Academia de Polícia

Justa causa: o potencial contramajoritário da investigação criminal

Autor

  • Leonardo Marcondes Machado

    é delegado de polícia em Santa Catarina doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC e professor em cursos de graduação e pós-graduação.

10 de julho de 2018, 8h10

Spacca
A ideia de uma etapa prévia de investigação enquanto mecanismo racional para a apuração de certa notícia-crime, a fim de justificar a deflagração (ou não) de um processo penal contra alguém[1], surge como o maior fundamento democrático desta fase persecutória, especialmente sob um viés redutor de danos (ou dores[2]) no sistema de Justiça criminal.

Nesse sentido, tem-se que a base (jurídica) de legitimação da investigação preliminar se assenta na ideia de filtro da justa causa, “tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do acusado”[3]. Logo, a formulação válida de uma acusação criminal “deve ter por suporte uma necessária base empírica”, a fim de que “não se transforme em instrumento de injusta persecução estatal”[4].

Não é diferente a lição de Badaró: “Em razão do caráter infamante do processo penal em si, em que o simples fato de estar sendo processado já significa uma grave ‘pena’ imposta ao indivíduo, não é possível admitir denúncias absolutamente temerárias, desconectadas dos elementos concretos de investigação que tenham sido colhidos na fase pré-processual”[5]. Indispensável, portanto, ao exercício regular da ação processual penal que se extraia da investigação preliminar “elementos sérios, idôneos, a mostrar que houve uma infração penal, e indícios, mais ou menos razoáveis, de que o seu autor foi a pessoa apontada” na inicial acusatória[6].

Aqui reside o potencial contramajoritário da investigação preliminar. A sua função evitadora de sofrimento desnecessário em relação a um processo penal carregado de signos sociais negativos[7]. Aliás, acusação criminal, impregnada de simbolismos, que produz efeitos indeléveis na vida do imputado mesmo quando o processo criminal resulte em definitiva sentença absolutória[8].

Nesse viés que a instrução preliminar deve ser tida como “indispensável à justiça penal”[9], forte na garantia da inocência contra acusações infundadas[10]; verdadeiro mecanismo de contenção processual penal[11].

Um ideal, contudo, que só ganha sentido concreto em um modelo persecutório criminal que não esteja comprometido com o atendimento das expectativas gerais, ou melhor, do agrado à maioria de ocasião. A desgraça não raras vezes inicia-se justamente aqui: quando se pretende dar respostas à sociedade pelo exercício do sistema criminal.

O processo penal, ao contrário, deveria “se constituir como um verdadeiro ‘limite democrático’”[12], uma marcha contrária ao clamor das multidões por castigos imediatos e exemplares. É o seu viés negativo ou de resistência que se espera em um modelo estatal (democrático) de direito.

Com razão, afirma Rui Cunha Martins que o sistema processual apenas “será um verdadeiro operador de mudança enquanto conseguir uma faceta tão impopular quanto imprescindível: ser um defraudador de expectativas”[13].

Ocorre que a nossa gênese autoritária, ainda pulsante com muita força no campo jurídico-penal, insiste na mera instrumentalização do poder punitivo, em vez de sua contenção, apesar de todas as evidências concretas de ineficácia dos objetivos declarados do sistema penal e dos números alarmantes de expansão dos processos de criminalização.

Por óbvio, nesse contexto dominado por pretensões e desejos que vêm de fora[14], tendo como afeto predominante (e sempre útil) o medo[15], qualquer potencial democrático de resistência fica absolutamente esvaziado. É o que se vê, sem qualquer tipo de exagero, suceder com a persecução criminal brasileira e, por via reflexa, com a própria investigação criminal.


