Opinião

O instituto da recuperação judicial e a (in)segurança jurídica

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3 de julho de 2018, 16h11

Com foco em recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, este artigo abordará certa discricionariedade que o Poder Judiciário vem se permitindo no contexto de processos de recuperação judicial. Tal fenômeno parece ligar-se à falta de uma verdadeira teoria estruturante do instituto da recuperação judicial, que leva o intérprete aplicador por caminhos interpretativos fluidos, repristinando práticas do passado que não levaram a bons resultados para a segurança jurídica.

Uma análise mais detida de uma série de decisões relevantes demonstra que expressões como “princípio da preservação da atividade empresarial” (tirado do artigo 47 da Lei 11.101/05) ou mesmo a já bem propalada “função social da empresa” (com fundamento normativo nos artigos 5º e 170 da Constituição Federal) estão sendo utilizadas como topos retórico para alargar — ou mesmo afastar — os limites hermenêuticos que impedem que o Judiciário se transforme em legislador[1].

Exemplifica este expediente uma recente decisão do Superior Tribunal de Justiça na qual decidiu pela derrogação do critério de aprovação de um plano de recuperação judicial estatuído pela Lei 11.101/05 (REsp 1.337.989/SP, julgado em 8/5/2018). Prevê a norma do artigo 45 que um plano será considerado aprovado se obtiver votos (a) de mais da metade dos credores de cada uma das quatro classes presentes na assembleia e (b) de titulares de mais da metade do valor de créditos com garantia real e de créditos quirografários[2]. Subsidiariamente, há o critério de aprovação do parágrafo 1º do artigo 58 — conhecido como cram down —, pelo qual o juízo pode conceder a recuperação fora da hipótese normal, desde que estejam presentes certos requisitos de forma cumulativa. São eles:

“I – o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembléia, independentemente de classes;

II – a aprovação de 2 (duas) das classes de credores nos termos do art. 45 desta Lei ou, caso haja somente 2 (duas) classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos 1 (uma) delas;

III – na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores, computados na forma dos §§ 1º e 2º do art. 45 desta Lei.

§ 2º A recuperação judicial somente poderá ser concedida com base no § 1º deste artigo se o plano não implicar tratamento diferenciado entre os credores da classe que o houver rejeitado”.

O texto admite apenas a conclusão de que, não obtido o quórum do artigo 45, a recuperação judicial poderá ser concedida somente com a presença de todos os requisitos elencados no parágrafo 1º do artigo 58[3]. Caso algum falte, o juiz deverá rejeitar o plano e decretar a quebra da empresa, na forma do artigo 56, parágrafo 4º, da mesma lei.

Entretanto, o Superior Tribunal de Justiça entendeu por bem afastar essa conclusão em seu julgado e decretou a aprovação de um plano de recuperação sem a presença de todos os requisitos. A decisão tomou como base as especificidades fáticas do caso e uma fluida noção sobre o “princípio da preservação da atividade empresarial”, reforçada por uma menção a “abuso de direito” afastada do delineamento dogmático que a doutrina e jurisprudência há muito já conferiram ao instituto.

O acórdão comentado relata que um determinado plano recebera votos suficientes para atender aos critérios de aprovação dos incisos I e II do artigo 58. Por outro lado, apenas um dos três credores detentores de garantia real havia votado favoravelmente ao plano, afastando o requisito do inciso III (“voto favorável de mais de 1/3 (um terço) dos credores”).

Reconhecendo que a aplicação da norma jurídica implicaria na quebra da empresa, a decisão passa a expandir o espaço de interpretação para fora dos limites semânticos democraticamente impostos ao julgador. E o faz aparentemente começando pelo final, ou seja, pela constatação de que a aplicação direta e regular da norma de modo algum poderia se impor, perfilando argumentos na sequência que, em última análise, se referem a si mesmos e apenas reforçam a impressão de algo pensado a priori e fundamentado depois.

O raciocínio do julgado não é de simples desmonte. Inicia com a afirmação de que o artigo 47 da Lei 11.101/05 positiva o já mencionado princípio da preservação da empresa, que deve “guiar a operacionabilidade da recuperação judicial, que objetiva o saneamento da situação econômico-financeiro e patrimonial da unidade produtiva economicamente viável”. Em seguida, passa aos efeitos que emanariam do princípio no campo hermenêutico, o qual imporia que “nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que (…) inviabilize a superação da crise empresarial”.

