Ideias do Milênio

"A juventude do mundo árabe olha para a Tunísia e sente inveja"

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28 de janeiro de 2018, 11h46

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Entrevista concedida pelo professor da Universidade Columbia Safwan Masri ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).

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A virada do ano no norte da África foi marcada por uma série de protestos na Tunísia. O governo acabou cedendo à pressão popular e reviu o duro plano de austeridade econômica. Essa foi a primeira grande onda de manifestações desde 2011, quando a mesma Tunísia foi palco de um movimento que se alastrou por outros países e ficou conhecido como a Primavera Árabe. Mudanças de políticas a partir da insatisfação da população não são comuns no mundo árabe, assim como a democracia. Mas a Tunísia não é um país árabe comum. Com uma presença menor da religião na vida cotidiana, essa ex-colônia francesa é um caso tão inusitado que levou o professor Safwan Masri, da Universidade Columbia, a estudar a exceção. Um trabalho que ele organizou no livro Tunísia: a anomalia árabe. Filho de pais palestinos, Masri cresceu na Jordânia e hoje mora entre Nova York e Amã. Em uma recente passagem pelo Brasil, o especialista em relações internacionais e vice-presidente dos centros globais da Universidade Columbia falou ao Milênio.

Marcelo Lins — Eu gostaria de começar nossa conversa falando sobre sete anos atrás. Sete anos se passaram desde a chamada Primavera Árabe. O que ficou daquele movimento que aconteceu há sete anos?
Safwan Masri —
Acho que o que começou no Oriente Médio e no norte da África no final de 2010 e início de 2011 e que resultou em catástrofes, como você sabe, na Síria, na Líbia e no Iêmen, terá um efeito na região durante um longo tempo ainda. Produziu uma crise humanitária, produziu extremismo com o surgimento do Estado Islâmico e também produziu movimentos reacionários de muitos que estão no poder na região. Mas também despertou a juventude de uma forma que, na minha opinião, o impacto do movimento perdurará ainda por muito tempo, tanto negativa como positivamente.

Marcelo Lins — No lado positivo desse movimento de sete anos atrás, o que podemos dizer que mudou na Tunísia, cujo cenário é diferente do de alguns outros países, se compararmos, por exemplo, o que aconteceu na Tunísia e no Egito?
Safwan Masri —
Sim, claro. Meu livro, intitulado Tunísia: uma anomalia árabe, pretende destacar a diferença entre a Tunísia e o resto do mundo árabe. A pergunta que ele tenta responder é: por que a Tunísia? O que aconteceu na Tunísia que resultou nessa história de sucesso singular após a Primavera Árabe? Como sabe, a Primavera Árabe começou na Tunísia, com a autoimolação de um vendedor de frutas. Esse ato de Mohamed Bouazizi teve um efeito cascata por todo o país e resultou na queda do ditador Zine El Abidine Ben Ali em janeiro de 2011. A revolução continuou e produziu uma Constituição, uma Assembleia Constituinte e depois um Parlamento, um presidente eleito democraticamente e está avançando na direção certa. Há várias pressões que a tornam muito frágil, mas está indo na direção certa na minha opinião. E achei válido analisar o que fez da Tunísia um caso especial. Se compararmos com o Egito, a revolução na Praça Tahrir começou logo depois das rebeliões que aconteceram na Tunísia. Embora parecesse que no Egito a revolução seria bem-sucedida e tenha resultado na queda de Hosni Mubarak e depois em eleições democráticas, a Irmandade Muçulmana assumiu o poder por meio de eleições democráticas, não havia alternativa à Irmandade Muçulmana, que era a única alternativa natural aos militares, então, em 2013, como você sabe, houve um golpe militar e o processo democrático chegou ao fim de forma sangrenta e hoje temos uma ditadura militar governando o Egito.

