantes[1].

A súmula significa, então, uma orientação para os julgadores seguirem, por exprimir um entendimento já considerado sólido em um tribunal. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, apresenta mais de 700 súmulas editadas. A inovação que ocorreu no Direito brasileiro com relação ao instituto da súmula, advinda com a Emenda Constitucional 45, foi a possibilidade de as súmulas, que eram apenas enunciativas, ou seja, de efeitos meramente persuasivos, adquirirem efeito obrigatório.

O único tribunal competente para editar a súmula vinculante é o STF, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria exclusivamente constitucional. Foi previsto que seria cabível a interposição de reclamação ao STF contra o descumprimento, por ato administrativo ou por decisão judicial, de um enunciado criado pela corte.

A súmula vinculante, segundo André Ramos Tavares[2], é reconhecida como a possibilidade de construção de enunciados que sintetizam a posição anterior do tribunal constitucional sobre um determinado assunto, entendimento este que vinculará todas as outras decisões futuras sobre a matéria[3].

O instituto pode ser caracterizado como uma ferramenta para a economia e efetividade no processo judicial, uma vez que seu maior objetivo seria evitar que casos repetitivos cheguem às instâncias superiores. Todavia, apesar de ser um instrumento que garante a adoção de entendimentos do STF, o instituto, que parecia uma grande inovação ao surgir no país, não vem sendo muito utilizado no ordenamento jurídico brasileiro. O presente artigo busca refletir se a razão para a parca utilização do instituto é o fato de ele assemelhar-se a uma criação legislativa. Nesse sentido, destaca-se que, desde sua instituição, foram editadas apenas 56 súmula vinculantes, sendo interessante destacar que as últimas foram no ano de 2016, ou seja, não foi editada nenhuma súmula vinculante no ano de 2017 e no ano de 2018.

Estaria o Poder Judiciário exercendo funções de Poder Legislativo ao editar súmulas vinculantes? Seria essa a razão de sua diminuta utilização?

Para uma melhor análise do instituto, é necessário que se considere inicialmente os dois grandes modelos de sistemas jurídicos ocidentais, que são o modelo de direito codificado, ou civil law, e o modelo do precedente judicial anglo-saxão, também conhecido como common law. O precedente judicial pode ser caracterizado como uma decisão anterior de um caso semelhante que foi submetido a julgamento. Os precedentes decorrem sempre das decisões dos tribunais superiores e devem ser observados quando casos semelhantes são levados novamente ao Poder Judiciário.

O sistema jurídico brasileiro tem suas origens no sistema do civil law, ou romanístico, e, devido a isso, a origem das suas decisões judiciais é basicamente de lei. Por outro lado, a origem da súmula vinculante se relaciona diretamente com o sistema do common law, representado pelos países anglo-americanos, por causa da relevância que esse sistema atribui aos precedentes jurisprudenciais.

Todavia, a súmula vinculante diferencia-se bastante do precedente, apesar de sua origem comum jurisprudencial. No caso do precedente, basta que exista uma decisão jurisprudencial para que ele exista. Por outro lado, a súmula vinculante, da maneira como foi instituída no Brasil, depende de reiteradas decisões sobre a matéria, sendo editada por um procedimento específico no STF. Outra diferença é que a súmula, para ser vinculante, depende de uma norma no sistema jurídico que assim determinasse, enquanto que este efeito, no stare decisis, é uma decorrência lógica do sistema.

Uma questão relevante que surge com a súmula vinculante no Direito brasileiro é uma possível ilegitimidade do Poder Judiciário para editar um enunciado com poder normativo, uma vez que normas devem ser criadas pelo Poder Legislativo, diante da semelhança que a súmula tem com uma norma. Ademais, o enunciado ainda tem a capacidade de vincular o Poder Judiciário e a administração pública, ou seja, outro Poder, o Poder Executivo. Ou seja, dentre os três Poderes, apenas o Poder Legislativo não se submete aos efeitos das súmulas vinculantes.

Sobre o assunto, cumpre destacar que a doutrina mais atual entende que a separação de funções entre os Poderes não é absoluta, sendo mais formal do que prática, uma vez que sempre houve uma grande interpenetração entre a atuação dos Poderes. Devido à complexidade das demandas sociais do Estado moderno, a tendência é que o campo de atuação dos Poderes fique entrelaçado, porém, cada um ainda realiza a sua função típica de forma preponderante. Dessa forma, o Poder Legislativo, primariamente, exerceria a função de legislar e, subsidiariamente, julga e administra. O Poder Judiciário, em primeiro lugar, julga, e o Poder Executivo, na mesma linha de pensamento, primordialmente, administra[4].

