Supremacia judicial e democracia: o Judiciário não nos salva de nós mesmos
7 de julho de 2018, 8h00
Não esqueço a posição, por alguns tomada, de que algumas questões constitucionais devem ser decididas pela Suprema Corte, tampouco nego que essas decisões devam ser vinculantes. […] Ao mesmo tempo, o cidadão franco, imparcial, terá de admitir que se as políticas do Governo, que afetam toda a população, forem fixadas por decisões da Corte Suprema, […] o povo deixará de ser seu próprio regente, tendo praticamente submetido seu governo às mãos do eminente tribunal.”
(Abraham Lincoln)
1. Esclarecimentos iniciais
Antes de tudo — por uma questão de compromisso teórico e honestidade intelectual (e, naturalmente, para evitar possíveis mal-entendidos) —, vejo como pertinentes alguns esclarecimentos prévios, que, em alguma medida, inauguram esta reflexão.
O primeiro esclarecimento é de ordem terminológica: quando falo em supremacia judicial, tenho em mente algo muito similar ao que serve de epígrafe a este ensaio, expressado por Lincoln quando de seu discurso inaugural. Ao optar por esse termo, não pretendo classificar, talvez injustamente, como ativista qualquer postura judicial que não seja minimalista; minha ideia não é deixar implícita qualquer conotação negativa que, em si, acabe por demonizar o Poder Judiciário em sua atuação legítima. Quando falo em supremacia judicial, refiro-me, tão simplesmente, à já notória tese segundo a qual a(s) corte(s) suprema(s) teria(m) um papel iluminista.
Evidentemente, falar em uma “supremacia judicial” já afasta deste texto qualquer eventual pretensão de neutralidade: qualquer indivíduo que veja como positiva a atuação de uma corte “iluminista” dificilmente concordaria com minha opção terminológica, uma vez que falar em supremacia já acaba, naturalmente, por pressupor uma sobreposição do Judiciário sobre os outros Poderes — que, penso, é precisamente o que acaba por ocorrer quando juízes (ou, em nosso caso, ministros) atribuem a si mesmos a função de uma espécie de filósofos morais, responsáveis por “empurrar a História”.
O que me leva ao segundo esclarecimento, que também trata de negar pretensões de (uma) neutralidade (que talvez nem sequer exista): estas palavras têm, assumidamente, um viés democrático subjacente. Quando falo, aqui, em democracia, já parto do pressuposto de que esse é um conceito positivo, desejável para o melhor que podemos ser enquanto sociedade[1].
2. A supremacia judicial como resposta à crise política
Em recente artigo publicado pela Foreign Affairs, intitulado The End of the Democratic Century (em tradução livre, O Fim do Século Democrático), Yascha Mounk e Roberto Stefan Foa argumentam que a emergência de regimes autocráticos e autoritários ao redor do globo é uma resposta à(s) crise(s) econômica e institucional das democracias liberais.
Subscrevo à tese, mas isso não vem ao caso; trago à tona o artigo apenas para traçar um paralelo com o Direito brasileiro. Se parece muito claro que a tese de um Poder Judiciário programático, iluminista, tem sido cada vez mais replicada e, mais, aplaudida — os exemplos são diários, tanto em nossa prática jurídica quanto na mídia —, também me parece muito claro que isso é, em grande medida, uma resposta à crise político-institucional em nosso país. Somente a título de exemplo — poderia escolher entre muitos, mas o impacto de minha opção é auto-evidente —, lembremos um artigo de opinião de Fernando Henrique Cardoso, para o El País, em que, após discorrer sobre os problemas da política nacional, o ex-presidente diz que “[r]esta a Justiça” e clama “que não se ponham obstáculos insuperáveis ao juiz, aos procuradores, delegados ou à mídia”.
Se, de um lado, no âmbito político, a emergência e o fortalecimento de regimes autocráticos, populistas, e de (pré-)candidatos (supostamente) anti-establishment (e igualmente populistas) são uma resposta (i) à crise de representação e (ii) à imagem de corrupção atrelada à política tradicional, a crescente insatisfação popular com a classe política também tem reflexos no âmbito jurídico. Basta ver o papel cada vez mais atuante e repercutido — por vezes, em horário nobre, literalmente — do Supremo Tribunal Federal.
Não só isso: penso ser bastante razoável dizer que manifestações populares e campanhas em mídias sociais em apoio à figura de um juiz (vide slogans do tipo “Somos Todos Moro”) são um fenômeno que, além de muito contemporâneo, talvez inimaginável no Brasil de alguns anos atrás, é nada menos que uma decorrência lógica de um imaginário popular que vê, no Poder Judiciário, uma (possível) solução ao histórico problema da corrupção no país.
Engana-se, contudo, quem, apressadamente, enxerga um cenário de apoio à supremacia judicial como (somente) uma pauta da direita e extrema-direita, que aposta(ria)m em um Judiciário forte para fazer valer um autoritarismo punitivista. Basta observar, por exemplo, que uma idealização das cortes parte também, por vezes, do campo progressista, que vê no ativismo judicial a saída para a concretização de conquistas sociais que parecem não avançar no parlamento.
