Opinião

O artigo 926 do CPC e a vedação à criação de jurisprudência conflitante

Autor

  • Cesar Zucatti Pritsch

    é juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA) juiz do trabalho membro da Comissão de Jurisprudência e vice-coordenador pedagógico da Escola Judicial do TRT da 4ª Região.

3 de julho de 2018, 6h11

O artigo 926 e seguintes do CPC de 2015 inauguram um novo paradigma no cuidado dos tribunais com sua própria jurisprudência. Reza tal artigo que “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”. O verbo “dever” não deixa dúvida quanto à obrigatoriedade de manter a jurisprudência íntegra e coerente, portanto não conflitante ou dispersa.

Diante disso, é inafastável o seguinte questionamento: pode um órgão fracionário de um tribunal simplesmente ignorar acórdãos de seus pares dos outros órgãos do mesmo tribunal, decidindo em contrário, sem qualquer compromisso com a integridade da jurisprudência de tal tribunal? Ou deveria tal órgão fracionário, para discordar, necessariamente se desincumbir do ônus argumentativo quanto aos fundamentos determinantes dos julgados conflitantes, ato contínuo suscitando o colegiado competente para pacificar o conflito jurisprudencial?

Considerando que, em boa hermenêutica, não se pode extirpar palavras do texto ou presumir que sejam supérfluas ou desnecessárias, a obrigatoriedade de uma jurisprudência sistêmica, íntegra e coerente do artigo 926 do CPC impede que os órgãos fracionários de jurisdição coordenada incorram em jurisprudência conflitante sem suscitar o instrumento adequado para a sua imediata uniformização. Conforme se tratar de matéria repetitiva ou não, seriam cabíveis, respectivamente, os incidentes de resolução de demandas repetitivas (IRDR) ou de assunção de competência (IAC)[1].

A força do Judiciário em produzir efeitos na vida em sociedade está na força de sua jurisprudência — se os próprios juízes não respeitam sua jurisprudência, por que haveria a sociedade de fazê-lo?

É por tal razão que nas jurisdições de common law existe não apenas o stare decisis vertical, ou a observância dos precedentes de órgãos jurisdicionais superiores, mas também o stare decisis horizontal, observância de precedentes pela própria corte que os emitiu (salvo nos raríssimos casos de overruling), e observância de precedentes de órgãos fracionários de uma corte reciprocamente, sendo os eventuais dissensos levados para uniformização en banc pelos respectivos plenários[2].

Por exemplo, quanto aos tribunais de “circuitos” federais americanos, as decisões prolatadas por “painéis” de três juízes de segundo grau não podem ser overruled por outro “painel” e devem ser observadas por todos os integrantes do respectivo tribunal[3]. Ao contrário da praxe que imperava aqui antes do código de 2015, não se permite, nos EUA, à guisa de independência funcional, que turmas de um tribunal ignorem ou divirjam das demais turmas do mesmo tribunal federal. Objetiva-se que a jurisprudência de qualquer composição fracionárias de uma U.S. Court of Appeals seja vista como uniforme e vinculante pelos jurisdicionados e juízes de primeiro grau da respectiva jurisdição. Se não fosse uniforme, não haveria como ser vinculante. Do contrário, qual dos entendimentos conflitantes vincularia? Evita-se, assim, a proliferação de dissenso também entre as cortes de juízes de primeiro grau (trial courts) e a desnecessária recorribilidade pelo jurisdicionado.

Lá, havendo divergência irreconciliável de um “painel” em relação a precedentes de outros órgãos fracionários do mesmo tribunal, é acionado o respectivo pleno (en banc) para rehearing (“re-oitiva” da argumentação das partes no recurso) no caso concreto em que surgida a divergência irreconciliável, a fim de solucioná-la, proferindo novo julgamento para o mesmo recurso, desta vez com a força precedencial da composição plenária do tribunal. Em tal sentido a Regra 35 das Regras Federais do Procedimento de Apelação (Federal Rules of Appellate Procedure – FRAP) que menciona que o juiz do tribunal pode requerer o julgamento do recurso en banc, o que depende da aceitação pela “maioria dos juízes do circuito”[4]. Logo, embora as turmas não tenham liberdade para prolatar decisões conflitantes umas com as outras, tampouco estão obrigadas de forma absoluta a seguir o precedente de outra turma da qual discordem, podendo provocar a atuação uniformizadora do pleno, que, caso aceite, terá competência funcional para (re)julgar o recurso objeto do dissenso.