Para Kelsen, não há três, mas duas funções básicas do Estado: a criação e a aplicação do Direito, e essas funções são infra e supraordenadas. Além disso, não seria possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre criação e aplicação do Direito — subjacente ao dualismo de Poder Legislativo e Executivo (no sentido mais amplo) — tem apenas um caráter relativo, sendo a maioria dos atos do Estado criadores e aplicadores do Direito ao mesmo tempo. Desta forma, defende Kelsen a impossibilidade de se atribuir a criação de Direito a um órgão e a sua aplicação ou execução a outro, de um modo absoluto, de forma que nenhum órgão venha a cumprir simultaneamente ambas as funções. Sustenta ainda que é praticamente impossível, e indesejável, que se reserve a legislação — que é apenas um determinado tipo de criação de Direito — a um “corpo separado de funcionários públicos” e se excluam todos os outros órgãos dessa função[5].

De acordo com Zaffaroni, o Poder Judiciário, como qualquer outra instituição, não pode ter uma única função. Uma análise sociológica deste Poder revela uma pluralidade de funções, reais e latentes, não podendo o discurso jurídico-político deixar de reconhecer-lhe uma pluralidade funcional[6].

A possível forma de ingerência do instituto da súmula vinculante na tripartição dos Poderes seria a referente ao fato de não ser função do Poder Judiciário editar normas, a partir do momento em que se entende que as súmulas seriam um tipo de norma geral, para o juiz aplicar aos casos concretos nos quais se adequarem. Desta forma, poderia estar ocorrendo uma ingerência do Poder Judiciário nas funções do Poder Legislativo, por ser função típica do Poder Legislativo criar normas gerais, e não função do Poder Judiciário.

Há quem afirme que a súmula vinculante, por ser criada pelo Poder Judiciário, é algo antidemocrático, devido à sua semelhança com uma lei, e ao fato de ter sido o Poder Legislativo eleito pelo povo para exercer a função de criar leis.

Mas deve ser considerado que, com a súmula vinculante, não há essa criação de direito por parte de um juiz monocrático — mas pelo STF. Diante disso, pode-se concluir que não seria antidemocrático por parte do Poder Judiciário editar as súmulas vinculantes apenas porque não foi eleito pelo povo para tal. O fato de não existir eleição para adentrar no Poder Judiciário não o pode caracterizar como uma instituição antidemocrática por si. Na realidade, o Poder Judiciário, para assegurar a sua independência e imparcialidade, não tem seus membros eleitos.

Ademais, cabe refletir, então, se seria a súmula vinculante uma lei. De fato, a súmula pode ser definida como uma norma jurídica de caráter geral, por ser aplicável a todos que se encontrem na situação por ela determinada, e abstrata, pois se aplica a hipóteses futuras. Porém, não é um instituto com força de lei por duas razões. Primeiramente, não é formalmente uma lei, dado ao seu processo de criação, a qual não segue o procedimento legislativo de criação de uma lei. É a súmula vinculante o fruto da atuação do Poder Judiciário em uma função não típica, mas que não pode ser caracterizada como legislativa por completo. E, em segundo lugar, é a súmula vinculante mais uma norma de interpretação de uma lei do que uma lei propriamente dita.

Considera-se, por fim, que a súmula vinculante pode ser classificada como um ato normativo da função jurisdicional[7]. O instituto possui as características de abstração e de generalidade, presentes em toda lei, tendo valor como fonte do direito, porém, não podendo ser definido como ato legislativo.

Ademais, em relação à vinculação do Poder Executivo, cumpre destacar que a discricionariedade da administração não pode ser entendida como uma possibilidade de realizar atos inconstitucionais ou ilegais, caso contrário, estar-se-ia obrigando as partes prejudicadas a necessariamente entrarem no Poder Judiciário para terem suas prestações satisfeitas.

