Opinião

Novo capítulo sobre a discussão entre culpa consciente e dolo eventual

Autores

  • Leonardo Schmitt de Bem

    é professor adjunto na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) doutor em Direito Penal pela Universidade de Milão (Itália) e mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

  • João Paulo Martinelli

    é advogado doutor em Direito Penal pela USP com pós-doutoramento pela Universidade de Coimbra professor do Ibmec-SP e membro efetivo do Iasp.

25 de janeiro de 2018, 5h19

Aos membros do Ministério Público sempre causou perplexidade abrir o Código de Trânsito e constatar que a sanção mínima cominada ao crime de homicídio culposo era reduzida se comparada àquela prevista ao homicídio doloso tipificado pelo Código Penal. Essa realidade colaborou — e ainda colabora — à conversão (quase) automática da natureza do perigo conscientemente criado no trânsito que, regra geral, é culposa[1].

O efeito dessa insatisfação ministerial é claramente percebido na elasticidade que o instituto do dolo eventual perfaz, é dizer, mesmo as hipóteses de consumo moderado de álcool pelos motoristas — o que ensejaria uma responsabilidade pelo crime de trânsito — engrossam as estatísticas da moldura dolosa. Logo, o critério matemático da quantidade de pena (mínima) substitui mecanicamente as orientações teóricas que procuram traçar os limites entre culpa consciente e dolo eventual[2]. Todos os esforços teóricos de buscar a distinção entre dolo e culpa e suas modalidades são ignorados e substituídos por métodos simplórios, à moda brasileira, praticamente reconhecendo a desnecessidade de uma teoria do delito.

Vinte anos depois da promulgação da Lei 9.503/1997, ao menos no contexto de homicídios culposos provocados por condutores sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que cause dependência, a pena mínima da infração foi elevada para cinco anos, aproximando-se muito da margem mínima do homicídio doloso. O curioso é que a insatisfação permanece, mas agora sob outro foco, é dizer, já se ventilou que a pena mínima cominada à infração do artigo 121 do Código Penal é demasiado baixa[3].

Se o coro do discurso da impunidade voltar à tona, não tardará para o legislador propor o aumento da pena mínima do homicídio doloso. Quando o efeito cascata ocorrer, a “discussão” sobre a distinção entre culpa consciente e dolo eventual será reavivada, mas, infelizmente, resgatando-se o critério matemático, como se o direito fosse uma ciência exata. Isto é, novamente se reputará diminuta a pena mínima (agora do parágrafo 3º do artigo 302) e, por isso, as denúncias contemplarão a prática do homicídio doloso considerando sua nova (e expressiva) pena mínima.

Essa “técnica” acusatória sempre gerou insatisfação nos advogados militantes na seara criminal, pois o combate teórico poderia ser perdido com números. A nova previsão legal, porém, parece ter afastado esse descontentamento. Isso porque há tese defensiva de que a regra geral passou a ser regra absoluta, a ponto de não ser mais possível configurar o dolo eventual nos casos de mortes provocadas por condutores embriagados.

Em termos distintos, já que a influência do álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência passou a constituir elementar do tipo legal, e, sendo um tipo culposo, a responsabilização penal em caso de morte seria única e, nesse sentido, pelo crime qualificado de homicídio culposo de trânsito. A vingar a tese, estar-se-ia diante de uma novatio legis in mellius, que comportaria revisão das condenações pretéritas por dolo eventual e emendas de inúmeras denúncias já ofertadas.

Essa interpretação poderá ser aceita por qualquer julgador. Esclarecemos, aliás, que não é a primeira vez que ela é feita. Quando uma comissão de juristas instituída pelo Senado apresentou o relatório final do anteprojeto do Novo Código Penal, ventilou-se que a causação de morte na condução de veículo automotor sob a influência de álcool caracterizava hipótese de culpa temerária, consagrando-se, assim, um tipo de culpa substancialmente elevado (gravíssima), de sorte que se pretendia sancionar os condutores com pena de prisão de 4 a 8 anos[4].

