Constituição e Poder

Por que a sociedade deve respeitar a dignidade da pessoa humana do criminoso?

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2 de julho de 2018, 15h46

Spacca
Por que o Estado e a sociedade devem tratar com dignidade os criminosos?

Essa é a questão com a qual todos os dias aqueles que defendem os direitos fundamentais são confrontados por honestos cidadãos, que não veem sentido em atribuir e muito menos respeitar os direitos daqueles que não parecem preocupados em acatar os direitos alheios.

Vamos buscar algumas respostas a essa questão, tanto do ponto de vista jurídico como filosófico.

1. Do ponto de vista da experiência
Do ponto de vista prático, a experiência demonstra que uma sociedade que desrespeita os direitos dos presos dificilmente costuma respeitar os direitos dos demais cidadãos. De fato, digo sempre aos meus alunos que, em viagem a outros países, se querem saber como uma sociedade trata os seus cidadãos, procurem, se possível, visitar ou pelo menos conhecer a realidade de suas escolas básicas e de seus presídios, pois, como regra, o que tenho confirmado por minha experiência pessoal é que onde se cuida bem daqueles seres humanos com os quais mais nos preocupamos (as crianças) também, por incrível que pareça, tende-se a respeitar os direitos daqueles que, em geral, as sociedades mais costumam desprezar (os criminosos). Aliás, se puder visitar apenas uma dessas instituições para conhecer o país, aconselho visitar os presídios, pois, com quase toda certeza, uma sociedade que se preocupa em conferir dignidade a pessoas condenadas por crimes praticados com muito maior razão tratará bem de suas crianças.

De fato, invertendo um pouco a lógica do que muitos brasileiros são levados a acreditar, este artigo busca explicar, sobretudo, a partir de Immanuel Kant, por que o contrário dessa máxima de experiência parece se confirmar, isto é, por que é de se esperar que aquelas sociedades que desconsideram os seus deveres com os presos também tendem a desconsiderar as suas obrigações com os demais cidadãos. Vejamos.

2. A dignidade da pessoa humana como direito fundamental
A primeira questão que se coloca diante da dúvida quanto ao dever de o Estado respeitar a dignidade de pessoas eventualmente condenadas pela prática de crimes é, obviamente, saber se pessoas investigadas por crimes, ou mesmo criminosos condenados, são titulares do direito fundamental à dignidade humana.

Sem dúvida, a dignidade da pessoa humana é, no contexto das ordens jurídicas democráticas, assegurada como direito de titularidade universal, no sentido de que, com “igualdade radical”, é assegurada a toda pessoa humana (natural), isto é, todos têm direito à dignidade humana pelo fato simples de ser pessoa. Portanto, para titularizar a dignidade da pessoa humana, “não têm importância nacionalidade, idade, amadurecimento intelectual, capacidade de comunicação”. Também não é seu pressuposto “a capacidade de entendimento ou percepção”, de tal modo que a consciência de própria dignidade, ou de uma conduta em conformidade com ela, não é condição para ser tratado com dignidade[1].

Quem é ser humano, pois, tem dignidade. Assim, no que aqui interessa, não impõem a perda da dignidade nem têm o poder de relativizá-la circunstâncias como insanidade, necessidades especiais ou criminalidade.

Portanto, não existe dúvida, considerado o direito constitucional contemporâneo, no âmbito de uma investigação comparada, que também as pessoas que praticam crimes, investigadas, processadas ou já condenadas, têm o direito fundamental de ver respeitada a sua dignidade.

Para ficar em exemplo expressivo, no Direito alemão, o Tribunal Constitucional, reiteradas vezes, tem reconhecido que a dignidade humana tem aplicação tanto no Direito Penal como no Processo Penal, e na própria execução da pena.

Por exemplo, reconhecendo a legitimidade constitucional, na sua Grundgesetz, da possibilidade de prisão perpétua, o tribunal tem imposto, contudo, a necessidade de toda condenação à pena perpétua vir acompanhada da possibilidade de a liberdade ser algum dia recuperada. Da mesma forma, impõe-se o dever de o Estado oferecer a quem esteja submetido à pena, ou à medida de segurança, a possibilidade de trabalho, terapia ou tratamento. O tribunal tem entendido obrigatório, sob pena de violação à dignidade humana, o dever de o Estado respeitar o princípio da culpa (demonstração concreta de responsabilidade de quem deve responder por um crime), assim como o respeito à proporcionalidade quando se cuida de aplicação da pena. Também no âmbito da execução penal, o Estado tem que observar a dignidade da pessoa humana, razão pela qual aquele tribunal entendeu que celas muito pequenas “sem separação de toilette”, por exemplo, podem violar a dignidade da pessoa humana, como previsto no artigo 1, 1, da Lei Fundamental alemã[2].

