Constituição e Poder

Federalismo cooperativo exige reciprocidade entre entes federativos

Autor

  • Marco Aurélio Marrafon

    é advogado professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

9 de julho de 2018, 11h32

Spacca
Ao consagrar o regime tripartite de competências federativas entre União, estados-membros/Distrito Federal e municípios, a Constituição da República de 1988 estabeleceu uma arquitetura do Estado brasileiro assentada na ação cooperativa entre esses três entes federativos.

Esse modelo não se caracteriza pelo paradigma “estadualista-dualista” pensado nos primórdios do federalismo americano, em especial nos mundialmente conhecidos artigos federalistas escritos por Madison, Jay e Hamilton.

Especialmente porque o federalismo nos EUA se forma a partir da união de estados-membros soberanos, que abdicam de parte de sua soberania em favor da União, mantendo autonomia em uma organização descentralizada de poder, espécie de cossoberania.

Tampouco a proposta constituinte de 1988 se confunde com o chamado paradigma “hierárquico-centralizador”, fortemente presente na história brasileira, assentado na forte presença e centralização das competências na União, formando por vezes um modelo de federalismo meramente nominal, chegando às raias do Estado unitário[1].

Se por um lado o texto constitucional impõe uma diretriz normativa de amplo rol de competências da União Federal nos artigos 21 e 22, que tratam das competências administrativas exclusivas e legislativas privativas, respectivamente, indicando que há forte prestígio da União enquanto ente central na federação, de outro a presença das competências comuns (artigo 23) leva à conclusão de que há um viés cooperativo que deve gerar consequências práticas na realização do Direito. É o que se infere da interpretação conjunta desses dispositivos.

Nesse sentido, o parágrafo único do artigo 23 não deixa dúvidas de que as competências comuns são de índole cooperativa, visando o equilíbrio do desenvolvimento e o bem-estar em âmbito nacional, o que deve ser regulado por lei complementar.

Se a República é formada pela união indissolúvel entre seus entes federativos (artigo 1°) e juntos devem atuar em prol do desenvolvimento nacional (artigo 3°, II), com competências comuns relevantes, tais como políticas de saúde, acesso à educação, proteção do meio ambiente e do patrimônio público, saneamento básico, dentre outras (artigo 23), o caráter cooperativo se torna importante vetor interpretativo que deve reger as relações federativas no Brasil.

Ainda que se reconheça o papel central e de coordenação por parte da União, ele não pode servir de pretexto para ações predatórias em franco desfavor dos estados-membros/Distrito Federal e municípios (e vice-versa). Tampouco se admite deslealdade e predação no relacionamento horizontal entre os entes. Tais tipos de ação são antijurídicas e devem ser repreendidas judicialmente.

Uma situação típica de conduta imprópria por parte da União acontece anualmente em relação ao ressarcimento aos estados-membros em razão da desoneração do ICMS para os produtos primários e industrializados semielaborados e serviços exportados.

Essa política foi estabelecida na Lei Complementar 87/96 com o objetivo de incentivar as exportações e favorecer a balança comercial brasileira. Todavia, passados 22 anos da edição da lei, o que se tem visto é um grave quadro de perda de receita por parte dos estados-membros, sem que haja a mínima preocupação da União em promover um justo equilíbrio entre a necessidade de desenvolvimento nacional e a compensação de importantes estados exportadores, tais como Minas Gerais e Mato Grosso.

Estima-se que, em média, o ressarcimento tem alcançado 18% da perda de receita dos estados exportadores. Em Mato Grosso, a desoneração tributária anual alcança a ordem de R$ 5 bilhões e o ressarcimento operado pelo Auxílio Financeiro para Fomento das Exportações (FEX) está previsto para algo em torno de R$ 450 milhões, ou seja, nem 10% do que se deixou de arrecadar.

Para piorar, se a política de desenvolvimento se deu em cima da redução da arrecadação estadual, as demandas sociais por políticas públicas de competência estadual mantiveram-se ou aumentaram, gerando quadro de arrocho fiscal que tem comprimido as possibilidades de investimento dos entes estaduais.

Além do ressarcimento insuficiente, a conduta incompatível com o pacto cooperativo por parte da União se revela em diversas atitudes ou omissões. Dentre elas merecem destaque a insegurança jurídica acerca do pagamento do ressarcimento via FEX, o que geralmente ocorre no final do exercício financeiro, sem garantia nenhuma de cumprimento ou previsão legal.

Também a inércia de União em não pautar a agenda legislativa para atualizar critérios e valores, combinada com a grave omissão do Congresso Nacional, levou à proposição da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 25, julgada procedente no final de 2016, quando se determinou que o Congresso Nacional teria o prazo de 12 meses para editar lei complementar prevista no artigo 91 do ADCT da Constituição de 1988, para fins de sanar a omissão e regulamentar a matéria, englobando critérios e montante dos repasses aos estados-membros. Decidiu-se, também, que, decorrido in albis o citado prazo, caberia ao TCU promover a regulamentação.

Superando a questão específica da Lei Complementar 87/96, o ponto chave da tese aqui defendida é: estando configurada a conduta incompatível com a cooperação federativa e verificada ação predatória por parte de um ente como a União, como podem os outros entes se defenderem dessa situação antijurídica?

Em resposta, algumas medidas podem ser importantes para coibir ou mesmo amenizar tais ilegalidades. Por exemplo, detectado o prejuízo, deve ser reconhecido o direito subjetivo do ente federativo ao ressarcimento, inclusive com bloqueio de contas de outro ente, se necessário.

Caso haja mora da União no ressarcimento e, de outro lado, haja dívidas do estado-membro com a própria União, deve-se, sim, considerar a possibilidade de compensação das dívidas dos estados, em especial as dívidas negociadas com base na Lei 9.496/97, num claro movimento de reciprocidade.

Outra hipótese interessante se revela na possibilidade da unidade federativa extrapolar os limites previsto para gastos com pessoal previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar 101/2000) em razão da perda de receita decorrente da desoneração tributária combinada com a ausência do devido ressarcimento por parte da União de créditos relativos à desoneração da exportação.

Configurada essa hipótese, poderá a União deixar de repassar as transferências voluntárias, obstar operações de crédito, deixar de dar garantias, agravando ainda mais a situação do ente federativo devido à violação da LRF que ela mesma deu causa?

A resposta é negativa à luz do pacto federativo cooperativo, pois parece óbvio que, estando comprovado que com o devido ressarcimento dos estados ou municípios a receita alcançaria patamares que enquadrariam os gastos de pessoal aos limites da LRF, deve-se este ser computado como receita estimada para fins do cálculo do percentual, evitando, desse modo, caos financeiro das unidades subnacionais.

Resta claro, assim, que as estratégias de integração e cooperação entre os entes federativos devem ser complementadas pela reciprocidade e eventual compensação em caso de violação do pacto cooperativo. Na falta de compreensão política, resta ao Direito intervir como ultima ratio.


[1] ABRUCIO, Fernando Luiz. SANO, Hironobu. A experiência de cooperação interestadual no Brasil: formas de atuação e seus desafios. In: Cadernos Adenauer XII. nº. 4. Municípios e Estados: experiências com arranjos cooperativos. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, abril 2012. p. 91.

Autores

  • é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), mestre e doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli studi Roma Tre. É ex-presidente da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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