Segunda Leitura

Itaguaí, o show de artistas e a necessidade de penas mais severas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

8 de julho de 2018, 10h47

Spacca
O município de Itaguaí (RJ) tem uma população de 122.369 habitantes, um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,768, que é considerado alto pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud)[1], seis poços de exploração de petróleo e gás natural, ficando as suas plataformas em 1º lugar na produção em setembro de 2017[2],mas, ainda assim, problemas econômicos e sociais graves.

Com efeito, em Itaguaí, “um hospital teve de fechar a emergência por falta de recursos e a Unidade de Pronto-Atendimento da cidade não está funcionando”[3]. Há atraso no pagamento dos servidores e dificuldades nas escolas, tendo por isso sido decretada a calamidade financeira do município.

No entanto, mesmo sendo grave a situação local, o prefeito do município, Carlo Busatto Júnior, conhecido por “Charlinho”, contratou os artistas Anitta, Alexandre Pires e Luan Santana para cantarem na Expo Itaguaí 2018, o que resultaria “gastos de R$ 6,2 milhões para contratar as atrações”[4].

O MP estadual propôs ação civil pública, e o juiz de Direito Richard Robert Fairclough concedeu liminar[5] suspendendo o pagamento de qualquer despesa relacionada com a exposição.

Em um primeiro momento, surpreende o fato de o juiz avaliar a iniciativa do chefe do Poder Executivo. Afinal, ao burgomestre cabe a escolha das melhores opções ao seu município. Ocorre que, no caso, o absurdo da escolha é de tal ordem que infringe o artigo 37 da Constituição, por ofensa ao princípio da moralidade, e torna viciado o ato administrativo. A escolha da festa em prejuízo da saúde e da educação leva ao extremo a máxima “pão e circo” (panem et circenses na antiga Roma).

A análise do caso não pode parar nessas considerações. É preciso ir além. O prefeito Charlinho, de 57 anos, já foi processado e condenado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, em 30 de novembro de 2016, a cumprir 14 anos de reclusão, por crimes de fraude em licitação, corrupção passiva e associação criminosa[6]. Foram interpostos embargos infringentes e de nulidade que aguardam cumprimento de decisão que determinou a digitalização dos apensos IV e XVIII, volumes 01 e 02, para fins de exame de ocorrência de prescrição, em 9 de novembro de 2017[7].

A situação de Itaguaí ora analisada é apenas uma entre tantas outras ao longo do nosso vasto território. Como os casos de repercussão nacional chamam mais a atenção (por exemplo, o afastamento do ministro do Trabalho, Helton Yomura, que estaria permitindo registros de sindicatos mediante pagamento[8]), os relacionados com prefeitos municipais acabam ficando restritos às notícias da mídia local. Mas nem por isso são menos importantes.

Vejamos um exemplo. Conforme afirmei nesta coluna em 31/7/2016, o então prefeito de Barueri (SP), Gil Arantes, foi afastado pelo TJ-SP acusado da prática de 63 crimes de lavagem de dinheiro e desvio de R$ 26 milhões, mas foi reintegrado ao cargo em março de 2015 pelo STF[9]. Não se tem notícias, apesar de passados mais de três anos, do início do cumprimento da pena de qualquer dos 63 ilícitos penais.

Tudo isso impõe que se reflita melhor sobre o sistema criminal de Justiça, pois nem mesmo as dezenas de prisões ocorridas nos últimos quatro anos, que levaram ao cárcere políticos e empresários de notório poder, está servindo para inibir a ação de administradores públicos. Os fatos se sucedem sem que a corrupção retroceda.

Se o sistema vem se mostrando insuficiente para combater o mal, isso significa que algo mais deve ser feito. A resposta geral será: há necessidade de políticas públicas. Essa afirmação é utilizada frente a qualquer problema que surja no Brasil. Quem as ouve concorda, e o assunto está encerrado. O problema, é claro, persiste.

Tentando fugir da mesmice genérica, vejamos: qual seria a ação de política pública do Estado em caso desta enfermidade social chamada corrupção? Sem certeza de sucesso, mas como tentativa válida, pensemos algumas hipóteses. Algumas, inclusive, já são praticadas. Podemos pensar em comissões de combate à corrupção, discussão do tema em congressos, artigos jurídicos e econômicos, penas alternativas em que os condenados recebam aulas sobre os efeitos negativos de tal prática e outros semelhantes.