Marcelo Lins — Dois anos antes, se não me engano em 2008, houve um movimento do sindicato dos mineradores que foi muito importante na Tunísia. E imagino que, assim como eu, muitos de nossos assinantes devem achar intrigante o fato de um país árabe, muçulmano, ter um sindicato tão forte. Se procurarmos na história tunisiana, veremos que isso não é de hoje. Que tipos de diferenças podemos destacar na formação da sociedade tunisiana na política e a importância dos sindicatos nessa sociedade?
Safwan Masri —
O sindicato geral, Union Générale Tunisienne du Travail, ou UGTT, teve papel decisivo no cenário político tunisiano e um papel muito importante não só na Primavera Árabe, mas também na transição democrática. O fato que você mencionou, os distúrbios de Gafsa em 2008, foram… A revolução foi esmagada pelo regime de Ben Ali em 2008, e o sindicato, na época, viu aquilo como uma oportunidade que foi desperdiçada. Então acho que a Primavera Árabe na Tunísia começou de fato em 2008 e estava esperando o momento certo. E entre 2008 e 2010 outra coisa muito importante aconteceu: o WikiLeaks, que foi proibido pelo regime de Ben Ali, mas foi substituído pelo TunisLeaks, que expuseram a cleptocracia e a corrupção de Ben Ali. Todos sabiam que ele era corrupto, mas ninguém sabia a extensão da corrupção. Os fatos, e isso aconteceu numa época de grande desespero econômico, principalmente no interior do país. Então, em 2010, após a autoimolação de Bouazizi, o sindicato começou a organizar protestos, fornecendo todo o apoio logístico, Marcelo, fretando ônibus para levar os manifestantes aos protestos. Em 2013, quando houve dois assassinatos políticos e parecia que as coisas seguiriam o mesmo caminho do Egito, não em termos de ditadura militar, mas de perda de democracia, foi o sindicato que reuniu três organizações da sociedade civil para formar o chamado 'Quarteto', e eles lidaram com a situação e garantiram a continuação do processo de democratização e, em 2015, o Comitê do Prêmio Nobel da Paz deu a eles o prêmio por seu trabalho. Além de o movimento do sindicato dos trabalhadores ter sido incrivelmente eficaz, sua eficácia também criou espaço para outras organizações da sociedade civil. Ao contrário do Egito, quando a revolução começou na Tunísia, havia atores da sociedade civil arraigados na sociedade.

Marcelo Lins — A própria Tunísia também foi alvo de terrorismo, como o ataque ao Museu do Bardo, por exemplo, e a indústria do turismo sofreu com isso.
Safwan Masri —
O turismo começou a se recuperar, mas em 2015 sofremos três grandes ataques. Desde então, o país passou a controlar a fronteira com a Líbia, que permitia a infiltração do terrorismo e o treinamento de terroristas em acampamentos da Líbia. Há uma coordenação de segurança muito mais rigorosa com outros governos da região e da Europa. A situação está bem mais segura desde os ataques mortais de 2015. Mas você perguntou sobre a exportação de terrorismo. Uma das consequências da revolução foi que havia dezenas de milhares de fundamentalistas presos ou exilados. Depois da revolução, eles foram soltos e voltaram à Tunísia. Muitos deles acharam o ambiente na Tunísia incompatível com suas crenças. Encontraram uma sociedade muito mais moderna e laica e não se identificaram com a nação tunisiana, então muitos preferiram sair.

Entre 2011 e 2013, o Ennahda, o partido islâmico no poder na época, também não regulamentou o que acontecia nas mesquitas. Antes e desde então, os ímãs, por exemplo, são regulamentados pelo governo. Mas houve um intervalo de dois anos na qual as mesquitas não foram fiscalizadas. Além disso, a liberdade de viajar e a facilidade com a qual aspirantes a terroristas podiam deixar a Tunísia, voar para a Turquia e se unir a simpatizantes do Estado Islâmico. Além disso, a fronteira porosa com a Líbia, a situação econômica, tudo isso contribuiu para o fenômeno do terrorismo que se espalhou a partir da Tunísia.

Marcelo Lins — Para analisar o Oriente Médio de hoje, o professor Masri faz um mergulho na região e mostra como Síria, Emirados Árabes Unidos e Qatar são partes de um mesmo tabuleiro de xadrez, que inclui ainda israelenses e palestinos e muitos desafios. O especialista em relações internacionais está atento ao crescente protagonismo da Arábia Saudita, à posição do Irã, e a guerra por procuração que esses dois países travam no Iêmen. Safwan Masri acha que a própria noção de um mundo árabe está passada e cada vez mais vai fazer sentido falar de nações árabes caso a caso. Neste segmento, ele fala como fica a Tunísia nesse quebra-cabeças e qual o eventual papel a ser desempenhado pelo Brasil nesse contexto.

Como acha que o exemplo tunisiano de abertura para o mundo e as reformas que o país já implementou ainda podem ter um papel no mundo árabe atual? Devemos ter esperança de que esse tipo de coisa vai extrapolar fronteiras e contaminar a região ou é sonhar demais?
Safwan Masri — Acho que é sonhar demais, e acho algumas coisas. Uma delas é que a Tunísia nunca teve um papel no mundo árabe, e isso ajudou o país. Sempre foi pequeno, insignificante e afastado. E isso ajudou o país a manter sua identidade muito mediterrânea, talvez mais mediterrânea do que árabe ou muçulmana. Acho que isso o protegeu. As grandes potências do mundo, não só árabe, não estavam interessadas na Tunísia. Estranhamente, depois da revolução, elas se interessaram. O Qatar e os Emirados Árabes competem por influência na Tunísia, mas influência econômica com limitações, porque o sucesso da experiência tunisiana pode ser ameaçador para o resto do mundo árabe. Eu gostaria que o que você disse fosse verdade. É verdade em termos das populações. A juventude do mundo árabe olha para a Tunísia e sente inveja. Querem ver o sucesso da Tunísia, mas também querem os mesmos benefícios que não podem ter. Já os líderes do resto do mundo árabe não querem que a Tunísia seja um exemplo e a veem mais como uma ameaça. Na Arábia Saudita, por exemplo, temos a ascensão de Mohammad bin Salman. Ele fala em um islã moderado na Arábia Saudita. Isso não acontece da noite para o dia.

