Opinião

MP não pode delegar conclusão de suas investigações à polícia judiciária

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27 de janeiro de 2018, 5h29

O Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos, entendeu que o Ministério Público é órgão com competência para promover investigações de natureza penal, desde que respeitados os direitos e as garantias que assistem a qualquer indiciado ou a qualquer pessoa sob investigação do Estado, dentro de um prazo razoável (RE 593.727, repercussão geral, relator: ministro Cézar Peluso, relator para acórdão: ministro Gilmar Mendes, julgamento em 14/5/2015, publicação em 8/9/2015). Sendo assim, os chamados PICs (procedimentos de investigação criminal), previstos em resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público, como a de número 13 de 2006, foram (re)vestidos de validade e legitimidade jurídica.

Uma crítica deve ser oportunamente feita sobre o evidente ativismo do Judiciário, no caso do STF, frente a uma matéria que deveria se dar em âmbito legislativo primeiramente, respeitando a separação dos Poderes. Observe que a questão de fundo está para além da competência do Ministério Público poder ou não investigar, mas na total ausência de previsão legal para tanto nas normas infraconstitucionais. Tanto assim que o Supremo legisla ao dizer quais seriam as regras de investigação, justamente por falta de lei própria. Para além, reconhece as avessas que sejam criadas normas processuais penais fora do âmbito democrático do processo legislativo.

Deve ser destacado que, no voto-vista do ministro Marco Aurélio no Recurso Extraordinário 593.727, houve o seguinte registro, focando o perigo natural de reconhecer poderes sem deveres — porém, foi voto vencido:

“[…] Quem surge como responsável pelo controle não pode exercer a atividade controlada […]Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas. A função constitucional de titular da ação penal e fiscal da lei não se compatibiliza com a figura do promotor inquisitor”.

Oportunamente, forte na decisão da maioria do Supremo, com diversos interesses e pressões em investigações de repercussão, bem como de forma a consolidar internamente os PICs, o Conselho Nacional do Ministério Público publicou a Resolução 181, de agosto de 2017, com intenção de dispor sobre as regras de instauração e tramitação do procedimento investigatório criminal a cargo do Ministério Público, substituindo a Resolução 13, de 2006.

Deve ser ressalvado que as resoluções do Conselho Nacional do Ministério Público sobre procedimentos de investigação criminal podem aparentar serem necessárias neste novo cenário de legitimidade investigativa, frente a ausência de legislação da União sobre a matéria, mas são normas de cunho interno e administrativo que não podem se equipar a lei ou algo equivalente, sob pena de inconstitucionalidade. Para além, sequer deveria haver resolução antes de haver lei própria e, consequentemente, não deveria haver PIC antes de previsão democrática regulamentando-a.

Em atual conjectura, não existe estrutura junto ao Ministério Público para se tornar principal órgão de investigação criminal, mas existe uma mensagem subliminar do CNMP que necessita ser debatida. Uma observação: não se trata de negar importância à soma de esforços na condução de esclarecimentos sobre fatos penais e a devida persecução penal, tanto que existem exemplos na legislação alienígena que são favoráveis. No entanto, a estrutura constitucional e orgânica brasileira optou por uma forma diversa de condução, sendo que resoluções e interesses unilaterais de órgãos como Ministério Público geram um conflito inclusive de controle sobre a condução de tais atos.

O procedimento investigatório criminal pelo Ministério Público passou a ser autodefinido pela instituição como um instrumento sumário e desburocratizado de natureza administrativa e inquisitorial, instaurado e presidido pelo membro do Ministério Público com atribuição criminal, e que tem como finalidade apurar a ocorrência de infrações penais de natureza pública, servindo como preparação e embasamento para o juízo de propositura, ou não, da respectiva ação penal.

Trata-se de uma constatação, o Ministério Público se creditou e legislou sua forma de investigar. Não se trata de juízo de valor (positivo ou negativo), mas de uma realidade que deverá ser enfrentada urgentemente pelo Legislativo para garantir o Estado Democrático, uma vez que o Judiciário ativamente vem referendando essa fluidez entre os limites funcionais.

