Opinião

​​​​​​​Justiça Restaurativa: um contraponto ao processo judicial vigente

Autor

  • Cristina Danielle Pinto Lobato

    é professora do programa de pós-graduação do FGV Law Program mestranda em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV e especialista em Mediação e Métodos Adequados de Solução de Conflitos pela Universidade Candido Mendes.

8 de julho de 2018, 6h17

Falar de Justiça Restaurativa é primeiro ter a clareza de que não há uma definição fechada sobre o que seja, é um constante construir, pois primeiro surgiram as práticas, depois a teorização sobre esse fazer, que é uma ferramenta potente para trocar as lentes[1] daqueles que atuam na estrutura da Justiça, reverberando também naqueles que utilizam esse serviço.

A Justiça Restaurativa nasce da ideia de criar um espaço de inclusão da vítima, daquele que praticou o ato ofensivo e da comunidade para uma solução consensual, entendendo todos como corresponsáveis na transformação do conflito. Desse modo, propõe um contraponto ao processo judicial vigente, no qual se privilegia a dimensão punitiva com relação ao acusado, a vítima é relevante apenas no início do processo, com seu testemunho sobre o fato, e a comunidade nem sequer é envolvida.

Os casos em Justiça Restaurativa são mais complexos, pois incluem não somente as pessoas envolvidas no fato danoso, mas também a comunidade, seja por meio da rede de garantias de direitos — assistência social, saúde, escola etc. —, seja por meio da rede de pertinência — parentes, amigos, vizinhos e pessoas indiretamente envolvidas. São espaços onde as pessoas compartilham sobre as repercussões do conflito em suas vidas.

Além disso, incorpora elementos ancestrais de senso de pertencimento e comunidade, valorização das histórias como elemento de conexão com a humanidade compartilhada e a corresponsabilização pelos acontecimentos, por meio da concepção de interdependência.

Nesse sentido, quando iniciei o mestrado profissional de Bens Culturais e Projetos Sociais no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getulio Vargas, em 2017, e conheci as pesquisas que utilizam a metodologia da história oral, percebi uma aproximação com a Justiça Restaurativa, já que a história oral possibilita a “recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (Alberti, 2004, p.16), e pensar em contar histórias para a transformação dos conflitos é a base da Justiça Restaurativa.

O ato de compartilhar histórias permite que pessoas que tenham vivenciado situação de conflito possam expressar sobre suas necessidades e vivenciar outra experiência de justiça, com um processo que se faz em comunidade, propiciando o resgate de sua própria dignidade. De acordo com Howard Zehr, “a justiça começa nas necessidades” (2014, p.180).

Considerando a bibliometria[2] para mapeamento da produtividade científica de periódicos, autores e representação da informação sobre Justiça Restaurativa, por meio de uma pesquisa no sistema de busca do Banco de Teses da Capes, tem-se 14.926 resultados para “justiça restaurativa”, sendo 11.462 dissertações e 2.714 teses até o ano de 2016[3].

Isso demonstra que o tema tem sido debatido na academia, sendo inclusive fruto de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Justiça para análise da Justiça Restaurativa conduzida pelo Poder Judiciário no Brasil entre 2004 e 2017[4].

O Conselho Nacional de Justiça definia, em 2014, a Justiça Restaurativa como uma “técnica de solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores”[5] e, com a Resolução CNJ 225/16, passou a definir no artigo 1º como:

Um conjunto ordenado e sistêmico de princípios, métodos, técnicas e atividades próprias, que visa à conscientização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de conflitos e violência, e por meio do qual os conflitos que geram dano, concreto ou abstrato, são solucionados de modo estruturado.

De acordo com o Centre for Justice & Reconciliation, instituição internacionalmente reconhecida como especialista em uso da Justiça Restaurativa em sistemas de Justiça criminal, que desenvolveu a pesquisa RJ City®[6], “a Justiça restaurativa é uma teoria da justiça que enfatiza a reparação dos danos causados pelo comportamento criminoso”[7].

O International Institute for Restorative Practices[8] distingue entre os termos práticas restaurativas e Justiça Restaurativa, pois considera a Justiça Restaurativa como um subconjunto de práticas restaurativas. A Justiça Restaurativa seria reativa, consistindo em respostas formais ou informais ao crime e outras irregularidades após a ocorrência. A definição de práticas restaurativas, por sua vez, também incluiria o uso de processos informais e formais que precedem ao dano, ou seja, de forma preventiva para fortalecer um senso de comunidade para evitar conflitos e erros.

Portanto, aplicabilidade da Justiça Restaurativa e das práticas restaurativas extrapola a origem no campo penal e infracional, sendo possível no Judiciário — pré-sentença, no bojo da sentença e pós-sentença —, bem como no âmbito comunitário, familiar, educacional e organizacional — de forma proativa ou reativa, isto é, antes ou depois de eventual dano.

A Justiça Restaurativa se concretiza quando as pessoas em conflito vivenciam o justo que faz sentido para elas, não é uma justiça com fim em si mesma, é uma cocriação a partir do encontro com o outro, tendo a mente, a vontade e o coração abertos (Scharmer, 2010).

