Opinião

O direito adquirido dos partidos à propaganda partidária

Autor

  • Francisco Glauber Pessoa Alves

    é juiz federal do Rio Grande do Norte. Doutor e mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC) e do TRE-RN (biênio 2017-2019).

31 de janeiro de 2018, 6h07

Questão de relevo no Direito Eleitoral, embora pouco aprofundada, respeita a existência de direito adquirido, pelos partidos, à propaganda partidária. Tem sido invocada a tese, pelo Ministério Público Eleitoral, da perda de interesse por alteração superveniente na legislação (Lei 13.487, de 6/10/2017, a incidir sobre a Lei 9.096/95). Em apertadas linhas, defende-se: a) a Lei 13.487 revogou, a partir do dia 1º de janeiro de 2018, os artigos 45, 46, 47, 48 e 49, bem como o parágrafo único do artigo 52, todos da Lei dos Partidos Políticos, os quais tratam da propaganda partidária (gratuita) na rádio e na televisão; b) a partir do primeiro dia do ano de 2018, não mais haverá propaganda partidária, seja na rádio ou na televisão, uma vez que o legislador optou por abolir essa espécie de propaganda política, de forma que os valores da compensação fiscal que os veículos de comunicação faziam jus sejam transferidos a um Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), previsto no artigo 16-C da Lei 9.504/97, incluído pela Lei 13.487.

Para esclarecimento preliminar, cumpre traçar o panorama normativo. Anteriormente à Emenda Constitucional 97, de 4/10/2017, vigente na data de sua publicação (5/10/2017), era a seguinte a redação do artigo 17 da Constituição, no que aqui importa:

§ 3º Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.

A nova redação, está assim vazada:

§ 3º Somente terão direito a recursos do fundo partidário e acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei, os partidos políticos que alternativamente:

I – obtiverem, nas eleições para a Câmara dos Deputados, no mínimo, 3% (três por cento) dos votos válidos, distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação, com um mínimo de 2% (dois por cento) dos votos válidos em cada uma delas; ou

II – tiverem elegido pelo menos quinze Deputados Federais distribuídos em pelo menos um terço das unidades da Federação.

Portanto, o direito à propaganda, antes ou após a EC 97/2017, era e permaneceu de natureza constitucional. Como tal, resta albergado pelo princípio da irretroatividade de norma jurídica, representado nas cláusulas constitucionais de garantia do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal).

A propaganda partidária consiste, por sua vez, “(…) na divulgação de ideia, projetos e programa do partido” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 13. ed., São Paulo: Atlas, 2017. p. 483). É o chamado direito de antena, que assegura(va) aos partidos políticos, na forma da lei (Lei 9.096/95), acesso gratuito à rádio e à televisão para veiculação de propaganda partidária, custeada por intermédio de compensação fiscal às emissoras pela cessão do horário.

Eis que, como decorrência do processo de atualização legislativa (ora chamada de reforma eleitoral, ora como tal não reconhecida), adveio a revogação pura e simples dos artigos 45 a 49 da Lei 9.096/95, que garantiam a propaganda partidária, pelo artigo 5º da Lei 13.487, de 6/10/2017. Diziam, especialmente, os seguintes preceitos revogados:

Art. 13. Tem direito a funcionamento parlamentar, em todas as Casas Legislativas para as quais tenha elegido representante, o partido que, em cada eleição para a Câmara dos Deputados obtenha o apoio de, no mínimo, cinco por cento dos votos apurados, não computados os brancos e os nulos, distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de dois por cento do total de cada um deles.

Art. 48. O partido registrado no Tribunal Superior Eleitoral que não atenda ao disposto no art. 13 tem assegurada a realização de um programa em cadeia nacional, em cada semestre, com a duração de dois minutos (artigo declarado inconstitucional pelas ADIs 1.351-3 e 1.354-8, por acórdãos publicados no DJ de 29/6/2007).

