Diário de Classe

Só o Estado de Direito pode aplacar os demônios da natureza humana

Autores

  • Danilo Pereira Lima

    é professor do curso de Direito do Centro Universitário Claretiano de Batatais (Ceuclar) doutor — com bolsa financiada pela Capes/Proex — e mestre — com bolsa financiada pelo CNPq — em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do grupo de pesquisa Hermenêutica Jurídica vinculado ao CNPq e do grupo Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

  • Frederico Pessoa Silva

    é graduando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

27 de janeiro de 2018, 7h03

A longa tradição do constitucionalismo está baseada na luta contra a tirania. Por meio da interdição jurídica e baseada em diferentes desenhos institucionais, o constitucionalismo definiu o Estado de Direito como a fórmula jurídica e política mais adequada para a limitação do poder e regulamentação das liberdades individuais. Essa complexa combinação foi muito bem definida por James Madison em um de seus artigos publicado em O Federalista. De acordo com o famoso articulador do constitucionalismo estadunidense, que durante os anos de 1809 e 1817 tornou-se o quarto presidente da República de seu país, “se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”[1]. Sendo bastante claro e direto em seu artigo, Madison definiu a medida necessária de interdição jurídica para a consolidação de uma comunidade política minimamente civilizada. Algo proferido no final do século XVIII, mas que certos agentes públicos, deslumbrados com os holofotes da imprensa, ainda insistem em desconsiderar.

Foi o que aconteceu durante o interrogatório de Aldemir Bendine na 13ª Vara Federal de Curitiba, a famosa jurisdição do juiz Sergio Moro. A defesa de Bendine o havia orientado a não responder às perguntas feitas pelos procuradores federais. Algo normal, já que o direito de permanecer em silêncio perante qualquer autoridade está consagrado no artigo 5º, LXIII da Constituição, mas que o procurador Athayde Ribeiro Costa prefere definir como uma estratégia indigna e covarde da defesa. Ouvir uma declaração dessas, de um Datena, seria normal. No entanto, ouvir essa declaração de um agente do Ministério Público — instituição que, por sinal, tem o dever institucional de fiscalizar a aplicação da lei — é mais um sinal, entre tantos outros dados por procuradores e juízes voluntaristas, de que devemos nos preocupar cada vez mais com agentes públicos que desejam realizar suas funções por meio da tirania.

Para quem tanto insiste em desprestigiar o Estado de Direito em nome de uma cruzada religiosa contra o crime, é bom lembrar como as disputas pelo poder e as relações políticas eram resolvidas alguns séculos atrás, numa época destituída de quaisquer direitos e garantias fundamentais. Na península Itálica, ainda durante a Idade Média, as disputas entre guelfos e gibelinos sempre terminavam em sangue. Entre as muitas histórias de violência que marcaram essa época, está a do conde Ugolino della Gherardesca (1220-1289), que durante 20 anos comandou a cidade de Pisa com mãos fortes, mas que, após ser traído pelo arcebispo Ruggieri, acabou trancafiado com seus dois filhos e netos na torre dos Gualandi até que todos morressem de fome ou fossem atacados pela loucura do canibalismo, como sugere Dante Alighieri no canto XXXIII do Inferno, da Divina Comédia[2]. Séculos mais tarde, Nicolau Maquiavel escreveu O Príncipe. Com base em situações de violência semelhantes às sofridas pelo conde Ugolino — que ainda ocorriam com bastante frequência no século XVI —, Maquiavel analisou as lutas pelo poder não como deveriam ocorrer, mas, sim, como elas realmente ocorriam em seu tempo. Apesar de até hoje ser condenado pelo que não escreveu — como, por exemplo, que os fins justificam os meios —, o fundador da ciência política moderna nos mostra como a vida anterior ao Estado de Direito era bem mais violenta.

