Opinião

Novos critérios de nomeação de dirigentes de estatais: muito além da questão técnica

Autores

  • Carolina Louzada Petrarca

    é advogada especialista em Processo Civil diretora da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC) professora de Processo Civil e conselheira federal pela OAB-DF (triênio 2015-2018).

  • Gabriela Rollemberg

    é advogada sócia fundadora do Gabriela Rollemberg Advocacia graduada em Direito pelo UniCEUB e em Ciência Política pela UnB. Membro fundadora e Secretária-Geral da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político – ABRADEP. Membro fundadora da assoiação “Elas Pedem Vista”.

1 de julho de 2018, 6h19

O sociólogo alemão Max Weber[1] definiu patrimonialismo como a gestão do Estado incapaz de diferenciar as esferas pública e privada. Recorrendo ao notável conceito weberiano, Raymundo Faoro[2] sofisticou a tese para chegar à conclusão de que a administração do bem público no Brasil segue a lógica de uma imbricada teia que liga o estamento burocrático ao setor privado, tornando-os praticamente indistintos e bloqueando o empreendedorismo no país.

É nesse contexto sociocultural que o estabelecimento de critérios técnicos para a escolha de diretores e gestores de estatais provoca, não raro, a ferrenha resistência de alguns setores políticos, acostumados que estão a aparelharem essas empresas a seu bel-prazer. Todavia, o estabelecimento de parâmetros claros para a escolha de diretores de empresas públicas, por meio da Lei 13.303/2016, representa um direito empresarial novo e moderno, voltado à meritocracia e à nova ordem econômica.

O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil tem lutado vigorosamente contra a nomeação política de cargos para os quais são exigidos notórios conhecimentos técnicos. Além da hipótese de nomeação dos diretores e dos membros do conselho de administração de estatais, temos defendido essa tese para os casos de indicação de ministros das cortes de contas.

A existência de critérios vagos, abertos ao preenchimento discricionário pelo administrador público, não deve jamais servir de subterfúgio para escudar o ente responsável de um cotejo adequado entre as competências do nomeado e as atividades efetivamente exercidas no cargo ou na função, tampouco para permitir nomeações de cunho estritamente político.

Nesse sentido, cito parecer de Gilmar Ferreira Mendes e Luiz Gustavo Gonet Branco, publicado na RDA 197 (1994), no qual tratam de nomeação de odontólogo e de detentor de diploma de curso primário para cargos de ministro do Tribunal de Contas do Estado de Tocantins. No caso, muito embora a redação do artigo 235, III, da Constituição Federal faça menção apenas a “notório saber”, isso não afasta o dispositivo da sujeição ao princípio da unidade da constituição, o qual demanda uma interpretação que não amesquinhe o comando constitucional, primando pela efetividade dos órgãos e entidades que encontram guarida na Carta Cidadã:

Evidentemente, notório saber há de ser aquele relevante para o desempenho das funções técnicas dos tribunais de contas. Isto exclui o notório saber em odontologia como credencial para membro da corte, uma vez que entre as competências que a própria Lei Fundamental comete ao tribunal, nenhuma requer proficiência em tal área de conhecimento. Exclui, outrossim, o mero senso comum, por mais notável e universalmente reconhecido que seja na coletividade. Possuir o nomeado bom senso há de ser requisito genérico para o cargo, não se dispensando, além disso, o saber de perito. (…)

Vale repetir, para a compreensão do dispositivo em causa da Carta de 1988, o exato magistério de Castro Nunes: “O essencial é que seja a proficiência técnica não somente notória, mas adequada à função”.

Não é concebível que outro tenha sido o desiderato do constituinte ao exigir dos integrantes dos tribunais de contas dos novos Estados notório saber. Este saber, à evidência, só pode ser o útil para a consecução dos fins técnicos que a Constituição comete aos tribunais de contas. Equivale a dizer que se exige dos nomeados, também aqui, a mesma excepcional perícia e prolongada prática em direito, administração pública, contabilidade, finanças ou economia a que alude o art. 73, §1º, III, da Lei Maior, pois estas são as áreas de saber afetas às competências que o constituinte entregou aos tribunais de contas (art. 71 c/c art. art. 75)[3].

As novidades trazidas pela Lei das Estatais, ao transformar critérios razoavelmente inexatos em condições precisas e específicas, é um salutar desenvolvimento na legislação pátria. Nela são estabelecidos requisitos mínimos para a nomeação de diretores e membros do conselho de administração com estrita ligação com a atividade a ser efetivamente desempenhada na condução das empresas.

Nesse sentido, louvável o artigo 17 do diploma, que fixa elementos objetivos para a comprovação dos requisitos de “notório conhecimento” e “reputação ilibada”. Conquanto mantenha o requisito mais amplo e geral da “reputação ilibada”, o qual já constava no artigo 147, parágrafo 3º, da Lei das S/A, outros filtros foram criados na Lei das Estatais para que a escolha do administrador da empresa seja criteriosa. Referenciais claros e precisos para a experiência mínima e para a inexistência de conflito de interesses são de grande utilidade tanto para os responsáveis pela nomeação quanto para o cidadão interessado em realizar o controle da administração pública. Por isso, o mencionado artigo se aplica como critério para a seleção dos integrantes do conselho de administração e da diretoria.