Como não se trata de lei, mas resolução, situações sobre a delimitação do alcance de atuação e autorrestrição na divisão entre órgãos do Estado não acompanham a natureza do significado do que seja instaurar e presidir um procedimento investigatório (com seu início, meio e fim).

Nesse cenário, uma situação vem se demonstrando recorrente na prática, qual seja, o Ministério Público instaura inquérito próprio (PIC) para investigar a prática de crime, mas, realizadas algumas etapas de instrução, o órgão ministerial opta por requisitar a instauração de inquérito policial, encaminhando os autos do procedimento de investigação para um delegado de polícia.

Neste caso, o delegado de polícia deveria instaurar portaria de abertura de inquérito policial ou decidir por restituir a pretensão ao Ministério Público?

Como não existe legislação sobre a matéria, obriga-se o operador do Direito a buscar as seguintes situações: a) os limites determinados pelo STF; b) a Resolução 181/2017 do CNMP. Para o primeiro, ficou garantida a validade e o reconhecimento do procedimento de investigação, e, para o segundo, trata-se de regras ainda balizadoras do assunto.

De início, já estaria resolvido o assunto com qualquer manual que traga o conceito de procedimento e a noção de presidir os atos de investigação. Mas, adentrando na atual Resolução 181/2017 do Conselho Nacional do Ministério Público, ao pretender regulamentar a investigação criminal presidida no âmbito do Ministério Público, estabelece que seu membro, de posse de peças de informação, pode, entre outras possibilidades, instaurar o PIC ou requisitar a instauração de inquérito policial, conforme se pode observar em seu artigo 2º, a seguir transcrito:

Art. 2º Em poder de quaisquer peças de informação, o membro do Ministério Público poderá:

I – promover a ação penal cabível;

II – instaurar procedimento investigatório criminal;

III – encaminhar as peças para o Juizado Especial Criminal, caso a infração seja de menor potencial ofensivo;

IV – promover fundamentadamente o respectivo arquivamento;

V – requisitar a instauração de inquérito policial, indicando, sempre que possível, as diligências necessárias à elucidação dos fatos, sem prejuízo daquelas que vierem a ser realizadas por iniciativa da autoridade policial competente.

Merece atenção uma observação sistêmica sobre a ordem de eventos que podem ser adotados pelo membro do Ministério Público, pois é evidente que a requisição de instauração de inquérito policial se apresentou como última alternativa a ser adotada, inclusive o arquivamento o antecede, demonstrando a intenção de controle sobre as investigações criminais pelo órgão ministerial. E, aqui, novamente merecedor de registro o voto-vista do ministro Marco Aurélio, acima mencionado, sobre os perigos da intenção de controlar sem ser controlado.

No caso, ou o Ministério Público faz uso do seu poder constitucional expresso de requisição ou faz uso do seu poder implícito de investigação. No primeiro caso, as peças de informação serão encaminhadas ao delegado de polícia, a fim de que, a priori, seja instaurado o inquérito policial. No segundo caso, o próprio membro do Ministério Público instaurará o PIC, o qual deverá observar as regras da Resolução 181/2017 do CNMP.

Dessa forma, verifica-se que a escolha entre instaurar o PIC ou requisitar a instauração de inquérito policial somente pode ser feita neste momento inicial. Não há na Resolução 181/2017 do CNMP a possibilidade de o membro do Ministério Público simplesmente declinar da sua presidência do PIC para órgão externo ao seu, ainda que este tenha atribuição concorrente.

Trata-se, portanto, de uma decisão preclusiva do membro do Ministério Público, de modo que, uma vez instaurado o PIC, somente pode haver um final, qual seja, a sua conclusão. Sobre o tema, são cristalinas redações dos dispositivos abaixo:

Art. 3º, […] § 5º No caso de instauração de ofício, o procedimento investigatório criminal será distribuído livremente entre os membros da instituição que tenham atribuições para apreciá-lo, incluído aquele que determinou a sua instauração, observados os critérios fixados pelos órgãos especializados de cada Ministério Público e respeitadas as regras de competência temporária em razão da matéria, a exemplo de grupos específicos criados para apoio e assessoramento e de forças-tarefas devidamente designadas pelo procurador-geral competente, e as relativas à conexão e à continência.