Educação também, evidentemente. Principalmente para os mais novos, ainda não contaminados com a ideia de levar vantagem. No caso de administradores públicos, é difícil imaginar que a educação terá bons resultados. É que tais pessoas possuem plena noção de seus atos e agem por uma única opção, querem enriquecer.

Mas há uma arena de combate pouco utilizada pelos brasileiros. Na vida pessoal, privada, relações de família e de amizade, rejeitar os corruptos. Exatamente, repudiar o convívio, não convidar e não aceitar convites. Não adianta participar de caminhadas de protesto de manhã, vestindo camisa verde e amarela, e à tarde participar de suculenta feijoada na casa de um corrupto.

Na vida pública, um juiz de comarca do interior pode ser obrigado a sentar ao lado de um prefeito denunciado, em uma comemoração cívica. Mas não pode aceitar convite para uma comemoração do aniversário de sua filha, mesmo que toda família o recrimine por perder a festa. Não pode porque sua presença estará legitimando a ação do mau gestor.

Porém, todas as ações mencionadas, isoladas ou cumulativamente, são insuficientes para reduzir o mal aos índices de países mais sérios, como Chile e Uruguai. Ao meu ver, a situação reclama, também, maior severidade penal.

No Brasil, as penas sempre são dosadas no mínimo legal, as multas não quitadas transformam-se em inofensivas execuções fiscais, as formas de comutação e progressão do regime de cumprimento da pena tornam curtas as temporadas carcerárias, e os julgamentos nos juizados especiais não intimidam o mais ingênuo dos mortais. Por sua vez, a tese da necessidade de trânsito em julgado da sentença penal condenatória, inaugurada no STF no HC 84.078-7/MG (relator Eros Grau, em 5/2/2009), dá aos infratores a certeza da impunidade.

Óbvio que fora do mundo real, nas discussões teóricas que resvalam mais para a metafísica do que para o Direito, a pena não pode ser uma forma de intimidação, mas de recuperação do delinquente. Como tese acadêmica, é elogiável. Como realidade, não.

Na verdade, o poder público já perdeu o controle dos presídios brasileiros, cada vez mais dominados por facções criminosas. Não consegue nem sequer impedir o uso de celulares na área. Já existe, inclusive, especialização de áreas. O jornal A Tribuna, de Santos (SP), informa que o Primeiro Comando da Capital (PCC) “criou outro setor para expandir a atuação em presídios femininos, um PCC Mulher”[10]. Como esperar que o Estado recupere alguém?

Em verdade, é chegado o momento de enrijecer a legislação para os crimes que alcançam elevada parcela da sociedade, crimes em que o dano social seja grave. Para estes, não tem cabimento aplicar a mesma legislação existente para os delitos em que haja uma ou poucas vítimas individuais.

Por exemplo, um governador ou outro administrador que destrua as finanças públicas que lhe são afetas, prejudique serviços como a saúde e impossibilite os servidores públicos de receber seus vencimentos deve ser punido com prisão perpétua ou, pelo menos, receber pena em dobro e ter os benefícios na progressão e redução da pena diminuídos pela metade.

Pelo que foi dito, voltando ao que motivou a coluna, podemos concluir: foi absolutamente certa a decisão do juiz Richard Fairclough, de Itaguaí.


[1] Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Itagua%C3%AD#Economia. Acesso 5/7/2018.
[2] Disponível em https://www.fup.org.br/images/dieese/2017-09-a-producao-do-pre-sal-por-poco.pdf, p. 4. Disponível em 6/7/2018.
[3] Revista eletrônica Consultor Jurídico, disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jul-05/juiz-proibe-municipio-rio-gastar-shows-famosos. Acesso 6/7/2018.
[4] Idem a anterior.
[5] Disponível em: https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/juiz-proibe-municipio-rio-crise-gastar-1.pdf. Acesso em 6/7/2018.
[6] Prefeito eleito de Itaguaí é condenado a prisão pela 'Máfia das Sanguessugas'. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/extra-extra/prefeito-eleito-de-itaguai-condenado-prisao-pela-mafia-das-sanguessugas-20568558.html. Acesso em 6/7/2018.
[7] Processo eletrônico 0100280-88.2017.4.02.0000. Acesso em 6/7/2018.
[8] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticiapol[iticoslicia-federal-faz-buscas-no-gabinete-do-deputado-nelson-marquezelli.ghtml. Acesso em 6/7/2018.
[9] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-31/segunda-leitura-foro-privilegiado-nao-combina-sociedade. Acesso 6/7/2018.
[10] A Tribuna, 7/7/2018, A-12.

Autores

  • é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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