Direito Civil Atual

O caso Pickles e a rejeição da doutrina do abuso de direito na Inglaterra

Autor

  • Thiago Rodovalho

    é professor-doutor da PUC-Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP com estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo Alemanha.

22 de janeiro de 2018, 7h01

É uma honra participar novamente da prestigiosa coluna Direito Civil Atual, produzida pela Rede de Pesquisa em Direito Civil Contemporâneo, publicada no site Consultor Jurídico.

Introdução
O abuso de direito consubstancia-se em teoria majoritariamente aceita, especialmente nos países de Civil Law.[1] No Brasil, a teoria teve sua consagração no CC/2002, com a redação do artigo 187, embora pudesse ser extraída a contrario sensu no CC/1916. Nessa teoria, grosso modo, limita-se o exercício de um direito à sua finalidade econômica ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (CC/2002 art. 187).

Contudo, apesar de majoritariamente aceita, a teoria do abuso de direito não se desenvolveu, quiçá possa dizer-se rejeitada, no direito inglês, e um centenário precedente é geralmente apontado como aquele que teria fechado as portas para o abuso de direito na Inglaterra,[2] trata-se do célebre caso The Mayor, Aldermen and Burgesses of the Borough of Bradford vs. Pickles, ou simplesmente Pickles Case.

O caso[3]
A família Pickles era proprietária de terras sob as quais havia uma importante nascente, que fornecia água para a cidade de Bradford. Na época dos fatos, a Companhia d'Água da cidade havia extraído água da propriedade da família Pickles por aproximadamente 40 anos, sem nunca ter pago qualquer valor ou indenização por isso, apesar de tentativas anteriores da família de ser recompensada pelo uso da água.

Por volta de 1890, Edward Pickles anuncia que irá drenar a água de sua propriedade, cuja consequência imediata seria a redução de oferta d'água para a cidade de Bradford. O projeto de Pickles tinha toda a feição de ter sido concebido como forma de forçar a Companhia d'Água da cidade a comprar-lhe a propriedade ou a indenizá-lo pela extração da água.

Foi, então, que o Prefeito de Bradford e a Companhia d'Água da cidade ingressaram em juízo, requerendo uma ordem judicial (injunction relief) a impedi-lo de implementar o aludido projeto, ao argumento de que ele estaria agindo de forma maliciosa (acting maliciously) ou meramente emulativa (nesse sentido, a previsão do nosso CC art. 1.228 § 2.º: "São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem"). Pickles defendeu-se, alegando que tinha o direito de fazer o que bem entendesse com sua propriedade, e que se a Companhia não quisesse que ele drenasse a água, teria de generosamente compensá-lo. Entendendo que ele agia maliciosamente, a Companhia se recusou a negociar com Pickles. O caso chegou até a House of Lords.

Agravava, ainda, a situação, o fato de que, no século XIX, Bradford era a cidade que mais rapidamente crescia na Inglaterra, talvez do mundo, na época, fruto da Revolução Industrial. Sua população, que ao final do século XVIII, era em torno de seis mil habitantes, saltou para cerca de cinquenta mil em 1837, passando a enfrentar os problemas dos grandes centros urbanos, como poluição e insuficiência hídrica. Naqueles tempos, a cidade dependia da água que vinha das propriedades da família Pickles.

A decisão
Em primeiro grau, a Prefeitura de Bradford e a Companhia d'Água foram exitosos, obtendo ordem judicial a obstaculizar a drenagem da água, apesar de o juiz reconhecer que não havia autoridade para impedir alguém de exercer seus direitos de propriedade de má-fé. Em sede de apelação, a Court of Appeal reformou a decisão, concluindo que não haveria nada de errado em tirar vantagem de uma posição geográfica mais favorecida, e, seguindo um precedente anterior da House of Lords, assegurou que Pickles poderia extrair as águas de sua propriedade, ainda que com propósitos egoístas ou vexatórios.

Em 1895, em decisão final, a House of Lords manteve o entendimento da Court of Appeal, consignando que Pickles estava apenas exercendo seus direitos de proprietário. Neste precedente, a House of Lords recusou-se a limitar ou qualificar a absolutidade do direito de propriedade (vale lembrar os adágios romanos: qui iure suo utitur neminem laedit e nemo iniuria facit qui iure suo utitur), afirmando que "the landowner had a right to do what he had done whatever his object or purpose might be, and although the purpose might be wholly unconnected with the enjoyment of his own state".[4]

Considerações
Dois pontos poderiam ser levantados em favor da decisão inglesa. Em primeiro lugar, sua época, final do século XIX, em pleno desenvolvimento da Revolução Industrial e da afirmação do liberalismo. Em segundo lugar, que se trataria de concepção típica da Common Law, em oposição à forma como a teoria se desenvolveu na Civil Law. Ambas as afirmações não parecem verdadeiras.