À época, os proponentes mantiveram a regra geral de que os crimes de trânsito são culposos e o contexto de homicídio no trânsito em razão da influência de álcool não mais comportaria exceção. Havia gritante impropriedade, porque não era crível sustentar o abandono do instituto do dolo eventual, mormente em situações de manifesto desprezo pela vida das demais pessoas da parte dos condutores de veículos automotores. Vingando a proposta da comissão, crimes claramente dolosos, em determinados contextos, seriam convertidos em crimes culposos[5]. Atenta a essa consequência, uma comissão temporária de estudo da reforma do Código Penal suprimiu o elenco casuístico que constava do parágrafo 6º do artigo 121 do PLS 236/2012 e que incluía a hipótese anotada[6].

Por evidente, esta exclusão não induziu nenhum raciocínio de que o homicídio se transmudou automaticamente em doloso, porém afastou a presunção absoluta de que os condutores revelavam uma atitude censurável somente do ponto de vista da leviandade, isto é, como “se não tivessem refletido suficientemente”[7] e, assim, incidiam em descuido perante a norma de proteção. Em síntese, a comissão temporária evitou que a figura do dolo eventual fosse afastada precipitadamente da seara do trânsito, como se houvesse uma categoria de crimes imunes à modalidade dolosa.

O mesmo deverá ocorrer para combater a tese que assimila a hipótese de morte causada por agente que conduz veículo automotor sob a influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência como caso automático a ser sancionado pelo parágrafo 3º do artigo 302 da Lei de Trânsito. Já é impertinente reavivar a culpa temerária para fulminar anos de estudos que, inclusive nas hipóteses de embriaguez ao volante, buscaram traçar a distinção entre culpa consciente e dolo eventual[8], porém, é ainda mais descabido sustentar a exclusão legal do dolo eventual no contexto retratado.

Não é incorreto sustentar que a nova regra fortalece a frente jurisprudencial que reputa culposo o perigo conscientemente criado pelo agente que conduz sob a influência de álcool, mas é inexato defender que a culpa será a única forma de responsabilização do agente em casos de acidentes fatais. Por isso, recebe-se com cautela decisão proferida pelo STJ de que a embriaguez, por si só, não caracteriza dolo eventual[9]. Para nós, a depender da quantidade de bebida alcoólica que é ingerida pelo agente, independentemente de outra particularidade, não existiria óbice para caracterização do dolo eventual.

Embora a intenção não seja matematizar o Direito Penal de trânsito, por evidente as oscilações etílicas em cada condutor podem traduzir situações concretas indicadoras de condutas distintas e, portanto, passíveis de reprovações plurais[10]. Claro que a exigência de qualquer elemento adicional poderá reforçar a existência de dolo de homicídio, contudo a ausência desse elemento não pode levar, automaticamente, à exclusão do dolo. Reprovar de forma idêntica quem consome uma quantidade moderada de álcool (uma dose) e em seguida conduz um veículo e outro condutor que fez preteritamente consumo abusivo de bebida alcoólica (embriaga-se por completo) é ignorar completamente a razoabilidade[11].

Em síntese, os homicídios verificados no trânsito não podem ser classificados de forma automática como dolosos ou culposos, qualificados ou não. Apenas a partir de uma análise objetiva é possível obter a melhor categorização. O ideal, inclusive, seria seguir os postulados de alguma teoria cognitiva[12]. Mesmo assim, nada obsta que a decisão judicial desagrade uma das partes. É por isso que a aplicação da culpa consciente, ou, então, do dolo eventual, revela-se um dos problemas penais mais tormentosos.