Agora, dito isso, vale ressaltar, também se equivoca quem pensa que as ressalvas com relação à supremacia judicial são (necessariamente) uma tese de esquerda, visando “frear os avanços da Operação Lava-Jato” — e esse discurso, acredito, ao menos em alguma medida, demonstra como o Poder Judiciário é visto por alguns (dos mais variados) setores como saída para o problema da corrupção.
O ponto, em síntese, é que, se visualizarmos essa aposta cada vez maior em uma espécie de soberania do Poder Judiciário tão somente como uma tese exclusiva da esquerda ou da direita, corremos um sério risco de subestimar o fenômeno e suas causas. Um cenário de supremacia judicial, que acaba por ser, inclusive, desejado por um altíssimo número de pessoas, é uma realidade que transcende a operação "lava jato", o juiz Sergio Moro, discussões entre ministros do Supremo (que, vale dizer, mais parecem um reality show de cunho sensacionalista). Esses são apenas elementos que, para além de esquerda e direita, demonstram que a(s) crise(s) de nossas instituições acabam por conferir ao Poder Judiciário um papel que, do ponto de vista democrático, não lhe cabe.
Ilustrando, em outras palavras: de um lado, o argumento de que precisamos de um Poder Judiciário que atue na inércia de um parlamento demasiadamente engessado, reacionário, incapaz de promover as mudanças necessárias em uma sociedade pluralista que se pretende inclusiva; de outro, discursos segundo os quais cabe ao Judiciário tomar o controle em um palco de escândalos de corrupção e impunidade; em ambos, o sentimento de que não mais somos representados adequadamente por, justamente, aqueles a quem cabe representar-nos em uma democracia representativa[2].
3. A irrelevância da posição no espectro político[3]
Se o apoio à supremacia judicial é um fenômeno que se verifica tanto na esquerda quanto na direita, pretendo demonstrar que, igualmente, independentemente de onde nos situamos no espectro político, há boas razões para nos opormos a essa sobreposição de um dos Poderes aos outros.
Isso porque, quando o Poder Judiciário toma para si a incumbência de “empurrar a História” — seja isso traduzido no fim de (i) concretizar direitos, (ii) dar um fim à impunidade, ou nas duas coisas —, além de os resultados serem questionáveis, a supremacia judicial acaba por trazer novos problemas que independem dos fins que se têm em mente. Falo aqui da ilegitimidade democrática, da imprevisibilidade e da arbitrariedade[4].
A ilegitimidade é latente e, em nosso caso, trata-se até mesmo de uma questão constitucional. Para o bem e para o mal, representar não é papel do Poder Judiciário. Assim, do ponto de vista democrático, parece contraditório, diante de uma crise de representação, confiar a tarefa de guia da História a quem não tem qualquer função representativa.
Ainda assim, se a ilegitimidade democrática não parece motivo suficiente para que tenhamos cuidado com uma possível idealização do Judiciário, proporcional à nossa rejeição pelo Poder Legislativo (ou, no limite, pela classe política como um todo), há problemas ainda mais graves: a imprevisibilidade e a arbitrariedade, problemas que são correlatos.
Existe qualquer possibilidade de se prever uma decisão judicial — ainda que minimamente, dentro da esfera do possível — quando se aceita que o Judiciário ultrapasse os limites da tradição? A resposta está escondida na própria pergunta: quando os limites[5] não são observados, obviamente, não se pode antecipar o que pode vir a ser. Quando não se tem limites (ou quando esses limites são flexíveis), pode-se ser arbitrário; e quando surge a arbitrariedade, naturalmente, surge também a imprevisibilidade.
Ilustro esses três problemas, e sua inter-relação inexorável, com alguns exemplos, que me ajudam a demonstrar como eles, (i) porque surgem da supremacia judicial como tal, (ii) são, efetivamente, problemas, independentemente de localizações específicas no espectro político a partir das quais se olhe. Senão, vejamos.
A quem defende um Judiciário que concretize reivindicações sociais às quais o parlamento parece não se manifestar[6], que dizer do célebre Dred Scott v. Sandford, na Suprema Corte dos Estados Unidos? Foi justamente por meio do ativismo judicial, tão frequentemente ligado à concretização e efetivação de direitos, que o justice[7] Roger B. Taney deu um jeito de encontrar na Bill of Rights valores a partir dos quais era possível afirmar que afro-americanos não eram dignos de cidadania.
Também a Lochner Era foi uma época de ativismo à direita. No período entre 1897 e 1937, a Suprema Corte exercia seu poder de controle difuso, para além dos limites tradicionais, para revogar estatutos que limitavam a liberdade econômica e fortaleciam leis trabalhistas.
Por outro lado — geográfica e politicamente —, àqueles que (legitimamente, diga-se) se sentem cansados diante da promiscuidade política brasileira e veem no Judiciário um arauto da luta contra a corrupção em um país em crise econômica, basta lembrar a relação, já com uma série de episódios decisórios[8], entre o Poder Judiciário e o auxílio-moradia para juízes — relação em que o conflito de interesses é, basicamente, institucionalizado. Basta visualizar uma série de concessões de Habeas Corpus a políticos investigados por corrupção — concessões essas que, paradoxalmente, têm como seus principais críticos aqueles que advogam em favor de um Judiciário (demasiadamente) forte como meio de combate à corrupção.
