Opinião

Privatização do controle das empresas estatais exige lei conforme a Constituição

Autores

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

  • Élida Graziane Pinto

    é professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

2 de julho de 2018, 13h59

Dentre as grandes questões em curso no país, tem-se aberto o debate sobre as privatizações do controle societário de empresas estatais e suas subsidiárias, à semelhança do que se viu com a Lei 9.491/97, que instalou o Programa Nacional de Desestatização, com a diferença de que, no momento, não se tem uma lei-quadro que regule, à exaustão, todos os aspectos relativos às condições e procedimentos a serem adotados. A Lei 13.303/2016, que introduziu o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias, não tem natureza de norma suplementar ou sucessora da Lei 9.491/97. Somente desse fato já decorre notável insegurança jurídica para os envolvidos.

Recentemente, por meio de liminar do ministro Ricardo Lewandowski, o Supremo Tribunal Federal suspendeu as privatizações das empresas estatais e suas subsidiárias, por interpretação conforme a Constituição do artigo 29, XVIII, da Lei 13.303/2016, que assim prevê: “É dispensável a realização de licitação por empresas públicas e sociedades de economia mista: XVIII – na compra e venda de ações, de títulos de crédito e de dívida e de bens que produzam ou comercializem”. Entendemos que a medida procede, pois não há clareza sobre se essa regra confere efetivos poderes para alienar inclusive o “controle acionário” das referidas entidades, na forma de amplo programa de desestatização, o que não poderia fugir ao dever de autorização legislativa expressa.

No Brasil, o controle de inconstitucionalidades é feito a posteriori, pelo Poder Judiciário — em particular, pelo STF. Por isso, incorreria em grave insegurança jurídica prosseguir num programa de tamanha afetação ao patrimônio público, com alienação de empresas sobremodo relevantes, como são as de geração ou de comercialização de energia elétrica, mediante lei de duvidosa conformidade com o texto constitucional, que não se submeteu a ação declaratória de constitucionalidade, e mormente quando a mesma lei seja objeto de ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.624).

Provocado o Judiciário, nesta hipótese, a urgência se impõe por cautela. Algo vai muito mal quando o atropelo é defendido a pretexto de urgência que desborda do rito ordinário de planejamento e diálogo interinstitucional. Por isso, o próprio relator usou convocar audiência pública para debater com os atores envolvidos as repercussões jurídicas do programa.

Diante do regime de proteção do patrimônio público na Constituição, é inconteste a insuficiência da autorização legislativa do artigo 29, XVIII, da Lei 13.303/2016 para conferir poderes de alienação de controles acionários de toda e qualquer empresa pública, como se está a ver no caso concreto.

E não se diga que o regime constitucional da propriedade de empresas estatais é dotado de normas genéricas ou vagas. No Brasil, pode-se falar numa verdadeira “constituição financeira”, pelo conjunto de normas e princípios jurídicos que definem o limite do legislador ou da administração pública na gestão dos bens e direitos públicos, como expressão dos princípios de soberania e de república, o que acompanha aqueles que regem as relações entre o Estado e a ordem econômica.

De início, o artigo 23, I da Constituição prescreve ser “competência comum” da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e “conservar o patrimônio público”. Destarte, a Constituição privilegia a “conservação” do patrimônio público como regra de competência geral.

As empresas estatais ou suas subsidiárias, receberam, no artigo 173, tratamento próprio para determinar os imperativos da “segurança nacional” ou de “relevante interesse coletivo” como requisitos de sua manutenção e continuidade. E o parágrafo 1º, III do referido artigo estatui que a lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias para dispor sobre licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública.

Ao mais, o artigo 37, XXI estabelece que, ressalvados os casos especificados na legislação, as alienações serão contratadas sempre mediante processo de licitação pública. E o artigo 165, parágrafo 5º, II prevê que a lei orçamentária anual compreenderá o orçamento de investimento das empresas em que a União, direta ou indiretamente, detenha a maioria do capital social com direito a voto. Logo, qualquer alienação impacta o orçamento público, e daí a necessidade de manifestação direta do Congresso sobre a respectiva empresa ou subsidiária alienada.

Quanto ao destino dos ganhos obtidos, vale lembrar do artigo 81 do ADCT, segundo o qual os “recursos recebidos pela União em decorrência da desestatização de sociedades de economia mista ou empresas públicas por ela controladas, direta ou indiretamente”, devem ser destinados ao Fundo de Combate e Erradicação de Pobreza, quando a operação envolver a alienação do respectivo controle acionário a pessoa ou entidade não integrante da administração pública, ou de participação societária remanescente após a alienação, com rendimentos, gerados a partir de 18 de junho de 2002. Esse fundo foi renovado indefinidamente pela Emenda Constitucional 67/2010.

