Paradoxo da Corte

Concessão de HC contra a imposição abusiva de medidas coercitivas atípicas

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

3 de julho de 2018, 8h00

Além das sanções típicas, expressamente disciplinadas no Código de Processo Civil, como, por exemplo, a imposição de astreintes, o artigo 139, inciso IV, prevê a atipicidade dos meios executivos, verdadeira regra geral do sistema em prol da efetivação das decisões judiciais, ao dispor que:

“O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (…) IV – determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.

E isso porque, em decorrência de novas exigências e do consequente aperfeiçoamento que permeia a ciência processual, os especialistas concluíram que o tradicional modelo da execução por meio de sub-rogação enseja, em muitas situações, enorme frustração ao credor vitorioso.

Seja como for, a atuação judicial nesse sentido sempre deverá se desenvolver à luz das normas do devido processo legal, proporcionando ao obrigado, de forma incisiva, clara e expressa, as garantias da ampla defesa.

Questão interessante, que continua gerando acentuada polêmica em nosso meio jurídico, decorre de atos decisórios impositivos, como medida indutiva atípica, da suspensão da carteira nacional de habilitação, da restrição ao passaporte e, outrossim, do cancelamento dos cartões de crédito do executado e da proibição de prestar concurso público, até a comprovação do pagamento do débito em aberto.

E tudo, independentemente da natureza do dever, não apenas na esfera de dívida alimentar, mas igualmente de outras espécies de obrigação de pagar quantia certa.

Assim, como ocorre, por exemplo, nas situações nas quais se viabiliza a desconsideração da personalidade jurídica, tenho sustentado, após a devida reflexão, que tais medidas excepcionais procedem, desde que se possibilite ao obrigado o contraditório, facultando-lhe justificar as razões do descumprimento da sentença. Tal perspectiva decorre, como é cediço, não apenas em homenagem ao due process of law, como também em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana e da regra da menor onerosidade, agora repetida no artigo 805 do Código de Processo Civil.

Observo que, numa recente hipótese concreta, no âmbito de execução de título extrajudicial, diante do inadimplemento do executado, restou deferido o pedido de suspensão do passaporte e da carteira nacional de habilitação.

Contra tal provimento, o executado, alegando injusta violação ao seu status libertatis, impetrou Habeas Corpus, à vista da ausência de razoabilidade da medida judicial que lhe foi imposta, impedindo-lhe de exercer o seu direito fundamental de se locomover livremente.

A despeito de parecer favorável da Procuradoria-Geral de Justiça, o Tribunal de Justiça de São Paulo julgou extinto o processo, firme no fundamento de inadequação da via processual eleita, uma vez que a decisão atacada desafiava agravo de instrumento, não podendo o Habeas Corpus ser empregado como sucedâneo de recurso.

Irresignado, o executado-paciente interpôs recurso ordinário, com arrimo no artigo 105, inciso II, letra “a”, da Constituição Federal.

Tendo, assim, oportunidade de examinar esta importante questão, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recente julgamento unânime (5/6/2018) do Recurso em Habeas Corpus 97.876-SP, da relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, proveu parcialmente a referida impugnação, “a fim de desconstituir a medida executiva consistente na apreensão do passaporte do recorrente, determinando sua devolução, mantido o não conhecimento do writ em relação à apreensão da CNH”, porque, contra esta, cabível o agravo de instrumento (v., a respeito, Newton Pereira Ramos Neto, Ainda a polêmica sobre as medidas executivas atípicas: entre a efetividade e o processo como garantia democrática, Empório do Direito, Coluna ABDPro, n. 38, 20/6/2018).

Colhe-se do longo e substancioso voto condutor, da lavra do ministro Salomão, ponderada fundamentação, textual:

“(…) Por fim, anoto que o reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecendo o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência.

Com efeito, o que consubstancia coação à liberdade de locomoção, ilegal e abusiva, é a decisão judicial de apreensão de passaporte como forma de coerção para adimplemento de dívida civil representada em título executivo extrajudicial, tendo em vista a evidente falta de proporcionalidade e razoabilidade entre o direito submetido (liberdade de locomoção) e aquele que se pretende favorecer (adimplemento de dívida civil), diante das circunstâncias fáticas do caso em julgamento.

Cumpre mencionar, ainda, por dever de lealdade, que no âmbito da Segunda Seção a questão enfrentada fora decidida, monocraticamente, em três oportunidades, não tendo sido concedida a ordem em nenhuma delas. São elas: HC n. 428.553-SP, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino; RHC n. 88.490-DF, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti; HC n. 439.214-RJ, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti.

No entanto, é preciso ressaltar que, naqueles recursos, a despeito da decisão que suspendeu o passaporte do executado também ter sido seu objeto, os eminentes relatores valeram, para a fundamentação das decisões, da jurisprudência firmada por esta Corte, e aqui mencionada, acerca da suspensão da Carteira Nacional de Habilitação, não havendo debate sobre os pontos colocados aqui em relevo”.

Norteando-se, portanto, pela legalidade estrita, apenas depois de terem sido esgotados todos os meios executivos possíveis e de dar oportunidade à manifestação do executado é que o juiz, com inarredável fundamentação, poderá então deferir aquelas providências atípicas, especialmente no campo das relações do Direito de Família. E tudo, no exame do caso concreto, sem olvidar a proporcionalidade entre o meio processual de coerção imposto e o valor jurídico que se busca proteger.

Informando que esta questão foi recentemente submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.941, que argui parcial inconstitucionalidade, sem redução de texto, do artigo 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, recentemente distribuída à relatoria do ministro Luiz Fux e em regular tramitação sob o rito abreviado, Guilherme Sarri Carreira e Vinicius Caldas da Gama e Abreu (Das medidas atípicas nas execuções por quantia certa – a questão agora chegou no STF, Empório do Direito, Coluna ABDPro, n. 36, 6/6/2018) vaticinam igualmente que, acerca desta matéria, espera-se, na interpretação a ser sedimentada nos tribunais superiores, que “o devido processo legal seja observado e que o artigo 139, inciso IV, não seja transformado em um instrumento para legitimar medidas arbitrárias e autoritárias de restrições de direitos fundamentais, tudo sob a alegação de se ter uma execução efetiva”.

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