[1] “(…) finalizada la instrucción se toma la decisión sobre la formulación de la acusación, porque precisamente para eso sirve también la instrucción, para decidir si se inicia el proceso” (FENOLL, Jordi Nieva. Fundamentos de Derecho Procesal Penal. Madrid: Edisofer/Buenos Aires:EditorialBdeF, 2012, p. 102).
[2] CHRISTIE, Nils. Los limites del dolor. Tradução de Mariluz Caso. Cidade do México: Fundo de Cultura Econômica, 1988.
[3] JARDIM, Afrânio Silva; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior. Direito Processo Penal: estudos e pareceres. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 356.
[4] STF – Primeira Turma – HC 73271/SP – Rel. Min. Celso de Mello – j. em 19/03/1996 – DJ de 04/10/1996.
[5] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. Rio de Janeiro: Campus: Elsevier, 2012, p. 105.
[6] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v.1. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 445. De modo semelhante, fala Maria Thereza Rocha de Assis Moura em “prova induvidosa da ocorrência de um fato delituoso, na hipótese, e prova ou indícios de autoria, apurados em inquérito policial ou nas peças de informação que acompanham a acusação” (MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa Causa para a Ação Penal: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001. p. 222). Ou, nas palavras do ministro Peluso, deve se provar que, “obtida em algum ato ou procedimento de apuração prévia à ação penal de conhecimento, de natureza condenatória, demonstre, com relativo grau de certeza, a existência material do fato, aparentemente ilícito e típico, e, com certo grau de probabilidade, a existência de, ao menos, indícios de autoria, coautoria ou participação, sem prejuízo de elementos de convicção quanto à possível culpabilidade do indiciado” (Voto Min. Cezar Peluso. STF – Tribunal Pleno – RE n. 593.727 RG/MG – Rel. Min. Cezar Peluso – Rel. Min. p/ Acórdão Gilmar Mendes – j. em 14.05.15 – DJe 175 de 04.09.15).
[7] PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Inquérito policial: exercício do direito de defesa. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 7, n. 83, edição especial, p. 14, out. 1999.
[8] Voto Min. Cezar Peluso. STF – Tribunal Pleno – RE n. 593.727 RG/MG – Rel. Min. Cezar Peluso – Rel. Min. p/ Acórdão Gilmar Mendes – j. em 14.05.15 – DJe 175 de 04.09.15. Confira, ainda, outro trecho da manifestação do ministro Peluso: “A pendência do processo penal implica ao réu pesadas consequências, assim do ponto de vista prático, como teórico. A despeito da garantia constitucional da proibição de prévia consideração de culpabilidade, a só pendência do processo criminal representa sempre, do ângulo empírico, perante a sociedade, um estigma, um sinal infamante, reconhecido como tal não apenas por preconceito. O processo criminal, nesse sentido, constitui palco das chamadas ‘cerimônias degradantes’, porque tem por definição e objeto a apuração da acusação de um fato ou ato que, por ser crime em tese, é, ainda nesse condição hipotética, sempre abjeto do ponto de vista do seu significado ético e social. Assim, a par de atingir, em potência, o status libertatis do cidadão, atinge-lhe, em ato, sobretudo o status dignitatis. Este desonroso significado ético e social é ainda o substrato da concepção, agora jurídica, segundo a qual o próprio ordenamento considera a mera pendência de processo criminal como coação ou constrangimento. Por vê-lo claro, basta acarear o disposto nos arts. 647 e 648, inc. I, do Código de Processo Penal, cuja conjugação demonstra que a própria lei qualifica como coação ou constrangimento ilegal a existência de processo a que falte justa causa. Donde, a pendência de processo criminal é, também e a contrario sensu, do ponto de vista normativo, constrangimento ou coação, ainda quando ilegal não seja”.
[9] “A instrução preliminar é uma ‘instituição indispensável à justiça penal’. Seu primeiro benefício é ‘proteger o inculpado’. Dá à defesa a faculdade de dissipar as suspeitas, de combater os indícios, de explicar os fatos e de destruir a prevenção no nascedouro; propicia-lhe meios de desvendar prontamente a mentira e de evitar a escandalosa publicidade do julgamento. Todas as pesquisas, investigações, testemunhos e diligências são submetidas a sério exame para, de antemão, se rejeitar tudo o que não gera graves presunções” (MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 11).
[10] A função da persecução penal preliminar em “preservar a inocência contra acusações infundadas e o organismo judiciário contra o custo e a inutilidade em que estas redundariam” (MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 17).
[11] O procedimento de investigação apresenta uma finalidade primeira que consiste em evitar (ou afastar) um juízo oral em casos nos quais haja meras suspeitas infundadas; logo, conduz a uma primeira seleção dos casos penais (ROXIN, Claus. Derecho Procesal Penal. 01 ed. trad. Gabriela E. Córdoba y Daniel R. Pastor. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2003, p. 326). No mesmo sentido: TONINI, Paolo. Lineamenti di Diritto Processuale Penale. 12 ed. Milano: Giuffrè Editore, 2014, p. 250.
[12] ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço da. Para Um Processo Penal Democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 63.
[13] MARTINS, Rui Cunha. A Hora dos Cadáveres Adiados: corrupção, expectativa e processo penal. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 2, 10, 47 e 100.
[14] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Prefácio. In: AMARAL, Augusto Jobim do. Política da Prova e Cultura Punitiva: a governabilidade inquisitiva do processo penal brasileiro contemporâneo. São Paulo: Almedina, 2014, p. 24.
[15] SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016.

Autores

  • é delegado da Polícia Civil de Santa Catarina, mestre em Direito pela UFPR, especialista em Direito Penal e Criminologia, além de professor de Direito Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação.

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