O novo parâmetro indicado pelo legislador é de evidente constitucionalidade, atendendo aos princípios da isonomia e da proporcionalidade. De um lado, os incisos I, II e III do dispositivo preveem a qualificação mínima necessária para que um indivíduo sem vínculo empregatício com a empresa seja nomeado administrador. De outro, o parágrafo 5º do mesmo artigo estabelece os requisitos para os titulares de cargos na mesma empresa. Nesse espectro, a principal diferença é a forma de comprovação da experiência.

Destarte, nas alíneas do inciso I do artigo 17 estão enumerados os critérios a habilitar indivíduos à diretoria ou ao conselho de administração.

O requisito de dez anos de experiência setorial, previsto na alínea ‘a’ do inciso I, corresponde a um período razoável para que o profissional conheça as especificidades do setor em que a empresa opera e para que seja reconhecido no mercado de trabalho. Aliás, a escolha do legislador pátrio é até mesmo menos exigente do que aquela adotada por relevantes organizações internacionais, a exemplo do período de 15 anos adotado no Sistema das Nações Unidas como patamar mínimo para funções de direção (D-1 e D-2).

O período mínimo de quatro anos, previsto nas alíneas ‘b’ e ‘c’ para o desempenho de função de direção ou de chefia no setor público ou privado, para a experiência em docência ou em pesquisa ou para o exercício de profissão liberal vinculada à área de atuação da empresa pública, tampouco parece ser desproporcional ou desarrazoado. À exceção do caso de o nomeado ter ocupado “cargo em comissão ou função de confiança equivalente a DAS-4 ou superior”, o que supõe atuação prévia no setor público, em todas as demais hipóteses deve-se comprovar que a atividade exercida é relevante para o conhecimento do setor econômico em que a empresa opera, sob pena de a experiência não ser válida. Quando muito, o legislador — especialmente no item 2 da alínea ‘b’ — pecou nas hipóteses não pelo excesso, mas pela modéstia.

Por fim, é importante mencionar o parágrafo 5º como mecanismo salutar para estimular a nomeação dos empregados da própria estatal para as posições de cúpula na administração empresarial, de modo a reforçar a identidade corporativa e a valorizar a carreira.

Os critérios de ascensão previstos no parágrafo 5º prestigiam, acertadamente, a meritocracia, porquanto determinam a observância de duas características curriculares: o ingresso na empresa estatal por meio de concurso público, reproduzindo o princípio geral insculpido no artigo 37, II, da Constituição Federal; a pertinência entre a formação acadêmica do empregado e as atividades do cargo ao qual fora indicado.

Outra notável evolução é a facilitação do exame judicial dos requisitos legais. Eis que os critérios de notório saber e de reputação ilibada — usualmente tratados como requisitos subjetivos, de reexame apenas excepcional, com base em razões objetivas (MS 25.624, rel. min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, DJ 19/12/2006) — agora contam com referenciais claros, facilmente aferíveis, sem que haja com isso judicialização indevida sobre o processo de indicação.

Infelizmente, estudo recente do escritório Cescon Barrieu, encomendado pelo jornal Valor Econômico e publicado neste mês, apontou que os critérios legais têm sido sistematicamente desatendidos, especialmente no âmbito estadual, em que apenas 6,9% das estatais têm seguido os novos requisitos de nomeação[4]. Faltando menos de um mês para o término do período de adaptação previsto no artigo 91 da Lei das Estatais, as margens para a adequação dessas condutas são cada vez mais tênues.

O novo parâmetro de escolha de diretores de estatais impacta diretamente nos resultados da empresa e da economia de todo o país. Diante da delicada relação entre companhia e administradores, é a incontestável experiência técnica destes que permite aos acionistas, investidores e stakeholders avaliarem se os gestores estão alinhados com os interesses de longo prazo da companhia, informação imprescindível para o mercado.


[1] WEBER, Max. A Ética Protestante e o “Espírito” do Capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[2] FAORO, Raymundo. Os donos do poder. Formação do Patronato Político Brasileiro. Rio de Janeiro: Globo, 1958.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Luiz Gustavo Gonet. Parecer – Tribunal de Contas – Provimento do cargo – Notório Saber. Revista de Direito Administrativo, vol. 197 (1994), pp. 340-341.
[4] Disponível em: <http://www.valor.com.br/empresas/5584443/estados-ignoram-lei-das-estatais>. Último acesso em 18 de junho de 2018.

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    é advogada, especialista em Processo Civil, diretora da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC), professora de Processo Civil e conselheira federal pela OAB-DF (triênio 2015/2018)

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    é advogada, especialista em Direito Eleitoral, membro fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e vice-presidente da Comissão Especial de Direito Eleitoral do Conselho Federal da OAB (triênio 2015-2018).

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