Sendo assim, a Justiça Restaurativa pode ser compreendida como uma mudança de paradigma que constrói as bases para experienciar o justo de uma forma mais democrática, plural, que acolha a diversidade e cuide do que é essencial: as relações humanas no fluxo do movimento da Cultura de Paz[9].

A base comum na Justiça Restaurativa é o contar histórias, uma forma de acessar a humanidade compartilhada pelo ato de contar suas experiências de vida, sua trajetória, bem como sobre o dano sofrido e causado.

Se a Justiça Restaurativa surgiu primeiro como prática e depois como um conceito, é relevante oportunizar um espaço para escuta das narrativas das pessoas que desenvolvem e desenvolveram essa experiência para que não se perca o aprendizado vivenciado e possa ser aproveitada a potência de cada um que contribui para a sua contínua cocriação.

O uso da metodologia da história oral mostra-se estratégico para uma gestão do conhecimento que privilegie o que já foi feito até hoje na cidade do Rio de Janeiro em Justiça Restaurativa com vistas a preservar memórias das práticas que possam ser consultadas pelas pessoas e instituições que desejam desenvolver novas iniciativas, ou para o aprimoramento do seu fazer. Consequentemente, visa “diminuir o distanciamento entre teoria e prática e para que os pesquisadores não sejam os únicos atores do movimento restaurativo a contar a história da justiça restaurativa” (Rosenblatt, 2014).

O contexto do Rio de Janeiro é permeado de experiências esparsas de Justiça Restaurativa, e percebeu-se um esforço do Tribunal de Justiça local na tentativa de implementação de um programa oficial, com a criação de um grupo de trabalho em 2016 para cumprir a Meta 8[10] do Conselho Nacional de Justiça.

Em setembro de 2017, foi instituído o Programa de Justiça Restaurativa no âmbito das unidades socioeducativas do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase)[11], que prevê modo estruturado para cuidar de danos concretos ou abstratos com princípios, métodos, técnicas e atividades próprias com objetivo de conscientização e responsabilização sobre os fatores relacionais, institucionais e sociais motivadores de situação de conflito e violência, judicializada ou não.

E agora o Rio de Janeiro passa a ter representatividade no Comitê Gestor da Justiça Restaurativa[12] do Conselho Nacional de Justiça, novos desafios pela frente e olhar para o que já foi vivido é estar alinhado com o potencial restaurativo. Assim, em breve serão divulgados os resultados da pesquisa que está sendo elaborada com base na metodologia da história oral.


[1] Alusão ao livro Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça – justiça restaurativa, de Howard Zehr (2008).
[2] CAFÉ, Lígia; BRÄSCHER, Marisa. Organização da Informação e Bibliometria. Disponível em: <http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/5878/1/ARTIGO_OrganizacaoInformacaoBibliometria.pdf>. Acesso em: 24/9/2017.
[3] Disponível em: <http://bancodeteses.capes.gov.br/banco-teses/#!/>. Acesso em: 24/9/2017.
[4] Pesquisa “Pilotando a Justiça Restaurativa: O Papel do Poder Judiciário”, com execução pela Fundação José Arthur Boiteux, da Universidade Federal de Santa Catarina, e coordenação da professora doutora Vera Regina Pereira de Andrade. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/10/552d371330ac678e682e18267e4dd440.pdf>. Acesso em: 15/11/2017.
[5] Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/62272-justica-restaurativa-o-que-e-e-como-funciona>. Acesso em: 25/10/2017.
[6] O RJ City® foi um projeto de pesquisa de cinco anos para responder ao questionamento sobre como a cidade pode responder da forma mais permanente possível a cada crime, a cada vítima e a cada agressor. Disponível em: <http://restorativejustice.org/am-site/media/rj-city-final-report.pdf>. Acesso em: 25/10/2017.
[7] Disponível em: <http://restorativejustice.org/restorative-justice/about-restorative-justice/tutorial-intro-to-restorative-justice/#sthash.NuPe4Igv.dpbs>. Acesso em: 25/10/2017.
[8] Disponível em: <https://www.iirp.edu/what-we-do/what-is-restorative-practices/defining-restorative>. Acesso em: 29/11/2017.
[9] A Cultura de Paz como movimento iniciou-se oficialmente pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 1999; em 2000 foi o Ano Internacional para a Cultura de Paz; e de 2001 a 2010 considerou-se a Década Internacional para a Cultura de Paz e Não Violência para as Crianças do Mundo.
[10] Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/04/bfffc27bc60f77f2850b4a22f525d992.pdf>. Acesso em: 25/10/2017.
[11] Portaria Degase 441, de 13 de setembro de 2017.
[12] Portaria 43 do CNJ, de 25 de junho de 2018.

Autores

  • é professora do programa de pós-graduação do FGV Law Program, mestranda em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV e especialista em Mediação e Métodos Adequados de Solução de Conflitos pela Universidade Candido Mendes.

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