Opinião

Governo da Bahia insiste nas taxas inconstitucionais

Autor

  • Anderson Pereira

    é advogado na Bahia presidente da Comissão de Direito Tributário da Subseção de Feira de Santana da OAB-BA e membro da Comissão de Direito Tributário da Seção da Bahia da Ordem dos Advogados do Brasil.

26 de janeiro de 2018, 6h09

O fim do ano não costuma trazer apenas festejos e confraternizações. Historicamente, é o momento preferido para alterações no sistema tributário, principalmente pelo fato das pessoas não estarem tão atentas a estas questões.

Houve momentos, inclusive, em que a mudança foi realizada no último dia do ano, mesmo quando coincidia final de semana ou feriado[1], e contava até mesmo com a chancela do Supremo Tribunal Federal, para quem a publicação não se confundia com a distribuição[2].

Não se pode considerar, contudo, que é uma conduta legítima, uma vez que, por ser, o tributo, um mecanismo do exercício da soberania estatal para invadir o patrimônio privado a fim de buscar recursos para atender às necessidades da sociedade, é preciso garantir a segurança jurídica necessária e esperada, que, neste caso, se traduz primordialmente na ideia de calculabilidade[3].

Com efeito, em um Estado que se afirma democrático, não transpira compatibilidade com a Constituição a imposição de obrigação cujo objeto é a entrega compulsória de parcela do patrimônio particular, sem que o obrigado tenha conhecimento prévio da sua existência ou do seu novo valor, ainda mais quando se trata de uma exigência que, a rigor, é consentida[4].

Este, em síntese, é o alicerce do princípio da anterioridade tributária, garantido pela Constituição Federal de 1988, e que impede o legislador de instituir ou majorar tributo sem que tenha cumprido o dever de observar uma antecedência de noventa dias (anterioridade nonagesimal) e/ou de um ano (anterioridade anual) entre a lei que cria ou aumenta exação e sua efetiva cobrança, salvo específicas exceções contidas no texto constitucional.

Mas, ainda assim, o princípio da anterioridade não é capaz de impedir a prática comum de alteração da legislação tributária nos últimos dias do ano, ainda que seus efeitos somente serão experimentados após determinado tempo. Ciente disso, o Governo da Bahia, no “apagar das luzes” de 2017, alterou novamente sua legislação tributária referente às taxas, possivelmente contando com a desatenção da população, que até agora parece não ter percebido.

A majoração do exagero
A Lei Estadual 13.814, de 21 de dezembro de 2017 atenta ainda mais contra o direito ao acesso à justiça na Bahia, por promover o aumento das já exorbitantes taxas judiciárias exigidas no âmbito do Poder Judiciário, ao prever a substituição das tabelas do Anexo único da Lei 12.373, de 23 de dezembro de 2011, pelas do Anexo Único desta Lei (artigo 3º).

Os contribuintes baianos já amargam as graves consequências da Lei 13.600/2016, que elevou as taxas judiciárias no estado a altíssimos patamares[5], além de criar novas exigências incompatíveis com a Constituição Federal vigente, como, por exemplo, a exigência de custas para processamento de recurso especial e recurso extraordinário, para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal, respectivamente.

Por isso, a seção da Bahia da Ordem dos Advogados do Brasil propôs, perante o STF, ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5.720), a qual se encontra aguardando decisão do relator, ministro Alexandre de Moraes, e conta com parecer favorável da Procuradoria Geral da República, como tivemos a oportunidade de tratar em outro momento[6].

Neste sentido, ainda que o aumento promovido pela nova lei (que somente passa a viger a partir de março de 2018) não tenha ultrapassado o índice inflacionário do período, representa mais uma agressiva investida puramente arrecadatória do Estado da Bahia, pois, se suas justificativas apresentadas nos autos da ADI 5.720, pela Assembleia Legislativa e pelo Governador, não conseguiram demonstrar que houve alteração dos custos efetivos para a prestação do serviço, o novo aumento também não encontra fundamento na necessidade de readequar o valor do tributo cobrado pelo serviço.

Aliás, sequer na legislação estadual existe justificativa válida para esta nova alteração, considerando a previsão expressa da Lei Estadual 12.373 de 23 de dezembro de 2011, a qual vincula o valor da taxa ao custo e à remuneração dos serviços prestados, conforme prevê:

Art. 9º – Os valores das taxas e dos emolumentos são fixados de acordo com o efetivo custo e a adequada e suficiente remuneração dos serviços prestados, levando-se em conta a natureza pública e o caráter social dos serviços […]

Além disso, a hipótese, cabe destacar, não corresponde à atualização monetária da base de cálculo, prevista no § 2º do artigo 97 do Código Tributário Nacional, pois, a nova Lei altera o próprio valor final da taxa e não apenas um dos seus elementos, nos termos da controversa autorização contida no art. 40 da Lei Estadual 12.373/ 2011[7].