Na investigação criminal, o tribunal tem afirmado a absoluta ilegitimidade da tortura, do chamado polígrafo (detetor de mentiras), ou soro da verdade, como meios de obtenção de prova, isso porque, em todas essas situações, desconsidera-se a autonomia da vontade como maior expressão de personalidade e da dignidade da pessoa humana. Tanto na tortura como no detetor ou no chamado soro da verdade o Estado pretende extrair a verdade dos fatos em desconsideração à vontade e à autonomia do indivíduo[3].

Pela mesma razão, não obstante o tribunal tenha reconhecido a possibilidade de barganha (acordos) no processo penal, tem imposto limitações à possibilidade de o Estado, mediante acordos, mitigar os princípios da ampla de defesa, da verdade real, ou da presunção de inocência.

Em resumo, não parece haver dúvida séria quanto ao fato de, juridicamente, estar o Estado obrigado a respeitar os direitos das pessoas investigadas, processas ou mesmo condenadas por prática de crimes. Resta, contudo, o problema de saber se a sociedade pode, não em termos jurídicos, mas em termos mais abertos, isto é, em termos éticos e morais, desconsiderar os direitos das pessoas tidas como criminosas.

Vejamos esse problema à luz da filosofia kantiana.

3. A dignidade da pessoa humana como valor absoluto (ponto de vista filosófico)
Num pequeno texto (Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade), Kant enfrentou mais uma vez o problema de deveres absolutos. De fato, depois de haver sustentado em uma de suas mais prestigiadas obras, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, a existência de máximas absolutas de comportamento, os conhecidos imperativos categóricos, o filósofo de Königsberg, teve que responder à objeção de Benjamin Constant, que, em aberta e específica oposição à filosofia moral de Kant, afirmava, sem meias palavras, não haver deveres morais em favor de criminosos, nos seguintes termos:

“É um dever dizer a verdade. O conceito de dever é inseparável do conceito do direito. Um dever é aquilo que corresponde um ser aos direitos do outro. Onde não há direito algum, não há deveres. Por conseguinte, dizer a verdade é um dever, mas somente com relação àqueles que possuem o direito à veracidade. Contudo, nenhum homem tem o direito à verdade que prejudica os demais”[4].

Portanto, conforme resumiria o próprio Kant, o que Benjamin Constant estava a afirmar era a ideia — muito divulgada entre nós ultimamente — de que apenas temos que agir corretamente com aqueles que têm direito a esse comportamento, isto é, apenas em relação a quem também age corretamente. Portanto, B. Constant expressamente concluía que não existem deveres em favor de criminosos pela razão simples de que eles, ao não respeitarem os direitos dos demais, não teriam, em contrapartida, o direito de ver respeitados os seus próprios direitos.

A resposta de Kant à provocação de Benjamin Constant não poderia ser mais surpreendente. Reafirmando a sua convicção quanto à existência de imperativos categóricos (condutas devidas independentemente de circunstâncias e condições), em qualquer situação em que somos obrigados por uma tal espécie de imposição de comportamento, mesmo perante criminosos, insiste o grande filósofo (para muitos, a mais brilhante inteligência que esteve entre nós), estamos obrigados a agir em conformidade com esse dever, não importando as consequências.

Argumenta que o comportamento correto (em conformidade com a obrigação ética existente) se impõe como dever a todo homem que pretenda agir em conformidade com a moral, pois, quando violamos esse dever, não importa a razão, no que nos diz respeito, fazemos com que, em alguma medida, todas as normas de comportamento moral “fiquem desprovidas de crédito” e com que todos os direitos fundados nessas normas percam legitimidade (validade) e percam sua força (eficácia)[5].

Segundo Kant, “um princípio reconhecido como verdadeiro (e acrescento: reconhecido a priori, sendo portanto apodítico) jamais deve ser abandonado, independentemente do perigo aparente que nele encontre”, pois “o que se deve compreender aqui não é perigo de (acidentalmente) causar dano, mas, em termos gerais, de cometer uma injustiça”[6].