Praticamente um século depois de Maquiavel publicar O Príncipe, Thomas Hobbes utilizou a metáfora do estado de natureza para descrever os riscos que a desintegração do Estado representava para a segurança do indivíduo. Ao contrário de Rousseau e sua crença no mito do bom selvagem, para Hobbes, a ausência de uma ordem política comum era sinônimo de violência generalizada entre as pessoas. Algo semelhante ao que acontece em O Senhor das Moscas, de William Golding. Nesse romance publicado em 1954, Golding construiu uma alegoria sobre a desintegração das formas minimamente civilizadas de convivência, traçando um quadro assustador sobre a consolidação da barbárie. Segundo a história narrada pelo romance, após um acidente aéreo numa ilha paradisíaca, as crianças sobreviventes, que até então se encontravam plenamente integradas à civilização, aos poucos vão abandonando a ordem política para se entregarem aos sentimentos mais sombrios do coração humano. Com uma narrativa bem hobbesiana, Golding demonstra que o distanciamento de certas conquistas da civilização — como é o caso da interdição jurídica oferecida pelo Estado de Direito — não permite a formação de ambientes harmônicos e pacíficos, mas, sim, a consolidação do terror e do medo.

Foi o que aconteceu com vários países da Europa durante a ascensão de movimentos políticos nazifascistas na primeira metade do século XX. A desintegração do Estado de Direito teve como consequência a definição da política em termos belicistas, com base no binômio amigo-inimigo de Carl Schmitt. O entendimento de que inimigos deviam ser completamente dizimados produziu uma das maiores catástrofes humanas em países considerados como o crème de la crème da cultura ocidental. Muitos preferem descrever esse período como uma época marcada pela falta de humanidade. Isso é um erro. O que torna o Holocausto assustador não é a ausência de humanidade, mas a liberação dos sentimentos mais sombrios que existem no humano. Pessoas eruditas, formadas nos grandes centros do pensamento ocidental, amantes da música clássica, da Literatura e da Filosofia também podem cometer os maiores atos de violência. Basta suspender o Estado de Direito e liberá-los das amarras do constitucionalismo.

Na ânsia de enfrentar o crime e depois ganhar as primeiras páginas dos jornais ou, quem sabe, ser homenageado em algum filme policial de gosto duvidoso, agentes públicos como Athayde Ribeiro não se cansam de vociferar contra o Estado de Direito. Por meio do consórcio montado pela "lava jato" — que coloca Judiciário e MPF dentro de um mesmo bloco —, já foram feitas diversas conduções coercitivas e interceptações telefônicas ilegais, prisões abusivas, condenações sem provas e discursos políticos contra o Estado de Direito. Até um projeto de lei para suspender direitos e garantias fundamentais foi apresentado, denominado eufemisticamente como as dez medidas contra a corrupção[3]. Algo muito preocupante para um país que ainda não curou as feridas de sua última ditadura, mas que, pelo visto, em muitos aspectos continua a enfrentar seus problemas por meio de pequenas tiranias sem se atentar para a condição de que não existem anjos na terra, seja entre governantes ou governados. Os pequenos tiranos que se encontram no Judiciário e no Ministério Público[4] se esquecem de que o Estado de Direito não pode se posicionar em favor de alguns e em desfavor de outros, e que as denominadas garantias fundamentais não pertencem a algum réu ou cidadão em particular, mas, sim, devem funcionar como garantias que protegem a todos os cidadãos, de forma a impedir a perpetração de abusos por parte de quem se encontra no exercício do poder.


[1] MADISON, James. Artigo 51. In: HAMILTON, Alexander; JAY, John; ______. O Federalista. 2ª ed., Lisboa: Calouste Gulberkian, 2011, pp. 467-473.
[2] ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia – Inferno. São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 217-223.
[3] Para uma crítica ao projeto, ver: STRECK, Lenio. O pacote anticorrupção do Ministério Público e o fator Minority Report. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-mar-03/senso-incomum-pacote-anticorrupcao-mpf-fator-minority-report. Acessado em: 22/1/2018.
[4] É importante ressaltar que nem todos os magistrados e membros do Ministério Público compactuam com o punitivismo discricionário que tantos prejuízos vêm causando ao Estado de Direito, já que existem excelentes agentes públicos com senso de responsabilidade constitucional e prudência política nas duas instituições.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!