Opinião

Indicação para a Suprema Corte americana pode gerar anos de conservadorismo

Autor

  • João Costa Neto

    é advogado professor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e ex-procurador federal. Doutor e mestre em Direito Estado e Constituição pela UnB doutorando em Direito Público pela Humboldt-Universität zu Berlin mestre em Direito Romano pela Universidade de São Paulo (USP) e bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB).

10 de julho de 2018, 17h28

Nessa segunda-feira (9/7), o presidente Donald Trump anunciou a nomeação de um novo juiz para a Suprema Corte norte-americana. O indicado, Brett Kavanaugh, é juiz federal na Corte de Apelações do Distrito de Columbia. Se aprovado pelo Senado, Kavanaugh substituirá o juiz Kennedy, de quem foi assessor mais de 25 anos atrás[1].

Formado em Direito na Universidade de Yale, Kavanaugh é uma das apostas de Trump, que se comprometeu em campanha a nomear juízes de perfil conservador para a Suprema Corte.

O juiz Kennedy tem sido o fiel da balança, ou swing vote, nas mais polêmicas deliberações da Suprema Corte norte-americana. É ele quem tem dado o voto decisivo nas mais difíceis questões constitucionais submetidas àquela corte.

A nomeação do sucessor de Kennedy pelo presidente Donald Trump pode representar um dos maiores retrocessos da história constitucional daquele país. É como se o bastião da liberdade — um dos berços do constitucionalismo — estivesse prestes a soçobrar diante do trator do arbítrio.

O que nos aguarda será talvez a outra face constitucional da Corte Warren (1953-1969), que se tornou conhecida por seus julgados liberais. Seus críticos chamam-na de ativista. Seus defensores, de guardiã das liberdades.

Se a Corte Warren se notabilizou pela defesa dos direitos fundamentais, a Corte Roberts — nesta nova composição que se avizinha com a indicação de Kavanaugh — pode se notabilizar pelo retrocesso e pela superação (overruling) de precedentes já consolidados há décadas — ou, quiçá, há mais de século.

Foi durante a Corte Warren que se proferiram decisões emblemáticas até hoje: Brown v. Board of Education[2] (que pôs fim à segregação racial em escolas públicas), Gideon v. Wainwright[3] (que estabeleceu a obrigatoriedade de todo réu em processo penal ser assistido por defesa técnica empreendida por advogado), Miranda v. Arizona[4] (que criou os denominados avisos de Miranda e consagrou o direito ao silêncio), Baker v. Carr[5] e Reynolds v. Sims[6] (que fixaram na constelação constitucional norte-americana a parêmia “one man, one vote”), Engel v. Vitale[7] (que considerou inconstitucional, em nome da liberdade de expressão e da laicidade estatal, a reza ou oração compulsória em escolas públicas), e Griswold v. Connecticut[8] (que instituiu o direito à privacidade, a partir das “penumbras” e “emanações” do Bill of Rights, na feliz expressão do justice William O. Douglas, e que serviu de abre-alas para Roe v. Wade[9], caso decidido já na Corte Burger).

Muitas dessas decisões só não foram revistas por causa do voto decisivo de Kennedy.

É bom lembrar que Kennedy foi nomeado por Ronald Reagan e é um conservador. Votou com a maioria na famigerada decisão Bush v. Gore[10] (que declarou Bush o vencedor da eleição presidencial norte-americana de 2000), por exemplo.

Mas Kennedy, ainda que tenha dado o voto decisivo a favor dos conservadores em certos casos, sempre foi um moderado. E foi graças a ele que decisões importantes foram tomadas pela Suprema Corte norte-americana. Estão diretamente ameaçadas no momento, com a indicação de Kavanaugh: Lawrence v. Texas[11] (que declarou inconstitucional a criminalização da homossexualidade) e Obergefell v. Hodges[12] (que assegurou constitucionalmente o casamento homoafetivo), além da sempre polêmica Roe v. Wade (que considerou inconstitucional a proibição do aborto).

Também a denominada exclusionary rule — que veda o emprego de provas obtidas ilicitamente contra os réus no processo penal — passa a ser seriamente ameaçada. Não é implausível pensar que a Suprema Corte norte-americana criará em breve ainda mais exceções para admitir que provas ilícitas sejam usadas contra acusados. Uma corte composta de Kavanaugh também tende a controlar menos eventuais abusos do Poder Executivo, por ter maior deferência à separação dos poderes.