Ora, é induvidoso que o texto vago e lacônico do artigo 29, XVIII, da Lei 13.303/2016 não é suficiente para cumprir todas as exigências dessas disposições constitucionais. Logo, na ausência de lei especial que regule todos os contornos de qualquer privatização, deve prevalecer o artigo 17, I da Lei 8.666/93, que é a lei geral de contratos administrativos, a qual exigirá necessariamente o processo de licitação, a prova da necessidade pública e a apuração do valor.

Deveras, não se pode alienar controle societário de empresas estatais e suas subsidiárias como se fora venda residual de legumes e frutas em fim de feira[1]. O dever de licitação, pois, encontra-se igualmente mantido. A partir de uma leitura sistêmica das normas do Direito Financeiro, urge ainda maior cautela e vigilância quanto ao regime jurídico que se aplica às contas públicas no final de mandato.

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000), a Lei dos Crimes Fiscais (Lei 10.028/2000) e a Lei das Eleições (Lei 9.504/1997) trazem algumas balizas interessantes para a reflexão da matéria. Nos últimos meses de mandato, é vedado contrair obrigações de despesa que não possam ser cumpridas integralmente dentro dele ou não tenham cobertura financeira para quitação posterior, tampouco se pode majorar remuneração de pessoal ou realizar transferências voluntárias aos entes subnacionais. Tais exemplos de condutas vedadas (algumas delas crimes) não são meras regras isoladas, porque se encontram providas de forte orientação pedagógica e principiológica que clamam por nossa reflexão sistêmica: em final de mandato impõe-se maior rigor com o legado a ser deixado para o próximo ciclo político-democrático.

Obviamente esse legado não se refere apenas ao saldo de despesas ou de endividamento, uma vez que a gestão das contas dessas empresas estatais necessariamente também passa pela gestão das renúncias de receitas[2] e do patrimônio público disponível. Quem está na iminência de sair não pode adotar a tática de terra arrasada, tampouco pode adotar discurso de urgência para invocar regime de exceção em face das balizas constitucionais e legais aplicáveis.

Na ADI 5.624, o que está em jogo (até para aproveitar o embalo da Copa) não é apenas a exigência de lei autorizativa específica e a realização do pertinente certame licitatório mediante avaliação prévia dos ativos em horizonte temporal minimamente adequado quanto ao potencial de arrecadação futura.

Nuclear aqui é o questionamento acerca da própria deliberação democrática equitativa entre meios e fins de que o Estado dispõe para cumprir as finalidades constitucionais que lhe foram atribuídas. Em artigo[3] publicado na Folha de S.Paulo, o ministro Lewandowski assim nos alerta sobre as preocupações que o tema enseja:

“A transferência do controle desses recursos a estrangeiros ou mesmo a nacionais, sem garantias sólidas de que sejam rigorosamente empregados em prol do interesse coletivo, acaba por minar os próprios fundamentos da soberania, não raro de forma irreversível.

Internacionalizar ou privatizar ativos estratégicos não se reduz apenas a uma mera opção governamental, de caráter contingente, ditada por escolhas circunstanciais de ordem pragmática. Constitui uma decisão que se projeta no tempo, configurando verdadeira política de Estado, a qual, por isso mesmo, deve ser precedida de muita reflexão e amplo debate, pois suas consequências têm o condão de afetar o bem-estar das gerações presentes e até a própria sobrevivência das vindouras”.

Sabemos que na agenda iminente do governo está a privatização da Eletrobras, dentre outras empresas estatais. O tema é polêmico. É bem verdade que o conceito de serviço público a que se refere o artigo 175 da Constituição tem sido revisitado e até mesmo bastante reduzido por parcela da doutrina, até mesmo quanto à sua continuidade, universalidade, modicidade tarifária e atualidade tecnológica, mas ninguém duvida que a energia elétrica prossiga como algo estrutural para a vida e para o desenvolvimento econômico do país.

A cerca de seis meses do final de mandato, a cautela com a alienação de bens e empresas estatais deve ser redobrada, sobretudo quanto ao devido processo legal que informa a matéria. Como bem assinalado pelo ministro Ricardo Lewandowski, na cautelar concedida na ADI 5.624, a saber:

“Ainda que a eventual decisão do Estado de deixar de explorar diretamente determinada atividade econômica, constante do art. 173 da Constituição Federal, seja uma prerrogativa do governante do momento, não se pode deixar de levar em consideração que os processos de desestatização são conformados por procedimentos peculiares, dentre os quais, ao menos numa primeira análise do tema, encontra-se a manifestação autorizativa do Parlamento”.

De fato, esta é uma questão de direito intergeracional e envolve inúmeros fatores políticos e econômicos de expressiva monta.