O decisum passa então a tratar sobre a teoria de que o vigente sistema nacional de insolvência teria superado o chamado dualismo pendular imanente às legislações anteriores, que vacilavam entre a proteção dos interesses do credor e do devedor. Nessa nova era, a manutenção das atividades da empresa e de seus benefícios sociais e econômicos é que deveria ser prestigiada, em detrimento dos interesses supostamente egoísticos das partes envolvidas, “sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se acolher aquela que busca conferir maior ênfase à finalidade do instituto de recuperação”.

A reforçar essa posição, a decisão lança mão da figura do abuso de direito de voto, a ser afastado justamente no momento de superação da crise, em que o interesse na manutenção da empresa recuperável deveria se sobrepor ao interesse de um ou poucos credores divergentes. Em conclusão, afirma que uma interpretação teleológica que leva em conta todos esses fatores resultaria no afastamento do critério de aprovação determinado pelo artigo 58.

Evidencia-se, em primeiro lugar, a circularidade do argumento, que se utiliza das figuras do princípio da preservação da atividade e da chamada teoria da superação do dualismo pendular como substancialmente equivalentes. Pelos termos utilizados, cria-se a impressão de que uma se refere à outra, faltando o necessário discrime teórico que permitiria compreender a autonomia de cada uma e os respectivos efeitos para o caso concreto e para os casos futuros semelhantes.

Do modo como disposto, o conteúdo de ambas parece ligar-se a uma noção de prevalência de soluções que atentem para a continuidade da atividade empresarial e aí se esgotam, tornando a autorreferência patente. Não é possível, ao menos pelo julgado, entender como se diferenciam e como atuam específica e individualmente nas posições jurídicas dos atores envolvidos (como no caso do credor que teve seu direito a voto afastado), assemelhando-se a enunciados performáticos transformados em princípios que podem tudo mudar.

Essa impressão é intensificada quando se percebe que a decisão viola sua própria metarregra. Ao tratar sobre os efeitos jurídicos que emanam das figuras, as reputa como critério de conformidade de interpretação de normas de direito recuperacional (algo como a interpretação conforme a Constituição, verfassungskonforme Auslegung), o que fica claro no trecho “diante das várias interpretações possíveis”. No entanto, adota uma solução semanticamente impossível, pois não é de se admitir que a norma do artigo 58 seja interpretada de modo a afastar quaisquer de seus requisitos, já que contém a expressão “de forma cumulativa”.

A menção à figura do abuso de direito de voto parece, em um primeiro momento, apontar para o caminho correto. É perfeitamente possível imaginar que o exercício desse direito possa exceder manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, como determina o artigo 187 do Código Civil, e ser tomado como ato ilícito. No entanto, alinhavar essa análise dependeria de verificar se há coincidência entre “a materialidade de tal comportamento ou situação com o fundamento axiológico-jurídico do direito subjetivo em causa, exactamente da mesma maneira por que forma ou estrutura e valor constituem e integram uma única intenção normativa”[4], o que poderia encontrar óbice no enunciado da Súmula 7 do próprio tribunal.

O voto do relator prefere mais uma vez a circularidade do argumento, ligando o abuso do direito ao mesmo fundamento axiológico das duas outras figuras, ou seja, à supremacia da preservação da empresa. E ainda traz consigo um deletério efeito: cria critério que, em última análise, poderia conduzir todo voto contrário a um plano de recuperação para o campo da abusividade, independentemente de um estudo pormenorizado das condições de seu exercício pelo credor. Seria como dizer que, “se o voto é contrário e pode levar à quebra da empresa, é abusivo”.

O julgado parece trazer para o Direito Comercial uma determinada propensão da nossa jurisprudência atual de criar princípios ou tirar desses efeitos que se utilizam e esgotam em uma específica aplicação — um expediente ad hoc[5]. A postura se percebe da baixa densidade teórica dos princípios utilizados, que resulta na falta de uma operatividade normativa concreta e, como consequência, de uma decisão que seja construída tomando em conta um percurso jurídico pré-determinado. Beira o voluntarismo, portanto.