Sendo assim, se não houve aumento de custos, remuneração e/ou melhorias no serviço que justificassem a majoração promovida para o ano de 2017, pior ainda agora, o que, mais uma vez, ratifica o uso abusivo das referidas taxas para fins arrecadatórios.

Deve-se lembrar que a situação poderia ser outra, não fosse a inércia do Supremo Tribunal Federal, que até a presente data não se manifestou na ADI proposta pela OAB-BA.

A instituição do absurdo
Já a Lei Estadual 13.819, de 21 de dezembro de 2017 instituiu nova taxa no sistema tributário baiano, sem observar garantias constitucionais do contribuinte, conforme abaixo se transcreve:

Art. 1º – Fica instituída a taxa no percentual de 1,25% (um vírgula vinte e cinco por cento) sobre o valor do tributo e encargos cobrados do contribuinte por meio dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos – CEJUSC's.
§ 1º – A responsabilidade pelo pagamento da taxa será do contribuinte, quando do pagamento do valor do tributo.
§ 2º – Havendo parcelamento pelo Poder Público, as primeiras parcelas serão destinadas ao pagamento da taxa de que trata o caput deste artigo.
§ 3º – A taxa terá como limite metade do que estabelecer a tabela de custas judiciais, localizada na "Tabela I, Item I – Das causas em geral", vigente à época da celebração do acordo tributário.

A própria ementa da Lei já revela a inconsistência da exação, que seria uma “taxa para cobrança tributária nos Centros Judiciários de Solução de Conflitos”, pois, sendo o próprio Estado o credor e titular da execução fiscal, a utilização dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos é uma faculdade sua e não do devedor.

Sendo assim, se a taxa é um pressuposto para utilização desses órgãos, não poderia o Estado da Bahia impor o pagamento àquele que sequer pode intervir ou participar dessa escolha. Mas como não seria sequer crível que a Administração instituiria um tributo sobre si, como requisito para cobrar seus próprios créditos, a imprecisa redação da ementa não esconde o desejo, declarado pelo § 1, do artigo 1º, de aumentar ainda mais arrecadação tributária, sem respaldo na Constituição Federal.

Tomamos de empréstimo, mais uma vez, o magistério de Edvaldo Brito, para reafirmar que “a taxa é o tributo sinalagmático por natureza”[8], e como tal reclama a existência de uma atividade estatal específica que, nos termos do artigo 145, inciso II, da Constituição Federal, deve ser um serviço público prestado ou posto à disposição ou o exercício do poder de polícia, ambos de forma específica e divisível[9].

Entretanto, ao verificar a circunstância que atrai a nova taxa pretendida pelo Governo da Bahia, se constata a inexistência de uma prestação de serviços ou do exercício do poder de polícia. Aliás, sequer é possível identificar um critério material de taxa nos dispositivos referidos. Trata-se de uma exação exigida sobre o valor do tributo cobrado e não por um serviço prestado.

Como se sabe, a hipótese de incidência da taxa pressupõe uma atuação estatal em benefício do obrigado pelo seu pagamento[10]. Todavia, “mesmo nos países mais evoluídos depara-se, repetidas vezes, a criação legal de tributos, com a denominação de taxa que, entretanto, se configuram como verdadeiro imposto”[11].

E parece que a Assembleia Legislativa da Bahia cometeu o mesmo equívoco, sancionado pelo Governador. A análise da Lei Estadual 13.819/2017 não permite extrair outra conclusão senão a de que institui imposto, sem qualquer vinculação a uma atividade estatal.

O mesmo não se verifica no Estado do Paraná[12] (onde, possivelmente, os legisladores baianos buscaram inspiração), com a Lei Estadual 19.258, de 05 de dezembro de 2017, que instituiu taxa similar[13]. Ainda que a legislação paranaense[14] não seja adequadamente clara acerca da hipótese de incidência da taxa, as circunstâncias que a justificam podem ser consideradas como serviços públicos.

O que não se pode deixar de notar, por outro lado, é a grande discrepância dos valores exigidos no Paraná, onde a exação tem valor fixo de R$ 175,92 (cento e setenta e cinco reais e noventa e dois centavos) para aqueles que serão exigidos na Bahia, onde a taxa é fixada em um percentual, limitada a "metade do que estabelecer a tabela de custas judiciais, localizada na "Tabela I, Item I – Das causas em geral", vigente à época da celebração do acordo tributário” (artigo 3º, da Lei Estadual 13.819/2017).

Mais uma vez, o Estado da Bahia demonstra que o interesse final de sua pretensão é completamente dissociado do que enuncia e do que deveria ser seu compromisso. Além do valor do verdadeiro imposto que instituiu não corresponder a nenhuma atividade estatal e possuir como base de cálculo o tributo devido, aumentando ainda mais o ônus sobre o contribuinte, possivelmente acabará por ter o efeito contrário de aumentar a judicialização com o intuito de afastar a nova obrigação para realização de acordos extrajudiciais nas ações de natureza tributária.