Art. 49. O partido que atenda ao disposto no art. 13 tem assegurado (trecho declarado inconstitucional pelas ADIs 1.351-3 e 1.354-8, por acórdãos publicados no DJ de 29/6/2007)

I – a realização de um programa, em cadeia nacional e de um programa, em cadeia estadual em cada semestre, com a duração de vinte minutos cada;

II – a utilização do tempo total de quarenta minutos, por semestre, para inserções de trinta segundos ou um minuto, nas redes nacionais, e de igual tempo nas emissoras estaduais.

No âmbito do TSE, a Resolução 20.034/97 regulamenta o acesso à propaganda partidária, mediante os pedidos de veiculação de propaganda partidária, sendo digno de registro o seu artigo 5º, destacando que os partidos deverão encaminhá-los até o dia 1º de dezembro do ano anterior à transmissão.

Em julgamentos proferidos nas ADIs 1.351-3 e 1.354-8 (acórdãos publicados no DJ de 29/6/2007), o STF já declarara a inconstitucionalidade total do artigo 13, do artigo 48 e do trecho “que atenda o disposto no art. 13” do artigo 49. Assim, a redação originária já sofrera temperamentos pelo STF de forma a afastar preceitos que restringiam o acesso da propaganda partidária a determinados partidos. A jurisprudência do STF, diga-se, sem ser de passagem, está firmemente assentada na premissa de que, sendo a propaganda de cunho constitucional, suas alterações não podem se dar de forma a confrontarem a própria Constituição Federal. Assim o dizem vários julgados em sede de controle abstrato de constitucionalidade, há pelo menos dez anos. O STF jamais aceitou a extinção pura e simples do direito partidária à propaganda, embora tenha aceitado determinadas restrições (STF, Pleno, ADI 5.491/DF, rel. min. Dias Toffoli, DJe-202 6/9/2017; STF, Pleno, ADI 4.617/DF, rel. min. Luiz Fux, DJe-029 12/2/2014; STF, Pleno, ADI 4.430/DF, rel. min. Dias Toffoli, DJe-184 19/9/2013; STF, Pleno, ADI 1.351/DF, rel. min. Marco Aurélio, DJ 29/6/2007, p. 031).

Daí porque aparenta ofender ao direito adquirido a negativa da propaganda partidária aos partidos que, anteriormente à revogação dos artigos 45 a 48 da Lei 9.096/95 (que a garantiam) pelo artigo 5º da Lei 13.487, de 6/10/2017, faziam jus a ela.

Não se descura de decisão recente do TSE em sentido diverso[1]. Porém, há de se observar que a questão constitucional, especificamente quanto ao direito adquirido, não restou esgotada, pelo que o tema merece ser avaliado sob esse prisma.

Mais profunda é, ainda, a existência de decisões já proferidas pelos juízos eleitorais, anteriores à Lei 13.487, de 6/10/2017, reconhecendo o direito à propaganda em benefício concreto desse ou daquele partido. Em tais casos, houve a incorporação do direito à propaganda partidária ao patrimônio jurídico, mediante o que pode ser entendido como coisa julgada.

Não se descura acerca da predominância da tese da natureza administrativa do processo eleitoral que viabiliza as inserções partidárias (= pedido de veiculação de propaganda partidária), albergada pelo mesmo TSE[2]. E com isso, ressaltamos, não se está a negar que a coisa julgada pressupõe discussão de mérito, numa lide formada. Mas, em tendo havido, pela Justiça Eleitoral, concretamente, o reconhecimento da incorporação ao patrimônio jurídico dos partidos, se não houver violação à coisa julgada (que pressupõe lide, mérito, como cediço), haverá, no mínimo, violação à boa-fé objetiva, já que se trata de um direito anteriormente reconhecido. Na medida em que se entende necessário um processo, não jurisdicional que seja, para o acesso às inserções, a atuação jurisdicional (mesmo que não haja propriamente lide, e, portanto, mérito) é constitutiva (quando não declaratória) de um direito.

