Segunda Leitura

A Constituição da República e a hipertrofia do Judiciário brasileiro

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21 de janeiro de 2018, 7h00

A Constituição não trouxe 30 anos de democracia. Há trintídio apesar dela. O processo político que pôs fim à ditadura foi de tão boa qualidade que resiste à degradação dos efeitos danosos do texto analítico sobre o processo político. Há tempo para escapar da debacle?

Heresia, heresia! Antes de arder no fogo que consome os hereges, mas não as heresias, muito me aprazeria argumentar e viver o êxtase do comércio do pensamento. O intento é dialético, não erístico. O fluxo de memes é suprema expressão de humanidade. Obstar os fluxos, esmagando cérebros com tacão do poder, desumaniza, suprime a dignidade. Assim, vamos aos debates.

Onde estão sucessores a altura das pessoas-monumentos que conduziram a transição da ditadura para a democracia? Cadê a gente entre 40 e 60 anos que deveria estar conduzindo o Brasil ao patamar engendrado em 1974, 1984 e 1994, anos da vitória do MDB, da Campanha das Diretas e do Plano Real, respectivamente? Ulisses, Tancredo, Thales, Theotonio soam como nomes do Panteão e não de parlamentares de escol. A cada eleição, o Congresso parece ficar pior. Por quê?

O iter para a solução começa pela identificação do problema. Nesse ponto, entendo que a Constituição extensa, juridicamente chamada de analítica, é a causa das dificuldades atuais. O motivo é simples: o texto constitucional trata de todos os assuntos da vida pública e privada. A norma constitucional que resolve alguma tensão social de hoje se torna o empeço amanhã, quando a conjuntura é outra.

Para reformar a Constituição, são necessários 60% dos parlamentares, em duas votações, em cada uma das Casas do Congresso Nacional. Nenhum partido — felizmente — elege sozinho mais de 25% do total de parlamentares. Assim, para fazer emendas constitucionais, quem está no governo carece de “base aliada” e sai à cata de apoios. Remendos mensais à Constituição são condição de governabilidade.

Quando favoráveis os ventos, o PSDB elegeu cerca de 1/5 dos deputados federais. Idem para o PT. Como conquistaram mais 3/5 a ponto de reduzir a oposição a cerca de 20%? Favores em espécie ou in natura foram a tônica. Nas democracias normais, governa-se com 51 a 55% do Parlamento e há forte oposição. No Brasil, hay gobierno, soy a favor. Ser da situação é bom negócio, rende benefícios quantificáveis em dinheiro, e, por força disso, as eleições se tornaram mais caras do que nos Estados Unidos. Tancredo, Juscelino, Ulisses, Lacerda, Bento Munhoz da Rocha, Nabuco Pai e Filho, Rui Barbosa, Zacarias de Góis, Célio Borja, Afonso Arinos e Montoro não disputariam eleição por não disporem de dinheiro ilimitado e de origem nefasta. A sucessão de eleições definidas por dinheiro maculado, e não por ideias, vai apodrecendo o processo político. Mantida a causa, o problema tende a piorar, e os escrupulosos vão sendo alijados do processo.

Em ambiente institucional de má qualidade, a seleção dos aptos leva ao poder os indivíduos que não sentem engulhos com o odor do vale-tudo eleitoral. São os mais adaptados às regras do jogo, mas os menos capacitados a representar valores positivos para todos os segmentos da sociedade.

A percepção perfunctória do eleitorado o leva a procurar indivíduo honesto que resolverá os problemas. Diógenes, com a lanterna acesa durante o dia em busca da pessoa distinta, sabia que o super-homem não existe. O sua peripateia era filosófica, destinada a mostrar que a condição humana é constante em todos os tempos e lugares. Variável, o contexto. Inexiste o pedreiro mágico capaz de trazer luz, salubridade, conforto, a casa mal arquitetada. O povo, com o voto à maneira da lanterna de Diógenes, procura o salvador sem atinar a inexistência.

As elites, no sentido de Mosca e Pareto, detentoras dos bônus sociais, têm o ônus de compreender aspectos da engenharia institucional, algo imaterial e de difícil apreensão por quem vive para sobreviver; massas na conceituação de Elias Canetti. Ambiente institucional que iniba a sanha dos predadores e estimule as pessoas menos agressivas a participar da vida política, é condição para a prosperidade. Esse ambiente é criado pela vontade, não é dado pela natureza.

A constituição é analítica e sem vetores políticos nítidos. Socializante, ma non troppo. Liberal, envergonhadamente. Populista, desabridamente. Todas as forças foram contempladas, e a Assembleia Constituinte resultou em empate. Legislação simbólica, na expressão de Marcelo Neves, que serve para adiar o enfrentamento das lides sociais. A norma existe, mas é irrelevante ou inexequível, mas no momento de sua criação aplacou os ânimos e se ganhou tempo. Procrastinadas, as questões difíceis remanescem e alguém, hora ou outra, deve resolver. Ao esquivar-se do custo político das decisões cruciais, os agentes políticos de legitimidade eleitoral empurraram a sociedade para as portas do Poder Judiciário, a quem é vedado o non liquet.

A má qualidade da política tem feito a lanterna de Diógenes alumiar o Poder Judiciário. A instituição que se aprimorou, afastando-se do patrimonialismo, tem dado respostas alinhadas com os princípios republicanos. Por cumprir minimamente o seu munus, destaca-se em meio a tanta desconfiança. Porém, a situação de hipertrofia do Judiciário é anomalia que consome a credibilidade da própria função judicial. Procurado por quem não encontrou resposta no Legislativo e Executivo, corre o risco de sucumbir ante os efeitos da própria fama, soterrado por volume de processos e por decisões erga omnes que deveriam ser fruto do processo político ordinário, parlamentar.

Decisões em controle direto de constitucionalidade são antidemocráticas e de pobreza hermenêutica a toda prova. O valor do precedente judicial está na amplíssima discussão havida na via difusa. Se o stare decisis vem da via direta, é tão ou mais raso intelectual e axiologicamente do que normas do Parlamento ou do Executivo feitas ad hoc.

O Brasil precisa resolver problemas políticos fundamentais para que todas as instituições funcionem de modo razoável e cada uma cumpra seus deveres de modo moralmente aprovável e com eficiência, sem custos perdulários. Será desagradável o futuro se nele o Judiciário passar dos atuais cinco minutos na Voz do Brasil, para dez ou 20. Governo de juízes não é republicano porque inexiste a transitoriedade no exercício do munus de representação da cidadania. De certa forma, o Judiciário, com sua investidura de longo termo, é resíduo da estabilidade monárquica destinado a dar estabilidade à mobilidade que caracteriza a república. O Judiciário não foi esculpido para estar na proa, e sim na popa.

Dizem que os filósofos têm solução para todos os problemas, mas não sabem atravessar a rua. Então, talvez seja a oportunidade para ensaiar ideias acerca do modo de resolver a imensidão constitucional, que faz o trapézio e não o triângulo representar o sistema normativo.

Oxalá, a prosa domingueira do fim de janeiro seja criativa!

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