Opinião

Justiça gratuita: a constitucionalidade do Código de Processo Civil

Autor

  • Octavio Orzari

    é sócio do escritório Machado de Almeida Castro & Orzari mestre e doutorando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca.

28 de janeiro de 2018, 5h46

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo instaurou incidente de controle difuso de constitucionalidade para decidir sobre a compatibilidade de dispositivos do Código de Processo Civil que regulam o benefício de Justiça gratuita frente ao inciso LXXIV do artigo5º da Constituição da República, que estabelece que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Em sede de apelação, propôs o desembargador relator, com acolhimento unânime, remessa ao Órgão Especial para análise de questão incidental de inconstitucionalidade, nos termos do artigo 949, II, do CPC1.

Ponderou o relator que os dispositivos do CPC, ao preverem presunção relativa em favor da pessoa natural que alega insuficiência de recursos para pagar custas, despesas processuais e honorários advocatícios, “foram além” do previsto no artigo 5º, LXXIV, da Constituição da República, tendo em vista que a “Constituição condicionou o benefício da justiça gratuita à comprovação da insuficiência de recursos pelos interessados”.

Segundo o relator, “em vez de apenas indicar meios de comprovação, a lei inverteu o ônus previsto na Constituição, ultrapassando os limites ali estabelecidos”. Aduziu ainda que “o abuso do instituto onera o estado, que é quem arca com os honorários periciais” (…) “e esvazia uma das funções do preparo recursal, que é a de desestimular recursos manifestamente infundados e protelatórios”. Colacionou julgados do TJ-SP em que foi negado o benefício, diante da verificação da desnecessidade da parte pleiteante.

A importante reflexão no caso em exame se pauta, precipuamente, a partir do processo de interpretação gramatical ou filológico do texto promulgado pelo constituinte originário, com destaque para a expressão “aos que comprovarem”.

Esse ponto de partida remete à clássica doutrina de Carlos Maximiliano, pela qual o “processo gramatical será o primeiro na ordem metódica, em a gradação tradicional; porém não em valor, importância: interpretação, por excelência, é a que se baseia no elemento ideológico”2.

Ao sustentar que o processo filológico é “incomparavelmente inferior ao sistemático e ao que invoca os fatores sociais”, o referido autor contrasta o brocardo verbis legis tenaciter inhaerendum (“apeguemo-nos firmemente às palavras da lei”) ao aforismo de Celso encontrado no Digesto scire leges non est verba earum tenere, sed vim ac potestatem (“saber as leis é conhecer-lhes, não as palavras, mas a força e o poder”)3.

Ao se destacar a primeira parte do dispositivo constitucional (“o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita”), e sem pretender seu absolutismo, emerge a lição de Konrad Hesse, segundo a qual: “Embora a Constituição não possa, por si só, realizar nada, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa se essas tarefas forem efetivamente realizadas, se existir a disposição de orientar a própria conduta segundo a ordem nela estabelecida, se, a despeito de todos os questionamentos e reservas provenientes dos juízos de conveniência, se puder identificar a vontade de concretizar essa ordem”4.

Nesse contexto, o que se depreende das normas do Código de Processo Civil que regulam a concessão da Justiça gratuita é que estão amparadas nos fatores sociais e ideológicos da Constituição de 1988 e, assim, visam conformar e concretizar o direito fundamental de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV e LXXIV, da CR), os fundamentos da República de cidadania e dignidade da pessoa humana (artigo 1º, II e III, da CR) e os objetivos fundamentais da República de construção de uma “sociedade livre, justa e solidária” e de “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais” (artigo 3º, I e III, da CR).

A força normativa da Constituição, portanto, emana desse plexo de normas, que orientou o legislador a implementar no texto do CPC a “promessa instrumental constitucional” de gratuidade de Justiça para “dar efetividade à promessa-síntese, que é a de acesso à justiça”5, afinal “não obtém justiça substancial quem não consegue sequer o exame de suas pretensões pelo Poder Judiciário”6.

A doutrina discute a norma insculpida no artigo 5º, LXXIV, da CR, à luz da teoria proposta por José Afonso da Silva quanto à eficácia e aplicabilidade das normas constitucionais.

Nesse quadro, José Afonso da Silva distingue as seguintes categorias de normas constitucionais quanto à eficácia e aplicabilidade, classificação que foi amplamente debatida pela doutrina constitucionalista e reafirmada pelo autor nas décadas posteriores ao lançamento de sua obra: (i) normas de eficácia plena e aplicabilidade direta, imediata e integral; (ii) normas de eficácia contida e aplicabilidade direita e imediata, mas possivelmente não integral; e (iii) normas de eficácia limitada, que se subdividem em: a) declaratórias de princípios institutivos ou organizativos; e b) declaratórias de princípios programáticos7.

O artigo 5º, LXXIV, da CR, desponta como norma de eficácia contida, porquanto o direito à assistência jurídica gratuita, que abrange a assistência judiciária, pode ser circunscrito e restringido consoante as exigências legais de comprovação de carência econômica para o exercício do direito.