O afago do interesse
Como nem tudo são espinhos, o artigo 1º da Lei Estadual 13.814, também de 21 de dezembro de 2017, trouxe, enfim, o que seria um alento para os jurisdicionados, ao inserir na legislação baiana a hipótese expressa de diferimento das custas processuais (aqui incluídas as taxas judiciárias, emolumentos e demais despesas).

Observa-se, no entanto, que o legislador se equivocou ao tratar do tema de modo superficial e transferir à Presidência do Tribunal de Justiça a prerrogativa para regulamentar o novel instituto. Mesmo se considerarmos que a definição do momento do pagamento do tributo não está sujeita à reserva legal, trata-se de matéria de cunho processual, para a qual não há competência legislativa do Poder Judiciário[15].

Destarte, dentre tantas novidades que importarão em maior agravamento das despesas tributárias, bem como grande restrição à garantia do acesso à justiça, a abertura da possibilidade de diferimento das custas processuais, por muitas vezes negadas pela ausência de autorização legal, isoladamente, pode ser vista como um alento para os contribuintes.

Resta saber se é, de fato, uma postura elogiável do Estado, ao reconhecer a triste realidade da desigualdade que impera na Bahia e causa grande impacto no acesso à justiça, ou apenas uma forma de minimizar os efeitos da pesada majoração das taxas no âmbito do Poder Judiciário.

Cabe aos principais interessados ficar atentos.


1 Luís Eduardo Schoueri relata que “chegou-se a ponto de editar norma num dia 31 de dezembro à noite, tendo os exemplares do Diário Oficial sido entregues aos assinantes apenas no dia 2 de janeiro. […] Não se surpreende daí que, poucos anos depois, tenha ocorrido um aumento de tributo em um 31 de dezembro que caía num sábado, quando não havia, portanto, expediente em repartições públicas e portanto não seria de esperar que alguém tivesse notícia do aumento da carga tributária” (SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 2016, pp. 328/329)

2 Neste sentido, cf. AI 282522 AgR, Rel. Min. Moreira Alves, Primeira Turma, julgado em 26/06/2001, DJ 31/08/2001.

3 Segundo Humberto Ávila, ”calculabilidade significa, pois, a capacidade de o cidadão prever, em grande medida, os limites da intervenção do Poder Público sobre os atos que pratica, conhecendo antecipadamente o âmbito de discricionariedade existente para os atos estatais” (ÁVILA, Humberto. Segurança Jurídica: Entre a permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 587)

4 Para uma noção de princípio da legalidade como desdobramento da exigência de consentimento para imposição de tributos, cf. UCKMAR, Victor. Princípios comuns de direito constitucional tributário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, pp. 9/52.

5 Em estudo realizado no âmbito da Comissão de Direito Tributário da OAB/BA identificamos que, para determinados valores de causa, o aumento ocorrido em 2017 representa uma majoração de 230,59% (duzentos e trinta vírgula cinquenta e nove por cento) da taxa judiciária.

7 Art. 40 – Fica o Presidente do Tribunal de Justiça autorizado a ajustar anualmente os valores dos emolumentos e das taxas pelo exercício do poder de polícia e pela prestação de serviços nas áreas do Poder Judiciário Estadual, até o limite da variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.

8 BRITO, Edvaldo. Direito tributário: imposto, tributos sinalagmáticos, contribuições, preços e tarifas, empréstimo compulsório. São Paulo: Atlas, 2015. p. 82.

9 Esta noção resiste ao tempo, vale ressaltar. Na década de 50, Sylvio Faria já afirmava: “o que se pode dizer com firmeza é que, pela opinião do grupo qualitativamente mais representativo das finanças públicas do momento, o conceito de taxa é restrito e se circunscreve aos limites de uma contraprestação pelo benefício auferido pelo contribuinte em decorrência de uma prestação efetiva de serviços” (FARIA, Sylvio Santos. Problemas jurídicos e econômicos da tributação. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1958, p. 35).

10 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6.ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 146 e seguintes.

11 FALCÃO, Amílcar. Introdução ao direito tributário. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, pp. 114/115.

14 Art. 1º As audiências de conciliação, as sessões de mediação e os pedidos de homologação de acordo, no âmbito pré-processual dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania – Cejusc terão a incidência de taxa na forma desta Lei.

15 Neste sentido, cf. ADI 1926 MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 19/04/1999, DJ 10/09/1999.

Autores

  • Brave

    é advogado na Bahia, presidente da Comissão de Direito Tributário da Subseção de Feira de Santana da OAB-BA e membro da Comissão de Direito Tributário da Seção da Bahia da Ordem dos Advogados do Brasil.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!