Opinião

A desconsideração da pessoa jurídica no processo de execução fiscal

Autor

  • Renato Rodrigues Gomes

    é advogado do Andrade Goiana Advogados Associados pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) e em Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes e graduado em Direito pelo Centro Universitário Christus.

7 de julho de 2018, 6h56

A ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa. Como forma de amenizar os riscos que envolvem a área empresarial e ao mesmo tempo fomentá-la, o legislador pátrio adotou a teoria da personalidade jurídica, segundo a qual, por uma ficção jurídica, é constituído um ser dotado de personalidade própria capaz de adquirir e exercer direitos, dissociada das pessoas que lhe constituíram.

No intuito de coibir os possíveis abusos e desvios que poderão ser cometidos por indivíduos má intencionados se valendo do escudo da autonomia e proteção patrimonial, foi criada a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que permite superar a separação entre os bens da empresa e de seus sócios.

Com o propósito de entregar maior segurança aos jurisdicionados, o Código Processual de 2015, nos seus artigos 133 e 134, positivou o procedimento a ser observado pelo magistrado e pelas partes que pretendam obter a desconsideração da personalidade jurídica:

Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
§ 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

Primando pela observância ao devido processo legal, contraditório e ampla defesa, o legislador infraconstitucional determinou no artigo 135 do CPC, in fine, que uma vez requerido e instaurado o incidente de desconsideração da pessoa jurídica serão os interessados intimados para apresentação de defesa:

Art. 135. Instaurado o incidente, o sócio ou a pessoa jurídica será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 (quinze) dias.

O princípio do contraditório é um reflexo da democracia, já que exercer o contraditório significa participar de forma efetiva do processo, seja ele judicial ou administrativo. Em outras palavras, esse princípio garante aos litigantes o direito de participar do processo e de influenciar na decisão a ser proferida, pois não há contraditório sem defesa[1].

Como se nota, o conceito de contraditório compreende a garantia de efetiva participação das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de influírem, em igualdade de condições, no convencimento do magistrado, contribuindo na descrição dos fatos, na produção de provas e no debate das questões de direito, e, nesse momento, se aproxima do princípio da isonomia[2].

Essa dialética processual deve ser observada ao longo de todo o processo, de forma que, antes de decidir sobre a desconsideração da personalidade jurídica e determinar o redirecionamento da execução fiscal, o juiz deve instaurar o contraditório prévio, pois constitui uma necessidade inerente ao processo judicial, ostentando a natureza de uma garantia inviolável de todo cidadão[3].

É preciso observar o contraditório prévio a fim de evitar um “julgamento surpresa”, ainda que se trate de uma questão que possa ser conhecida de ofício ou de uma presunção simples, conforme previsão dos artigos 9 e 10 do CPC:

Art. 9º Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja previamente ouvida.
Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.

Em suma, a decisão que determina o redirecionamento da execução sem instaurar o incidente de desconsideração da pessoa jurídica viola os princípios constitucionais do devido processo legal, contraditório e da isonomia, além do princípio processual da não surpresa.

A desconsideração da personalidade jurídica é medida anômala e excepcional, cuja hipótese de cabimento exige uma análise mais detalhada e a comprovação de uma das hipóteses prevista no artigo 135 do CTN, a saber, prática de atos com excesso de poder, infração à lei, contrato social ou estatuto:

Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

A mera incompetência na administração da empresa não é, por isso só, motivo suficiente para superar a personalidade jurídica e, com isso, penetrar no patrimônio dos sócios, pois a insolvência do devedor compõe o risco natural da atividade empresarial.

Igualmente, a dissolução da pessoa jurídica não é motivo suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica, pois equivale à responsabilização dos sócios por mero inadimplemento, ocasionado pela insuficiência de bens necessários à satisfação das dívidas contraídas, o que a rigor é pressuposto para decretação da falência, e não da desconsideração da personalidade jurídica.

A simples inadimplência da obrigação não configura infração capaz de ensejar a responsabilização solidária do sócio, conforme a Súmula 430 do STJ: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.

Pensar de forma diferente levaria à violação ao princípio do livre exercício da iniciativa privada e ao princípio da função social da propriedade, talhados no artigo 170 da Constituição Federal, in verbis:

Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […]
III – função social da propriedade; […]
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

Assim, não há dúvidas de que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicado com cautela, obedecendo aos requisitos previstos em lei, com a apresentação de provas concretas de que a finalidade da pessoa jurídica foi desviada, não bastando a mera alegação genérica.

É inegável o uso do incidente de desconsideração da personalidade jurídica aos processos da seara tributária, pois o artigo 1 da Lei 6.830/1980 é claro ao prever a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil ao processo de execução:

Art. 1º – A execução judicial para cobrança da Dívida Ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e respectivas autarquias será regida por esta Lei e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.

Tal entendimento é corroborado pelo parágrafo 2º do artigo 4, ao aduzir que se aplica a Dívida Ativa da Fazenda Pública de qualquer natureza às normas relativas à responsabilidade prevista na lei civil:

Art. 4º – A execução fiscal poderá ser promovida contra: […]
§ 2º – À Dívida Ativa da Fazenda Pública, de qualquer natureza, aplicam-se as normas relativas à responsabilidade prevista na legislação tributária, civil e comercial.

O ordenamento jurídico está em constante evolução, de forma que os operadores devem, nas lições do professor Carlos Maximiliano, interpretar o texto legislativo de maneira inteligente, não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniência ou conclusões inconsistentes e impossíveis.

Entender que o novo instituto não tem aplicabilidade na seara tributária é desconsiderar por completo a evolução do Direito e negá-lo na sua própria essência.


[1] JR, Fredie Didier. Curso de Direito Processual Civil, Introdução ao Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 13ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 45, 56 e 60.
[2] CUNHA. Leonardo Carneiro da. O princípio contraditório e a cooperação no processo. Disponível em <https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-cooperacao-no-processo>. Acesso em: 21 set. 2017.
[3] CUNHA. Leonardo Carneiro da. O princípio contraditório e a cooperação no processo. Disponível em <https://www.leonardocarneirodacunha.com.br/artigos/o-principio-contraditorio-e-a-cooperacao-no-processo>. Acesso em: 21 set. 2017.

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