Deve-se notar que as normas de eficácia contida têm aplicabilidade direta e imediata e, enquanto não for editada a normação restritiva, sua eficácia será plena. Sua aplicabilidade não fica condicionada à normação infraconstitucional, mas “fica dependente dos limites (daí: eficácia contida) que ulteriormente se lhe estabeleçam mediante lei”8. Assim, a integração infraconstitucional, no caso dessas normas, impede a expansão da integralidade do comando jurídico da norma constitucional, ou seja, não é em todo e em qualquer caso que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita.

A previsão de presunção iuris tantum em favor da pessoa natural que pleiteia a gratuidade de Justiça não torna o exercício de tal direito ilimitado, pois, como decorre da sistemática de ordenamento jurídico, aquele que atua em juízo tem seus pleitos condicionados à fiscalização do Poder Judiciário e da outra parte. Desse modo, embora tenha sido prevista presunção relativa para o momento do pedido do benefício de gratuidade (o que, se assim não fosse, inibiria o acesso à Justiça ou excluiria de imediato parte que se tornou carente no curso do processo), não há prestação jurisdicional incondicionada e livre de análise quanto à veracidade e pertinência.

Como se vê, o legislador infraconstitucional poderia (e ainda pode) restringir o direito propugnado (verbi gratia, ampliando e detalhando as condições para exercício da gratuidade de Justiça), mas não o fez diante da valoração e ponderação necessárias por força das demais normas constitucionais que irradiam efeitos sobre a temática do acesso à Justiça. O texto plasmado nos dispositivos em questão resulta, portanto, de uma válida escolha político-jurídica do legislador.

No plano infraconstitucional, em caso de abuso no exercício do direito à Justiça gratuita, o próprio CPC estabelece medidas para coibir e sancionar a má-fé processual (artigos 79 e seguintes do CPC), podendo o juiz aplicar multa, estipular indenização e responsabilizar pelos honorários advocatícios e de peritos (artigo 81 do CPC). Afinal, o abuso de direito é ato ilícito (artigo 187 do Código Civil).

Ainda, independentemente de a parte contrária poder impugnar o requerimento de concessão de Justiça gratuita, o juiz é o fiscal e supervisor do processo (artigos 139 e 142, do CPC) e, diante das circunstâncias do caso concreto, poderá (deverá) verificar a idoneidade do pleito de gratuidade e indeferi-lo, após oportunidade de manifestação do requerente. No caso de revogação do benefício, cabe multa calculada em até o décuplo do valor devido (artigo 100, parágrafo único, do CPC).

A comprovação da insuficiência de recursos prevista na Constituição ocorre no curso do processo e as normas do CPC não afastam ou obstam tal exigência e, assim, não deturpam a vontade da Constituição. A sistemática das normas infraconstitucionais, portanto, elide a alegada inconstitucionalidade de cunho consequencialista para o caso de abuso do direito à Justiça gratuita.

Acrescente-se, por fim, que os princípios da isonomia e da proporcionalidade, agasalhados constitucionalmente, incidem sobre o pleito de Justiça gratuita e resguardam o cidadão que pede perante o Estado a prestação de um serviço público — a prestação jurisdicional — que corresponde a um direito fundamental inafastável.

Em síntese, os parágrafos 2º e 3º do artigo 99 do CPC enunciam normas que estão em consonância com os princípios e regras constitucionais, devendo a determinação constitucional de prestar assistência jurídica integral e gratuita ser lida em conjunto com o direito fundamental de acesso à Justiça (considerado por Garth e Cappelletti “o mais básico dos direitos humanos de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos”9), ratificando-se o controle preventivo de constitucionalidade realizado pelo Poder Legislativo e a opção jurídico-política do legislador.


1 Arguição de Inconstitucionalidade 0016091-78.2017.8.26.0000, suscitada pela 15ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, que tem como objeto os parágrafos 2º e 3º do artigo 99, da Lei 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil, especialmente as expressões abaixo grifadas:
Art. 99. O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
§ 1º Se superveniente à primeira manifestação da parte na instância, o pedido poderá ser formulado por petição simples, nos autos do próprio processo, e não suspenderá seu curso.
§ 2º O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos.
§ 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural.
2 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e interpretação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, 19ª ed., p. 98.
3 MAXIMILIANO, Carlos. Op. cit., p. 100.
4 HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 19.
5 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol I. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 113.
6 DINAMARCO, Cândido Rangel. Op. cit., p. 118.
7 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2004, 6ª ed., p. 86.
8 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 104.
9 GARTH, Bryant; e CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 12.


Referências
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, vol I. São Paulo: Malheiros, 2009.
HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e interpretação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, 19ª ed.
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2004, 6ª ed.

Autores

  • Brave

    é advogado, mestre em Direito pela USP e pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Salamanca, na Espanha, e em Ciência Política pela UnB.

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