Para não agravar a busca por uma solução, é indispensável se afastar do universo psíquico do motorista, ou seja, deve-se retirar do condutor a competência de definição de que modo atuou no caso concreto. Como ele raramente confirmará a aceitação prévia do resultado fatal, não há sentido livrá-lo de possível responsabilização dolosa concedendo exclusiva atenção à ausência de seu consentimento. Uma conclusão nesse sentido estaria respaldada em simples presunção. Esse é o efeito de se adotar uma teoria volitiva visando a diferenciação das duas figuras. Esse foi o caminho seguido no julgado do STJ.

Para fugir do natural subjetivismo, deve-se rever o reinado da teoria volitiva para destacar o primado de teoria cognitiva. Com efeito, o principal elemento do dolo passará a ser o conhecimento do agente, e não mais sua vontade psicológica. A partir desta guinada hermenêutica, é dever identificar os elementos sobre os quais a consciência do motorista precisa incidir para que sua conduta seja reprovada como dolosa.

O principal elemento, sem dúvida, diz respeito à quantidade de bebida alcoólica ingerida previamente à condução. Embora não haja a definição legal de percentual único que, se ultrapassado, influencie seriamente a condução do veículo automotor, o condutor sabe que quanto maior for o consumo etílico, independentemente de suas características pessoais, maior será a qualidade do risco conscientemente criado ao conduzir. E a qualidade do risco criado deve se sobrepor à suposta indiferença ou confiança, pois permite ao intérprete avaliar melhor o que passa na cabeça do agente para concluir se houve dolo eventual ou culpa consciente.

Nessa linha, seja porque há uma representação relativamente grande de o evento fatal ocorrer, seja porque o perigo criado representa, em si, método idôneo para provocar uma morte, torna-se indiferente analisar a confiança do motorista na não ocorrência do resultado. Essa análise cognitiva não altera a interpretação pretoriana de que o homicídio no trânsito é, em regra, cometido culposamente, pois apenas a presença de circunstâncias especialmente perigosas como, por exemplo, na linha trilhada, a ingestão de quantidade elevada de bebida alcoólica, ocasionará uma alteração para a figura dolosa.


[1] STJ, 6ª Turma, Habeas Corpus 58.826/RS, rel. min. Maria Thereza de Assis, DJ 8/9/2009.
[2] De Bem, Leonardo Schmitt. Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. Saraiva, 2015, p. 143-153.
[3] Cunha, Rogério Sanchez. Lei 13.546/17: Altera disposições do Código de Trânsito Brasileiro. In: meusitejurídico.com, consulta em 7/1/2017.
[4] Artigo 121, parágrafo 5º e 6º do PLS 236/2012.
[5] De Bem, Leonardo Schmitt. Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. Saraiva, 2015, p. 504 e ss.
[6] A outra situação legal de culpa gravíssima se referia à participação, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente.
[7] Logoz, Paul apud Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 20ª ed. Saraiva, 2014, p. 386.
[8] Como exemplo, dentre inúmeros outros, de esforço para distinguir dolo e culpa: PUPPE, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Trad. Luis Greco. Barueri: Manole. 2004.
[9] 6ª Turma, Recurso Especial 1.689.173/SC, rel. min. Rogério Schietti Cruz, j. 6/12/2017.
[10] De Bem, Leonardo Schmitt. Direito Penal de Trânsito. 3ª ed. Saraiva, 2015, p. 154 e ss.
[11] Jakobs, Günther. Derecho Penal. Parte General. Marcial Pons, 1997, p. 334.
[12] Sobre a crise dos conceitos volitivos de dolo, conferir: Martinelli, João Paulo Orsini; De Bem, Leonardo Schmitt. Lições fundamentais de Direito Penal. 3ª edição. Saraiva. 2018, pp. 466 e ss.

Autores

  • é professor adjunto na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), doutor em Direito Penal pela Universidade de Milão (Itália) e mestre em Ciências Criminais pela Universidade de Coimbra (Portugal).

  • é advogado, professor da Faculdade de Direito do IDP-São Paulo, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo e pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra.

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