Corrobora essa impressão o fato de o julgado mencionar que a recuperação em análise está sendo processada por nove anos e que seria fato consolidado, o que parece ter levado o tribunal a se desviar o quanto pôde do reconhecimento de que a lei recuperacional confere ao credor posição jurídica (direito de voto) apta a determinar a quebra de seu devedor, caso o quórum assim permita.

Pelos termos utilizados, o julgado remete de certa forma à jurisprudência dos interesses, em que a norma era entendida como funcionalizada à resolução de conflitos entre interesses sociais, aos quais o julgador deveria se reconduzir na hipótese de lacuna legal. No entanto, mesmo sob esse paradigma não seria possível chegar à conclusão analisada. Em primeiro lugar, porque não admite a decisão contra legem, como ocorreu no caso; em segundo, pois implicaria em uma maximização tamanha do interesse na proteção da atividade empresarial que acabaria por solapar por completo o interesse dos credores, o que seria impedido pela igual proteção que lhe confere o citado artigo 47 da Lei 11.101/05.

A bem da verdade, se analisado por seus efeitos, seria possível imaginar que a decisão revive alguns aspectos da Escola Livre do Direito, que defendia que uma decisão contrária ao texto da lei seria válida em casos em que esta se mostrasse injusta. É muito discutido que tal pensamento acabou por ser superado justamente por conferir ao Judiciário um poder legiferante que não se adéqua ao Estado Democrático de Direito, razão pela qual — mesmo que se admita que a posição do julgado se assemelhe a tal postura apenas em alguns aspectos — entendemos que o destino deve ser o mesmo no direito recuperacional.

Já nos adiantando a algumas críticas que possam surgir, registramos que não se pretende aqui defender que o juiz deverá funcionar como mero repetidor da lei nem que é expressamente proibido à doutrina e jurisprudência revisarem o texto legal (ninguém há de se esquecer que no artigo 158 do Código Civil, onde se lê “anulados”, deve-se entender “ineficacizados”, ou que a pretensão não nasce da violação do direito, muito embora o artigo 189 assim o diga). Também não se quer transformar o juízo da recuperação judicial em órgão de chancela de exercício injusto de posições por determinados credores, pois haveria aqui, como dito, o legítimo e reconhecido caminho pelo campo do abuso de direito, já muito bem desenvolvido pela dogmática civilista e em mais de uma vez transposto para análise dos votos em assembleia de credores[6].

O que se procura demonstrar é que, ao afastar o que determina a lei e encontrar um sentido não permitido pelos limites semânticos do texto com base em princípios e efeitos que não possuem suficiente densidade teórica, o julgado abre um caminho para a aplicação desmedida da lei dentro do processo de recuperação judicial, fulminando a segurança jurídica necessária para que o instituto possa cumprir seu papel.

Como dito no início do texto, é bem possível que isso seja o resultado da falta de uma teoria estruturante do direito da recuperação das empresas no âmbito nacional bem desenvolvida e difundida. Ainda assim, parece-nos que a decisão, certamente imbuída das melhores intenções possíveis, não andou bem ao revogar o critério de aprovação do plano de recuperação judicial nesse caso específico.


[1] Sobre o não respeito a esses limites no campo do Direito Civil: RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz, Estatuto epistemológico do Direito civil contemporâneo na tradição de civil law em face do neoconstitucionalismo e dos princípios. O Direito (Lisboa), v. 143, 2011, p. 43-66.
[2] O objetivo é estipular que os credores considerados hipossuficientes — trabalhistas e ME/EPP — não tenham o peso de seu voto determinado pelo valor.
[3] “Poderá”, pois há ainda a avaliação da substância do plano determinada pelo parágrafo 2º, que não encontra abrigo na forma de aprovação do artigo 45.
[4] CUNHA DE SÁ, Fernando Augusto. Abuso do direito. Coimbra: Almedina, 2005, p. 456.
[5] Fenômeno há muito criticado pelo professor Lenio Luiz Streck em suas obras e em suas colunas semanais neste site.
[6] Cf. por todos: BUSCHINELLI, Gabriel Saad Kik. Abuso de direito na assembleia geral de credores. São Paulo: Quartier Latin, 2014.

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