Aqui no Brasil, como vimos, o artigo 926 do CPC de 2015 impõe instituto similar. A redação é impositiva, não se podendo presumir que uma norma seja meramente programática ou despida de cogência, como uma mera recomendação. Os juízes dos tribunais, a quem tal artigo se destina, são os primeiros que devem extrair de tal norma sua eficácia plena, e não torná-la natimorta. Assim, surgindo uma questão de direito em que a turma com o recurso sub judice não consiga concordar com o entendimento sobre a mesma questão já prolatado pelas demais turmas do mesmo tribunal, não poderá simplesmente decidir contraditoriamente ao que outros órgãos fracionários decidiram, como se tais precedentes inexistissem. Deverá suscitar o incidente apropriado, IRDR ou IAC, conforme o caso.

Finalmente, caso a turma ou câmara eventualmente decida de forma dissonante, ignorando a jurisprudência contrária de outros órgãos fracionários do mesmo tribunal, deve haver regramento regimental impondo o do artigo 926 do CPC, determinando a uniformização, ex officio ou por provocação das partes. Uma possibilidade interessante é, por analogia ao artigo 1.030, II, do CPC[5], em se percebendo o dissenso interno, ainda que em exame de admissibilidade de recursos aos tribunais superiores, seja o processo devolvido à origem para retratação ou para que seja suscitado o correspondente incidente — IRDR ou IAC.

*O presente artigo é excerto de um dos tópicos abordados na obra Manual de Prática dos Precedentes no Processo Civil e do Trabalho, lançada em março de 2018 pela editora LTr.


[1] Na seara do processo do trabalho, havia até recentemente o incidente de uniformização de jurisprudência (IUJ), mas temos que este não possui mais cabimento, ainda que por previsão regimental, após a revogação da referência legislativa expressa ao IUJ na CLT (parágrafos 3º a 6º do artigo 896 da CLT) pela Lei 13.467/2017 (reforma trabalhista).
[2] Ver PRITSCH, op. cit, 4.4 Stare decisis nos EUA – quais julgados vinculam?
[3] KANNAN, Phillip M. The Precedential Force of Panel Law. Marquette Law Review, v. 76, 1993, p. 755-756, (citando mais de uma dezena de acórdãos federais em tal sentido). Disponível em <http://scholarship.law.marquette.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1666&context=mulr>. Ver ainda PRITSCH, op. cit, 4.4.5.1 Em nível federal, uma turma não pode divergir de outra — mas sim provocar manifestação do pleno (en banc).
[4] Regras Federais do Procedimento de Apelação (Federal Rules of Appellate Procedure – FRAP) Rule 35. En Banc Determination (a) When Hearing or Rehearing En Banc May Be Ordered. A majority of the circuit judges who are in regular active service and who are not disqualified may order that an appeal or other proceeding be heard or reheard by the court of appeals en banc. An en banc hearing or rehearing is not favored and ordinarily will not be ordered unless: (1) en banc consideration is necessary to secure or maintain uniformity of the court's decisions; or (2) the proceeding involves a question of exceptional importance. … (f) Call for a Vote. A vote need not be taken to determine whether the case will be heard or reheard en banc unless a judge calls for a vote. Disponível em <https://www.law.cornell.edu/rules/frap/rule_35>.
[5] Art. 1.030. do CPC – … presidente ou ao vice-presidente do tribunal recorrido, que deverá: … II – encaminhar o processo ao órgão julgador para realização do juízo de retratação, se o acórdão recorrido divergir do entendimento do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça exarado, conforme o caso, nos regimes de repercussão geral ou de recursos repetitivos; (Incluído pela Lei nº 13.256, de 2016).

Autores

  • é juiz do Trabalho do TRT-4, ex-procurador federal, professor da Escola Judicial do TRT-4 e de outros tribunais regionais e juris doctor pela Universidade Internacional da Flórida (EUA).

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