Ideias do Milênio

"Por trás de uma boa campanha política também há uma lógica científica"

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21 de janeiro de 2018, 10h02

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Entrevista concedida pelo especialista em estratégia eleitoral no mundo digital Guillaume Liegey ao jornalista Marcelo Lins para o Milênio — programa de entrevistas que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira, com reprises às terças (3h30 e 7h30), às sextas (12h30) e aos sábados (5h30).

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O maior fenômeno da política da Europa nos últimos anos tem nome e sobrenome: Emmanuel Macron. A vitória na eleição presidencial francesa em 2017, à frente do então recém-criado movimento En Marche, ou Em Marcha, impôs uma derrota histórica aos partidos tradicionais e consolidou um jeito novo de se fazer campanha política. Um jeito que tem tudo a ver com Guillaume Liegey. No Brasil, Liegey podia ser chamado de marqueteiro, mas é muito mais do que isso. É um especialista em estratégia eleitoral no mundo digital, com experiência nos Estados Unidos e que criou junto com dois sócios um software que ajuda a mapear o eleitorado nos mínimos detalhes. Guillaume Liegey esteve recentemente no Brasil fazendo contatos de olho nas eleições desse ano, e falou ao Milênio.

Marcelo Lins — Gostaria de começar esta entrevista perguntando, claro, sobre o fenômeno Macron. Você teve uma participação, com seus sócios, na campanha vitoriosa, que para muita gente foi uma surpresa, mas que mudou a cara da política francesa. Se você tivesse de escolher alguns elementos básicos, fundamentais para essa mudança no mapa político francês, o que escolheria?
Guillaume Liegey —
Acho que há dois momentos: um primeiro momento, no verão de 2015, quando houve um jantar para Macron e, ali, pela primeira vez, debatemos em que condições ele poderia se tornar presidente da República. Um jantar meio mágico. Sou fã de West Wing, a série americana, e tive a impressão de estar nela. Foi ali que tudo começou. Depois houve o lançamento do En Marche, o movimento político de Emmanuel Macron. E ele fez algo que nenhum partido político europeu jamais havia feito: decidiu pedir a todos que se uniram ao En Marche para sair a campo e bater às portas para ouvir os cidadãos franceses. Um pouco para responder ao problema de os franceses acharem que não eram ouvidos pelos políticos. Essa coisa de ir bater à porta das pessoas é algo que Macron levou para a eleição francesa, mas que se a gente voltar um pouco no tempo, por volta de 2008, na primeira eleição de Barack Obama, foi exatamente o método usado pelas pessoas em torno de Obama para se aproximar do eleitorado democrata dos Estados Unidos.

Marcelo Lins — Qual foi a influência dos EUA no modelo de campanha de Macron? Porque sabemos que você e seus sócios, Pons e Muller, estudaram nos Estados Unidos. Qual é a influência do 'jeito americano de fazer política' no trabalho de vocês?
Guillaume Liegey —
Nós franceses não gostamos de dizer que os americanos nos influenciam. Mas é verdade que em 2008 eu estudava em Harvard e me tornei voluntário da campanha de Obama. Bati nas portas para Barack Obama, com Arthur Muller e Vincent Pons, e ali compreendi, falando com muita gente, que uma campanha moderna, nos Estados Unidos em 2008, é a combinação de três coisas: dados, tecnologia e o fator humano. A ideia de ver as pessoas frente a frente. Importamos isso para a França. Primeiro, para François Hollande. Hollande foi o primeiro a organizar uma campanha em campo, em 2012, na eleição presidencial. Eu dirigi essa campanha com Arthur e Vincent. Foi a primeira vez que um grande partido europeu fez isso. E Emmanuel Macron aperfeiçoou isso.

Marcelo Lins — Mas qual a diferença de trabalhar com o Partido Socialista, com uma base histórica na política francesa, e com o En Marche, um movimento novo?
Guillaume Liegey —
Com um grande partido temos uma vantagem, os filiados, militantes acostumados a sair em campo. É um pouco mais fácil mobilizá-los. Em 2008, conseguimos mobilizar 80 mil voluntários para bater nas portas por Hollande. Eles falaram com 10% dos cidadãos franceses. Algo inédito. A vantagem de um partido estabelecido é ter uma base sobre a qual trabalhar. O inconveniente é que é difícil mudar os hábitos. En Marche é todo novo. Partimos do zero e pudemos inventar tudo.