Marcelo Lins — É meio esquizofrênico.
Safwan Masri —
É verdade. Como lidar com décadas e décadas de extremismo presente nos livros escolares sauditas e sendo exportado através de financiamentos de instituições de caridade e mesquitas do mundo inteiro que difundiram a doutrina wahabi? Mohammad bin Salman está tentando nos convencer da ligação do crescimento do extremismo na Arábia Saudita com a Revolução Iraniana de 1979. E a triste verdade, Marcelo, é que esse argumento está sendo aceito por importantes líderes e legisladores do Ocidente. O crescimento do extremismo na Arábia Saudita é anterior à fundação do país. Tem raízes muito profundas. Portanto, não há relação com a Revolução Iraniana de 1979. Temo que o que esteja surgindo na Arábia Saudita seja totalmente irrealista, que negue a história e seu impacto global e que tente se eximir e culpar o Irã por qualquer extremismo saudita.

Marcelo Lins — Seus pais são palestinos da Jordânia, um país que abriga milhões de refugiados palestinos até hoje. Há alguma esperança de resolver esse problema num futuro próximo com o que sabemos que está acontecendo em Israel, entre os palestinos e nos EUA?
Safwan Masri —
No governo Trump e na Arábia Saudita também. Infelizmente, é uma história muito triste para os palestinos. E infelizmente eu não vejo nenhuma esperança num futuro próximo. Israel não tem incentivo para resolver o impasse. Realmente não tem nenhum incentivo para mudar o status quo. A liderança palestina decepcionou o povo palestino, isso há várias gerações. A liderança do povo palestino e a liderança árabe em geral não perdem oportunidade de perder uma oportunidade de uma solução pacífica para o povo palestino, que foi usado como peão em disputas de poder dentro da região e foi usado como peão para fortalecer ditaduras em vários países do mundo árabe. Temos ouvido alguns rumores de uma possível abertura promovida pelo Sr. Trump e por Mohammad bin Salman, da Arábia Saudita. Infelizmente, isso não tem nada a ver com os palestinos, mas com o Irã. Existe uma obsessão pelo Irã compartilhada por Trump e por Mohammad bin Salman, e a ideia… Mahmoud Abbas, o líder palestino, foi convocado à Arábia Saudita para se reunir com Mohammad bin Salman recentemente, e das análises que conhecemos, é razoável supor que o que a Arábia Saudita quer fazer é… E a renúncia do primeiro-ministro libanês Saad Hariri, que também foi convocado e forçado a renunciar. Exato. Tudo envolve o Hezbollah e o Irã. A Arábia Saudita está tentando impor uma solução, juntamente com Trump. Mohammad bin Salman tem se reunido com Jared Kushner, o genro de Trump, para forçar o Hezbollah a se limitar ao Líbano e tentar forçar uma aliança contra o Irã e, em troca, para que Israel concorde com algum tipo de solução que seria imposta aos palestinos, a Arábia Saudita reconheceria Israel e por aí vai.

Marcelo Lins — Há não muito tempo o Brasil achou que poderia ter um papel mais ativo na tentativa de solucionar alguns problemas do mundo árabe, pelo menos nas questões do Oriente Médio, como o programa nuclear do Irã, e outras questões. Mas sabemos que o Brasil enfrenta muitos problemas. Em relação ao futuro, acha que o Brasil pode ter um papel nas relações com o mundo árabe como um todo?
Safwan Masri —
O Brasil sempre teve uma relação próxima e muita história com o mundo árabe. Existem muitos brasileiros de destaque que são descendentes de migrantes do Levante, da Síria, do Líbano e da Palestina principalmente. Mas, como você disse, o país tem muitos problemas internos, e se envolver com a política do mundo árabe nunca fez bem a ninguém. Mas o que quero acrescentar é que eu acho que 'mundo árabe' é um termo incorreto. Acho que o Brasil, ao se concentrar nas relações econômicas, comerciais e até políticas, deve fazer isso com o foco em países específicos dentro do chamado 'mundo árabe'. Acho que essa fantasia de um mundo árabe muito coeso de uma forma meio artificial… Está chegando ao fim essa mitologia, digamos assim, de um mundo árabe. O futuro será em torno dos Estados da região e não da região como um todo. Mas acho que o futuro guarda muitas incertezas. Nós começamos e eu gostaria de terminar dizendo que, apesar de eu estar pessimista em relação ao futuro próximo daquela região do mundo, estou otimista e esperançoso com a energia da juventude que surgiu em 2010 e 2011 e espero que, com o tempo, coloquemos em prática as lições da experiência tunisiana, com o desenvolvimento de uma sociedade civil ativa e a produção de alternativas políticas viáveis a ditaduras militares ou ao islamismo político. Precisamos de uma terceira via, mas também precisamos de espaço para criá-la.

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