Deveras, tanto o artigo 29, XVIII da Lei 13.303/2016 quanto o artigo 1º, parágrafo 3º do Decreto 9.188/2017[4] trouxeram evidente insegurança jurídica a pretexto de flexibilização do regime jurídico de alienação de ações das empresas estatais e suas subsidiárias. Foram erigidas genericamente as redações de tais dispositivos para conferir discricionariedade que, na prática, resvala rapidamente para o risco de atropelo arbitrário. Daí porque se suspeita ser carecedora de interpretação conforme com a Constituição, tal como decidido cautelarmente pelo STF, a autorização da alienação total de ativos das empresas estatais, sobretudo no que se refere ao patrimônio físico, direitos e participações mobiliárias, diretas ou indiretas, das sociedades subsidiárias e controladas de sociedades de economia mista.

Ora, no caso do Decreto 9.188/2017, a pretexto de “estabelece[r] regras de governança, transparência e boas práticas de mercado para a adoção de regime especial de desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais”, resta permitir que tais entidades da administração indireta promovam estratégias de transferência para terceiros do domínio de todas “as unidades operacionais e os estabelecimentos integrantes do seu patrimônio, os direitos e as participações, diretas ou indiretas, em outras sociedades”. E aqui cabe ênfase no caráter universal da medida, em tudo preocupante.

O nível da discricionariedade no processo de “desinvestimento” pode colocar em xeque a própria existência da empresa estatal como uma entidade autônoma, sem que tenha havido sua extinção formal por lei. No caso das sociedades de economia mista prestadoras de serviço público, há também o risco de não se ter a adequada avaliação para fins de desafetação dos seus bens móveis e imóveis vinculados à própria continuidade de tais serviços.

Todas essas variáveis indicam sérias dúvidas jurídicas na alienação in totum de ativos das empresas estatais. Os riscos são volumosos diante das balizas previstas em nosso ordenamento, a começar pela indispensável legalidade, suficiente a identificar cada uma das sociedades a terem o controle acionário alienado. A exigência de lei específica na extinção de entidades da administração indireta, ao nosso ver, acompanha o mesmo tratamento previsto para criação, como se encontra inscrita no artigo 37, XIX da Constituição.

Em final de mandato, deve ser redobrada a cautela quanto ao sistema de freios e contrapesos, quanto à gestão intertemporal equilibrada das contas públicas, bem como quanto ao devido processo legal e administrativo (autorização legislativa específica e licitação pertinente). O dever de preservação do legado a ser transferido para o(a) próximo(a) mandatário(a) justifica essas cautelas, até porque são investimentos vinculados ao orçamento anual, como determina a Constituição.

Numa síntese, em louvor aos ditames de proteção do patrimônio público e defesa da Constituição, a urgência da agenda econômica de privatizações deve se acautelar do salutar diálogo com o parlamento. Em contextos que se pretendem democráticos, será sempre significativo elucidar para os interessados os processos de decisão e as opções de conformidade e de integridade normativa e prática, todos atendidos segundo critérios claros e transparentes, conforme a Constituição e dirigidos aos melhores resultados econômicos.

Por isso, em boa hora, a decisão do ministro Ricardo Lewandowski na ADI 5.624 convida a todos para reflexão, evita esforços de oportunidades ou chances perdidas, ao evidenciar forte compromisso com a segurança jurídica, e, precipuamente, contribui para que a nação tome decisões seguras e republicanas sobre os destinos das suas empresas estatais quanto à oportunidade e conveniência da alienação, mas também quanto ao procedimento a ser empregado na venda.


[1] O valor de venda estimado para cada distribuidora é simbólico: R$ 50 mil, como noticiado em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1934039-distribuidoras-da-eletrobras-serao-vendidas-por-r-50-mil-cada.shtml.
[2] O Tribunal de Contas da União questionou a trajetória recente das renúncias fiscais concedidas pelo governo federal, como noticiado em https://www12.senado.leg.br/noticias/audios/2018/06/relatorio-do-tcu-traz-alertas-sobre-teto-de-gastos-e-renuncias-fiscais e http://www.valor.com.br/brasil/5594169/tcu-critica-elevacao-da-renuncia-fiscal-nas-contas-de-2017. Interessante ver o quanto detectado pelo próprio secretário da Receita Federal Jorge Rachid, em sua entrevista publicada neste domingo (1º/7) na Folha de S.Paulo: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/06/estado-brasileiro-esta-dando-beneficio-fiscal-ate-para-salmao-e-file-mignon.shtml.
[3] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/06/ricardo-lewandowski-soberania-nacional-e-ativos-estrategicos.shtml.
[4] A respeito da discricionariedade abusiva conferida pelo decreto que trouxe o regime especial de “desinvestimento”, ver https://www.conjur.com.br/2017-nov-07/contas-vista-decretos-contingenciamento-desinvestimento-sao-cheques-branco.

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    é professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da USP e advogado. Foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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