Com relação à época e ao liberalismo, se o argumento fosse verdadeiro, deveria ter tido o mesmo efeito na França, berço da concepção moderna da teoria do abuso de direito, cujo desenvolvimento, na jurisprudência francesa, deu-se exatamente ao longo do século XIX, contemporaneamente, portanto, ao Pickles Case, e, inclusive, a partir de casos que com ele guardavam certa similitude fática.[5] O mesmo se pode dizer com relação ao liberalismo. Ao lado da Inglaterra, a França também vivenciou fortemente o liberalismo da época, sendo seu célebre Code Civil uma expressão disso, inclusive e especialmente com seu art. 544 ("La propriété est le droit de jouir et disposer des choses de la manière la plus absolue, pourvu qu'on n'en fasse pas un usage prohibé par les lois ou par les règlements").[6] Não obstante, apesar do liberalismo da época e do Code Civil, foi justamente na jurisprudência francesa que o abuso de direito se desenvolveu modernamente, ao contrário da Inglaterra. De igual sorte se passa com o argumento da Common Law. Se assim fosse, nenhum país de Common Law adotaria a teoria do abuso de direito, o que não é verdadeiro, haja vista que a teoria é reconhecida nos Estados Unidos, v.g., com a atenção dada às "social needs of the community".

Nesse contexto, em obra monográfica sobre o tema, Michael Taggart nos apresenta um interessante ponto de vista.[7] A vagueza e a incerteza do que seria agir maliciosamente comprometeriam a certeza do direito e a segurança jurídica, valores que ganharam muita força na época – e ainda são sólidos princípios do direito inglês, inclusive da teoria dos precedentes -, especialmente sob a influência de Jeremy Bentham. Deste modo, citando Arthur Goodhart, um cidadão deveria poder saber exatamente quais são seus direitos e seus deveres, sem a subjetiva opinião de outro, mesmo que esse outro seja um juiz. Assim, a abstração do que seria exercitar um direito de forma antissocial conspirou contra a aceitação e o desenvolvimento da teoria do abuso de direito na Inglaterra, a qual poderia, em última análise, transformar-se em um perigoso instrumento nas mãos de demagogos e de revolucionários, nas palavras de H. C. Gutteridge.

Conclusão
É difícil dizer se o caso Pickles teria sido decidido de forma diversa se fosse nos dias de hoje. Mas duas lições emergem desse precedente para o direito brasileiro.

A primeira, a própria reafirmação da necessidade da teoria do abuso de direito, corretamente consagrada no atual CC/2002 art. 187. A segunda, o alerta sobre os perigos que emergem da maior abertura do sistema com a inserção mais profícua de conceitos jurídicos indeterminados, e o risco que isso pode representar para a segurança jurídica e para a sobrevivência dos próprios direitos, garantias e liberdades individuais.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

Thiago Rodovalho é Professor-Doutor da PUC|Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP, com estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Sócio de Rodovalho Feitosa Vollet Advogados.

 

 


[1] Para uma perspectiva da aceitação da teoria no direito estrangeiro, cfr., entre outros, Thiago Rodovalho. Abuso de direito e direitos subjetivos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pp. 123/159; levemente ampliada na edição espanhola: Thiago Rodovalho. Abuso del derecho y derechos subjetivos, Buenos Aires: Ediciones Olejnik, 2017, pp. 128/169.

[2] Michael Taggart. Private property and abuse of rights in Victorian England – The story of Edward Pickles and the Bradford water supply, Oxford: Oxford University Press, 2002, pp. 3 e 145.

[3] Por uma questão de limite de espaço, serão apresentados apenas alguns contornos fáticos do caso, para compreensão da controvérsia. Para um interessante e acurado resgate histórico dos fatos do Pickles Case, v., amplamente, Michael Taggart. Private property, cit., pp. 1/4 (de forma sintética) e, especialmente, 5/47.

[4] Michael Taggart. Private property, cit., pp. 3 e 62.

[5] V. Thiago Rodovalho. Abuso de direito, cit., pp. 104/115. Em alguns casos, inclusive, sem a presença de má-fé (idem, pp. 108/109).

[6] A esse respeito, cfr. Thiago Rodovalho. Obrigações e Riscos, in Jorge Miranda (dir.). O Direito, Lisboa: Almedina, vol. IV, 2014, pp. 866/875.

[7] Cfr. Michael Taggart. Private property, cit., pp. 155/166.

Autores

  • Brave

    é doutorando e mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro da Lista de Árbitros da CAM-FIEP, do CAESP, da CARB, da CAE, CBMAE, do CEBRAMAR, e da ARBITRANET.

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