Muito mais importante: o direito adquirido não pressupõe seu reconhecimento na via jurisdicional (daí a desimportância da natureza jurisdicional ou não dessa via). Se albergado pela coisa julgada, estará duplamente protegido (direito adquirido + coisa julgada). Se não, ainda assim estará na melhor das proteções (direito adquirido), porque calçado diretamente no texto constitucional.

É dizer, direito adquirido existe independentemente de feito de natureza administrativa ou jurisdicional. Ele existe porque assim o diz a Constituição Federal e ninguém nega isso. O seu afastamento é que pressuporá, sim, uma decisão judicial. Para todos os efeitos, a decisão proferida pelo Judiciário, ainda que em processo de natureza administrativa, é válida tanto para constituir como para declarar direitos. Basta atentar para os feitos de jurisdição voluntária, regulados pelo CPC: a) I – emancipação; II – sub-rogação; III – alienação, arrendamento ou oneração de bens de crianças ou adolescentes, de órfãos e de interditos; IV – alienação, locação e administração da coisa comum; V – alienação de quinhão em coisa comum; VI – extinção de usufruto, quando não decorrer da morte do usufrutuário, do termo da sua duração ou da consolidação, e de fideicomisso, quando decorrer de renúncia ou quando ocorrer antes do evento que caracterizar a condição resolutória; VII – expedição de alvará judicial; VIII – homologação de autocomposição extrajudicial, de qualquer natureza ou valor (artigo 725); b) notificação e interpelação (artigos 726 a 729); c) alienação judicial (artigo 730); d) divórcio e separação consensuais, extinção consensual de união estável e alteração do regime de bens do matrimônio (artigos 71 a 734); e) testamentos e codicilos (artigos 735 a 737); f) herança jacente (artigos 738 a 743); g) bens de ausentes (artigos 744 a 745); h) coisas vagas (artigo 746); i) interdição (artigos 747 a 758); j) tutela e curatela (artigos 759 a 763); k) organização e fiscalização das fundações (artigos 764 e 765); l) ratificação dos protestos marítimos e dos processos testemunháveis formados a bordo (artigos 766 a 770). Alguns desses procedimentos podem ser revistos, alteradas as circunstâncias (como a interdição), ao passo que outros são definitivos (como o cumprimento dos testamentos e codicilos), uma vez ultimados determinados prazos de invalidação ou rescisão.

Exegese que poderia se resgatar quanto ao impedimento de retroatividade da norma jurídica seria a da inexistência de direito ao regime jurídico. É o que, de certa forma, decidiu o TSE quando da vigência da Lei 13.165/2015[3].

Não há como negar ser o exercício de um direito regularmente adquirido algo consequencial e desdobrado: se a propaganda somente seria exercitável no período que resta de 2016 ou mesmo em 2017 (e em 2018, desde que referente a saldo de 2017), tendo como pressuposto a redação anterior da Lei 9.096/95, não se pode aniquilar o direito adquirido (e coisa julgada), pelo fato de o titular não ter podido exercer algo que demandaria o decurso do tempo. Seria uma interpretação diabólica: excluir direito quanto a quem não podia exercê-lo antes do momento no qual ele deveria fazê-lo.

Outra coisa, distinta a mais não poder, seria a manutenção indefinida do regime dos revogados artigos 45 a 48 da Lei 9.096/95 (portanto, prolongamento ilimitado do regime jurídico então existente), que garantiam a propaganda partidária, pelo artigo 5º da Lei 13.487, de 6/10/2017.

Não se trata disso. Aqui está se dizendo, somente, que revogados tais preceitos, aqueles que já preenchiam os pressupostos do exercício do direito, tem-no adquirido e, mais fundamente, resguardados pela coisa julgada (e pela boa-fé objetiva, se se repele de todo a coisa julgada pela natureza administrativa da decisão de veiculação de propaganda partidária), onde essas duas garantias constitucionais impedem a nulificação para o pleito que segue.