Não é possível, portanto, conclusão de PIC para fins de instauração de inquérito policial. Uma vez reconhecida a investigação presidida por membro do Ministério Público, e encontrando-se a mesma já iniciada no âmbito do referido órgão, este não poderá requisitar a abertura de inquérito, transferindo para a polícia judiciária tal ônus que seria concorrente, essencialmente em razão da necessidade de continuidade da apuração.

Neste ponto, é oportuno ressaltar que tanto a Polícia Federal quanto a Civil não possuem qualquer subordinação hierárquica ao Ministério Público. Assim, se o Ministério Público, possuindo competência, inicia um procedimento, nada mais justo que o encerre, assegurando a separação e autorrestrição entre os órgãos.

Deve ser enfrentado que o artigo 5º do Código de Processo Penal rege que nos crimes de ação penal de iniciativa pública o inquérito policial será iniciado mediante a requisição do Ministério Público, mas que o mesmo pode indeferir o requerimento de abertura (parágrafo 2º).

Outro óbice ao aperfeiçoamento das requisições de instauração de inquérito policial deriva do equivocado conceito de equivalência entre requisição e ordem o que, em diversas oportunidades, acaba por dificultar ou até mesmo inviabilizar o seu questionamento. A ordem deriva de uma relação hierárquica que goza de presunção relativa de legalidade, por sua vez a requisição é a vindicação para a realização de algo, fundamentada em lei. Assim, não se deve confundir requisição com ordem, pois nem o representante do Ministério Público nem tampouco o juiz são superiores hierárquicos do delegado.

Por ausência de legislação específica, quando o Supremo reconheceu a validade da investigação criminal pelo Ministério Público, uma (falsa) lacuna se fez surgir para os casos de um membro do MP derrogar uma investigação própria para um órgão diferente. Falsa porque aquele que preside a investigação deverá fazê-lo até final conclusão. Neste liame, como a requisição é um requerimento lastreado em lei (e não em uma relação hierárquica), deve-se aplicar a esta a teoria dos motivos determinantes, largamente difundida no âmbito do Direito Administrativo, vinculando o requisitante à motivação declarada em sua requisição, que há de ser compatível com a medida requisitada, sob pena de invalidade.

Dessa forma, impõe-se à autoridade policial restituir justificadamente a requisição, objetivando instauração de inquérito policial não apenas nos casos em que esta se mostrar manifestamente ilegal, mas também quando esta não se mostre devidamente fundamentada, ou traga em seus fundamentos intenção de afastabilidade das obrigações assumidas pela instauração de PIC pelo Ministério Público, que lhes deve abrangência integral, não cabendo se apartar da competência de presidir até final conclusão.

Em igual situação, no caso de o Ministério Público Federal compreender durante o PIC que a matéria é de seara estadual, neste caso deverá atribuir a competência ao Ministério Público estadual, e não requisitar ao delegado de polícia estadual.

Assim, promover-se-ia a coroação do ordenamento jurídico pátrio por meio da devida fundamentação do ato requisitório em face do suposto cometimento de um dado ilícito penal, devendo o momento de opção entre uma investigação própria pelo Ministério Público ou por polícia judiciária se dar previamente.

Ressalte-se, por fim, que o PIC tem natureza equivalente ao inquérito policial, destinando-se ambos a investigação preliminar criminal, buscando todos os possíveis pontos de vista do fato, devidamente respeitados os direitos fundamentais dos afetados, confirmando (ou não) a autoria e a materialidade delitivas. Portanto, a instauração de um procedimento deve levar, necessariamente, à impossibilidade de instauração do outro, não podendo o PIC ser transformado em requisição de abertura de inquérito.

Nota final: a derrogação de função gera evidente nulidade nos atos praticados do momento em diante ao afastamento do órgão instaurador da investigação. Observa-se, frisamos a separação entre órgãos do MP e a polícia judiciária, sendo que internamente poderá ser redistribuído por atribuições e competências.

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    é advogado, mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS, especialista em Direito Empresarial pela FSG, professor de Direito Processual Penal e Direito Penal Econômico, conselheiro do Tribunal de Ética e Disciplina e membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-BA, além de membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal.

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    é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia e professor de Direito Processo Penal.

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