Em síntese, o ponto é mais ou menos o seguinte: um progressista que aceite a supremacia judicial em nome de sua busca pela concretização de direitos corre o risco de, à la Lochner, ter um juiz conservador impondo obstáculos e, no limite, até revogando medidas sociais que o próprio parlamento pode eventualmente, pelas vias tradicionais, fazer vigorar. Também o conservador que decida apostar na supremacia judicial, por ver nela uma chance de obstar pautas progressistas, não tem qualquer garantia de que o contrário não aconteça.
O cidadão de boa vontade que encontra no ativismo da supremacia judicial a resposta para a corrupção e a impunidade deve ter em mente que não há nenhuma instância que regule aquilo que é supremo. Quem garante que ele não acabe encontrando, justamente onde ele espera satisfazer seus anseios por uma Justiça abstrata, a complacência de um juiz leniente?
4. Uma palavra final
O que se quer dizer, afinal, é que, independentemente de nossas concepções políticas, há bons motivos para que tenhamos, no mínimo, muito cuidado com a crença no Poder Judiciário como uma solução a uma crise que, porque política, econômica, institucional, social, já se tornou humanitária.
Evidentemente, todos concordamos que os níveis de corrupção no Brasil são vergonhosos. Penso que todos concordamos que a crise de representação já parece inegável e que, ao menos até certo ponto, uma suficiente maioria de nós defende uma sociedade comprometida com direitos[9]. É justamente por isso que devemos ter cuidado com teses que são defendidas por esses termos abstratos com os quais todos concorda(ria)m. A solução não é, não será rasa, tampouco está ou estará na essência simplificada. O Judiciário não nos salva de nós mesmos.
Ao apostarmos em uma corte iluminista, penso que assumimos um seríssimo risco de o povo deixar “de ser seu próprio regente, tendo praticamente submetido seu governo às mãos do eminente tribunal”.
[1] Mais especificamente, a quem interessar possa — e, devo dizer, em tempos de binarismo político, já visando, antecipadamente, evitar possíveis rotulações —, devo grande parte de minhas concepções políticas ao liberalismo clássico de autores como John Stuart Mill. De todo modo, isso não faz diferença no que diz respeito aos propósitos deste ensaio, uma vez que essencial, aqui, mais do que minha concepção pessoal, é um conceito de democracia lato sensu.
[2] Naturalmente, essas são representações abstratas de manifestações e opiniões tão complexas quanto legítimas. Além disso, é evidente que, tão somente porque alguém é “de direita” ou “de esquerda”, vai, necessariamente, rejeitar ou subscrever a qualquer uma das posições que procurei ilustrar aqui em seus sentidos amplos. Falo propositalmente de posicionamentos em seu caráter geral. Disso não se segue que direitistas sejam contra a efetivação de direitos nem que esquerdistas sejam a favor da corrupção nem que todo esquerdista é a favor de ativismos programáticos nem que todo direitista é punitivista. Penso que isso é óbvio, mas também o óbvio deve ser dito.
[3] Este subtítulo é inspirado em The Irrelevance of Moral Objectivity (em tradução livre, A Irrelevância da Objetividade Moral), de Jeremy Waldron — artigo que acabou por ser publicado na primeira edição de Law and Disagreement, magnum opus do autor, de 1999. No texto, resumindo (muito), o autor neozelandês diz que a objetividade e, sobretudo, o realismo moral (isto é, em sentido amplo, quando somadas essas ideias, extrai-se que proposições de cunho moral são passíveis de serem verdadeiras ou falsas, objetivamente) são irrelevantes para os argumentos do autor contra o judicial review, o controle difuso de constitucionalidade no Direito norte-americano, de modo que, havendo ou não uma resposta correta em questões morais, ainda assim há bons argumentos contrários à prática. Quem deseja aprofundar-se no tema, cf. WALDRON, Jeremy. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999, pp. 164-187.
[4] Haveria ainda muitos mais, para os quais o professor Lenio Streck, por exemplo, vem, corajosa e pioneiramente, apontando há anos. Optei pelos que me parecem mais óbvios e graves.
[5] Não é por menos, suponho, que Kelsen utilizava-se da metáfora de uma moldura.
[6] Ressalto que, aqui, falo de ativismo judicial. Sobre ativismo e judicialização, ver os comentários do professor Streck, ainda em 2013.
[7] A ironia de o termo justice designar um juiz com postura tão iníqua faz com que reflitamos sobre as relações entre Direito e Justiça. (Eu avisei ao início que o texto não era neutro.)
[8] Em sentido amplo, já que, por vezes, decide-se não pautar alguns julgamentos.
[9] Disso não se segue que não discordemos sobre quais são esses direitos e o que eles significam. Meu ponto é que temos boas razões para ver com olhos de desconfiança um apelo para que seja o Poder Judiciário a instância para definir e concretizar esses direitos para além de seus limites constitucionais.
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