A silenciosa — e hoje ensurdecedora — maioria que assumiu o poder na Casa Branca nunca aceitou que provas ilícitas não pudessem ser usadas contra criminosos; e nem que o presidente pudesse estar submetido a controle efetivo por parte do Poder Judiciário.

Um estudo das decisões já proferidas por Kavanaugh não revela muito. Embora já seja juiz há mais de 12 anos, ele não proferiu muitas decisões polêmicas. No caso do aborto, por exemplo, sempre disse em público que estaria vinculado aos precedentes da Suprema Corte que reconheciam o direito ao aborto como desdobramento da privacidade[13]. Em geral, alinha-se a uma visão contrária à intervenção do Estado na propriedade e foi voto vencido ao declarar inconstitucional o denominado Obamacare[14], lei que obrigou os cidadãos norte-americanos a contratar planos de saúde, a fim de universalizar a cobertura em favor dos mais pobres.

O problema é que, agora, Kavanaugh provavelmente se tornará juiz da Suprema Corte. Já não estará mais vinculado aos precedentes como se fosse magistrado de tribunal inferior. Nada impede que dê, portanto, o voto decisivo para desfazer boa parte da história constitucional norte-americana das últimas décadas. E seu perfil conservador, aliado ao fato de sua nomeação ter surgido de lista apresentada pela ultraconservadora Federalist Society, evidencia a alta probabilidade de isso ocorrer.

O último nomeado por Trump, Neil Gorsuch — que foi colega de Kavanaugh, entre 1993 e 1994, quando ambos assessoravam o juiz Kennedy —, já demonstrou em pouco tempo um perfil bastante conservador, por exemplo.

Só nos resta esperar. Para os brasileiros que se habituaram a estudar a Suprema Corte norte-americana ou o Tribunal Constitucional Federal alemão, fica a sensação de que a defesa da liberdade é cada vez mais necessária, sobretudo quando, também no Brasil, discursos autoritários ganham enorme projeção e crescem em popularidade.

Às vezes, damos como certo e inconcusso o estágio de evolução constitucional em que nos encontramos. Mas as transformações pelas quais passam o mundo hodierno mostram que nada do que foi conquistado nas últimas décadas está imune a mudanças. Os tempos atuais demonstram que, de repente, vozes autoritárias projetam-se no mundo político; e, talvez, o próprio Estado de Direito esteja em xeque.


[1] Este texto retoma ideias constantes de obra já publicada e de posfácio de livro que se encontra no prelo: COSTA NETO, João. Liberdade de Expressão: o Conflito entre o Legislador e o Juiz Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2017; TOMAZ, Mateus. Fundamentação, Precedentes e Constituição: Panoramas e críticas sobre o Código de Processo Civil de 2015. Rio de Janeiro: Lumen Juris, no prelo.
[2] Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954).
[3] Gideon v. Wainwright, 372 U.S. 335 (1963).
[4] Miranda v. Arizona, 384 U.S. 436 (1966).
[5] Baker v. Carr, 369 U.S. 186 (1962).
[6] Reynolds v. Sims, 377 U.S. 533 (1964).
[7] Engel v. Vitale, 370 U.S. 421 (1962).
[8] Griswold v. Connecticut, 381 U.S. 479 (1965).
[9] Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).
[10] Bush v. Gore, 531 U.S. 98 (2000).
[11] Lawrence v. Texas, 539 U.S. 558 (2003).
[12] Obergefell v. Hodges, 576 U.S. ___ (2015).
[13] "5/9/2006 Schumer: "Do you consider Roe v. Wade to be an abomination?". CSPAN. Disponível em: <https://www.c-span.org/video/?c4738581/592006-schumer-do-roe-v-wade-abomination> Acesso em: 10 de julho de 2018.
[14] Seven-Sky v. Holder, 661 F.3d 1 (D.C. Cir. 2011) (Kavanaugh, J., dissenting).

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    é professor substituto na Universidade de Brasília (UnB), pela qual é doutorando e mestre em Direito, Estado e Constituição. Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

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