Conclusão
A súmula vinculante não é um instrumento autoritário que engessa o Direito, afeta a estrutura de tripartição dos Poderes ou tolhe o poder do magistrado, mas, sim, acaba por prestigiar o Estado Democrático de Direito, uma vez que brota da fermentação jurisprudencial do controle difuso, após reiteradas decisões sobre matéria determinada, com o objetivo de impedir a proliferação de ações idênticas sobre temas já pacificados, de forma a descongestionar os tribunais e evitar a insegurança jurídica[8].

Sobre a relação da teoria da tripartição dos Poderes e a súmula vinculante, destaca-se que os Poderes devem ser vistos de forma que suas atividades sejam exercidas de formas mais fluidas — é mais atual falar-se em uma divisão das funções oriundas do poder estatal, que se divide em função legislativa, atribuída primordialmente ao Poder Legislativo, função administrativa, atribuída primordialmente ao Poder Executivo, e função jurisdicional, exercida pelo Poder Judiciário.

Desta forma, ao editar as súmulas vinculantes, não é correto se afirmar que o STF estaria legislando, exercendo função típica do Poder Legislativo, uma vez que, primeiramente, a súmula vinculante não possui natureza legislativa, mas, sim, jurisprudencial, visando uma uniformização e sedimentação da jurisprudência, encontrando-se presente no campo da hermenêutica e da aplicação do Direito[9]. Também não afronta a divisão dos Poderes o fato de a súmula vinculante, emanada do Poder Judiciário, vincular os órgãos da administração pública, ou seja, o Poder Executivo. Tal fato está em harmonia com o sistema de freios e contrapesos, estabelecido pela ordem constitucional.

Desta feita, pode-se concluir que não há invasão de competência com a edição de súmulas vinculantes, mas o exercício de uma função de pacificação e uniformização de julgados pelo Poder Judiciário, em sua mais alta instância. Ademais, a pouca utilização do instituto pode ser vista como um ponto favorável ao Poder Judiciário, que não o está utilizando de forma a distorcer sua essência, que depende da extrema pacificação da matéria. Além disso, outros fatores devem ser analisados para se entender a pouca utilização da súmula vinculante, como a regulamentação da repercussão geral.


[1] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas do Direito Brasileiro: eficácia poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. ver. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p.116.
[2] TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (dês)estruturando a justiça: comentários completos à EC n. 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 108.
[3] STRECK, Lenio Luiz. Súmulas do Direito Brasileiro: eficácia poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. ver. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. p. 112.
[4] AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2002, p. 129.
[5] KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1998. p.386.
[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução: Juarez Tavares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, pg. 34.
[7] SIFUENTES, Mônica. Súmula Vinculante: Um Estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005.
[8] PRUDENTE, Antônio de Souza. Súmula Vinculante e a Tutela do Controle Difuso de Constitucionalidade. Genesis: Revista de Direito Processual Civil. n. 34. outubro/dezembro de 2004. Curitiba: Genesis, 1996. Pg. 656.
[9] MARTINS, Alan. A Súmula Vinculante Perante o Princípio Constitucional da Tripartição dos Poderes. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. V.6, n.35, maio/junho 2005. Porto Alegre: Síntese, 2005.


Referências bibliográficas
AGRA, Walber de Moura. Manual de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1998.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
MALBERG, R. Carré de. Teoria General del Estado. México, D.F.: Fondo de Cultura Económica: 1998.
MARTINS, Alan. A Súmula Vinculante Perante o Princípio Constitucional da Tripartição dos Poderes. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil. V.6, n.35, maio/junho 2005. Porto Alegre: Síntese, 2005.
PRUDENTE, Antônio de Souza. Súmula Vinculante e a Tetela do Controle Difuso de Constitucionalidade. Genesis: Revista de Direito Processual Civil. n. 34. outubro/dezembro de 2004. Curitiba: Genesis, 1996.
SIFUENTES, Mônica. Súmula Vinculante: Um Estudo sobre o poder normativo dos tribunais. São Paulo: Saraiva, 2005.
STRECK, Lenio Luiz. Súmulas do Direito Brasileiro: eficácia poder e função: a ilegitimidade constitucional do efeito vinculante. 2. ed. ver. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
TAVARES, André Ramos. Reforma do Judiciário no Brasil pós-88: (dês)estruturando a justiça: comentários completos à EC n. 45/04. São Paulo: Saraiva, 2005.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder Judiciário: crise, acertos e desacertos. Tradução: Juarez Tavares. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995.

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