Assim, o grande pensador adverte-nos para aqueles momentos de tentação, em que somos levados a acreditar que podemos — e mesmo devemos —, dependendo das circunstâncias, subordinar valores que consideramos superiores — até mesmo incondicionais — da nossa ordem moral e jurídica (como a dignidade da pessoa humana) a deveres e fins condicionados, ou a outras circunstâncias ou considerações. Na linguagem kantiana, o autor preocupa-se em que não sejamos levados a transformar um imperativo categórico em imperativo hipotético.

Explicando sua lógica com o exemplo do dever de dizer verdade, conclui o Immanuel Kant:

“E embora, em certa mentira, não pratique com essa ação injustiça a ninguém, de um modo geral atento contra o princípio do direito, no que se refere a todas as declarações inevitavelmente necessárias (cometo um injustiça formaliter, embora não materialiter), o que é ainda muito pior do que perpetrar uma injustiça contra certo indivíduo, porque tal ação nem mesmo supõe sempre um princípio para ela no sujeito. Quem suporta a pergunta feita por outro indivíduo, indagando-lhe se em uma declaração sua, que tem agora de fazer, pretende ser verdadeiro, ou não, não reage com indignação à suspeita que assim é levantada contra ele, a saber, a de que poderia ser bem um mentiroso, mas pede permissão para pensar em uma possível exceção, tal pessoa já é um mentiroso (in potentia), porque mostra que não reconhece a veracidade como um dever por si mesmo, reservando-se a possibilidade de fazer exceções a uma regra que, por excelência, não admite exceção alguma, e nessa medida aí se constituiria uma contradição direta da regra com ela mesma”[7].

No que diz especificamente com a dignidade da pessoa humana, consagrando a famosa fórmula objeto, depois desenvolvida por Günter Dürig (“Objekt-Formel”), afirma Kant que “o homem e, em geral, todo ser racional, existe como fim em si mesmo, não apenas como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade; assim, ao contrário, em todas as suas ações, tanto nas que dirige a ele mesmo como nas que dirige a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como fim. (…) Age de tal maneira que use a humanidade, tanto na sua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e a todo momento, como fim, nunca apenas como meio”[8].

No caso concreto aqui sob consideração, isto é, das pessoas consideradas criminosas pela sociedade, também se aplica a lógica da dignidade da pessoa humana. Ao desrespeitar a dignidade da pessoa humana, ainda que particularmente em relação aos considerados criminosos, sejam os investigados, os processados e mesmo os já condenados, também subtraímos, em alguma medida, o valor geral de que todos sejam tratados com dignidade.

Portanto, se Kant está correto, alguns valores e alguns deveres (e direitos) têm que ser tomados a sério pelo Estado e pela sociedade. É pouco provável que se possa respeitar esses valores e direitos apenas em relação a alguns indivíduos. Quando admitimos, não importa a circunstância, ou o prejudicado, o seu desrespeito, enfraquecemos, em algum grau, a sua força normativa em relação a todos os demais indivíduos e circunstâncias. Devem ser respeitados, portanto, independentemente das circunstâncias, ou mesmo de quem seja o beneficiário, ou prejudicado. Segundo o próprio filósofo, no que inspirou o Tribunal Constitucional alemão, a dignidade da pessoa humana é um desses valores e direitos a que deve respeito irrestrito o Estado eticamente conformado.

De fato, para concluir com Kant, “no reino dos fins, tudo ou tem um preço, ou uma dignidade. O que tem um preço, em seu lugar, pode ser colocado, como equivalente, algo diferente; o que, ao contrário, se coloca acima de qualquer preço e, consequentemente, não admite equivalente, isto tem dignidade”[9].


[1] Ingo von Münch et Philip Kunig (orgs.). Grundgesetz-Kommentar. 5ª ed., München: Beck, 2000, p. 71-72.
[2] Hans Jarass et Bodo Pieroth. Grundgesetz für die Bundesrepublik Deutschland. 13ª ed., München: Beck, 2014, p. 46.
[3] Michael Sachs. Verfassungsrecht II – Grundrechte. 2ª ed., Berlin: Springer, 2003, 170.
[4] Kant, Immanuel. “Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade”, in Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. Tradução de Leopoldo Holzbach, SP: Martin Claret, 2002, p. 123.
[5] Kant, Immanuel. “Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade”, 2002, p. 124.
[6] Kant, Immanuel. “Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade”, 2002, p. 127.
[7] Kant, Immanuel. “Sobre um Suposto Direito de Mentir por Amor à Humanidade”, 2002, p. 127-8.
[8] Kant, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Hamburg: Meiner, 1999, p. 53-55.
[9] Kant, Immanuel. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten. Hamburg: Meiner, 1999, p. 61.

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