Por fim, outra nota concreta que afasta a linha do regime jurídico é que ora não se trata, diferente de outras ocasiões, de redução do tempo de propaganda, mas de aniquilação pura e simples.

A importância da propaganda partidária é pujante num contexto de pretensa reforma política, de limitação da campanha eleitoral e, também, de melhor publicização de plataformas e ideais partidários. Se se entende por restringir ou anular o direito de arena, que se faça dentro de parâmetros constitucionais, porque fora disso corre-se o risco de afrontar a própria democracia.

Dessa forma, o regime vigente originariamente pelos artigos 45 a 49 da Lei 9.096/95 é válido, para o ano de 2017, enquanto não esgotados os acessos tal como regulados pelo artigo 49 (a realização de um programa em cadeia nacional e de um programa em cadeia estadual, em cada semestre, com a duração de 20 minutos cada um; a utilização do tempo total de 40 minutos, por semestre, para inserções de 30 segundos ou um minuto, nas redes nacionais, e de igual tempo nas emissoras estaduais), dando-se a perda total somente a partir do ano de 2018.

Não há dúvida, portanto, de que há a impossibilidade, sob pena de direta inconstitucionalidade por ofensa a cláusula constitucional (direito adquirido e coisa julgada, conforme artigo 5º, XXXVI da Constituição Federal, além de boa-fé objetiva), de retroação da Lei 13.487, de 6/10/2017, ao revogar os artigos 45 a 49 da Lei 9.096/95 (artigo 5º), que garantia a propaganda partidária, de modo que as inserções devidas até aquela data (para este ano, inclusive, se o caso) devem ser asseguradas (artigo 49 da Lei).


[1] “PROPAGANDA PARTIDÁRIA. PEDIDO DE VEICULAÇÃO NO ANO DE 2018. SUPERVENIÊNCIA DA LEI 13.487/2017. PERDA DO OBJETO.
1. A decisão em procedimento de propaganda partidária, cujo escopo é a mera organização da grade de veiculação de acordo com a ordem de apresentação dos pedidos, não faz coisa julgada e pode ser revista quando constatados fatos supervenientes que afetem ou impeçam a sua execução.
2. Com a edição da Lei 13.487/2017, foi extinta a propaganda partidária a partir de 1º.1.2018, ficando os respectivos recursos destinados à composição do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC).
3. Além do descompasso com a lei e a inviabilidade prática do pedido do partido, a eventual veiculação de propaganda partidária na espécie poderia ensejar indesejável quebra da isonomia entre as agremiações cujos pedidos já foram deferidos e aquelas cujos pedidos ainda estejam em processamento.
Pedido julgado prejudicado” (PP 0600014-33, rel. min. Admar Gonzaga, sessão de julgamento de 28/11/2017).
[2] PP, Agravo Regimental em Propaganda Partidária 1.334- DF, Acórdão de 21/3/2017, rel. min. Henrique Neves da Silva, DJE 3/4/2017, p. 79/80; PP, Agravo Regimental em Propaganda Partidária 7137-DF, Acórdão de 14/2/2017, rel. min. Herman Benjamin, DJE 16/5/2017.
[3] “Ementa: PROPAGANDA PARTIDÁRIA. EXERCÍCIO 2016. PARTIDO DA MOBILIZAÇÃO NACIONAL (PMN). AUSÊNCIA DE EXPECTATIVA LEGÍTIMA. INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A REGIME JURÍDICO. NOVO REGIME JURÍDICO. LEI Nº 13.165/2015. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE REGIME HÍBRIDO. DEFERIMENTO DO PEDIDO NOS TERMOS DA NOVEL LEGISLAÇÃO” (TSE, Propaganda Partidária 13059-DF, Acórdão de 15/12/2015, rel. min. Luiz Fux, DJE 14/3/2016, p. 64).

Autores

  • é juiz federal presidente da Turma Recursal da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Doutor e Mestre em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Membro do Instituto Potiguar de Processo Civil (IPPC).

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