Marcelo Lins — Se você tivesse de fazer uma divisão em porcentagens, mais ou menos, qual é a importância da tecnologia, do big data, e a do contato humano nessa campanha?
Guillaume Liegey —
Agora estamos cara a cara. Eu dei uma entrevista para a Globo, ao [Pedro] Bial. Eu estava no Skype, então não foi tão boa. Cara a cara é sempre melhor. Na política é igual. O fato de ir ver as pessoas cara a cara… Foi provado cientificamente, por experimentos feitos primeiro nos EUA e depois na Europa, na França, que ir ver as pessoas é muito mais eficaz do que o e-mail, o telefone, a TV e as redes sociais para mudar a opinião de alguém. Por trás da ideia de que uma boa campanha são os dados, a tecnologia e o humano, há uma lógica científica, há experimentos. Isso vem de algum lugar. E digo sempre que são as três coisas juntas. Se um candidato compra o meu software, fico contente porque minha empresa cresce, é ótimo. Mas sem alguém que use esse software e vá ao encontro dos cidadãos, ele não serve para nada.

Marcelo Lins — E aproveitando, ele falou aqui de um software que ele desenvolveu, que é um software chamado 50+1, vale a pena a gente dar uma olhadinha e saber o que é esse software.

50+1 é um programa que processa todos os dados disponíveis sobre uma determinada região. Números da economia, resultados de eleições anteriores, questões sociais, anseios da população. Essas informações alimentam um modelo matemático que orienta a atuação de candidatos em eleições e formuladores de políticas públicas.

Marcelo Lins — Guillaume, gostaria de saber sobre o software 50+1: o que ele é exatamente e o que faz a diferença entre dois clientes que o compram. Por que um deles pode ter sucesso e outro não, já que usam o mesmo software, que parte do mesmo princípio e das mesmas informações?
Guillaume Liegey —
A diferença entre dois candidatos é o candidato em si. Ou seja… Emmanuel Macron, por exemplo, estava muito dedicado à própria campanha. Ele queria muito que as pessoas saíssem a campo e dava o exemplo. Quem não fizesse isso teria menos voluntários, menos trocas com os eleitores e isso representa menos votos. É matemática. Não podemos esquecer que política é software, big data, mas também o humano, emoção. Eu disse a Macron na primeira vez em que jantamos juntos para preparar a campanha dele: 'Se quer ser presidente, seu discurso deve fazer as pessoas chorarem'. É muito importante. Obama me fez chorar, por isso participei da campanha dele.

Barack Obama: “Esta noite… por causa do que nós realizamos neste dia, nesta eleição, neste momento definitivo, a mudança chegou à América”.

Marcelo Lins — O que faz desse candidato, moldado no desejo das pessoas, em seus questionamentos, em suas angústias também, o que é que pode fazer desse candidato um bom presidente?
Guillaume Liegey —
Há um detalhe importante: não vamos às pessoas para dizer o que querem ouvir. Não é essa a ideia. A ideia é ir a campo para entender como as pessoas veem a França, ou como veem o Brasil, para além do que podemos ver na TV ou em pesquisas. Não estamos ali para dar o que querem, mas para entender como veem o país, para construir bons discursos que toquem as pessoas. Há essa noção. Então se pego Emmanuel Macron, hoje ele é presidente e precisa mudar a França. Mudar a França é complicado. É mais fácil ser eleito presidente do que mudar a França.

Emmanuel Macron: “A responsabilidade que vocês me atribuíram é uma honra”.

Guillaume Liegey — Mas o problema não é a falta de ideias. Sabemos o que é preciso para mudar. O problema é que ninguém consegue viabilizar as ideias e, para isso, estou convencido, se formos capazes de ouvir os franceses, de entender como percebem as reformas, aí dá para vender melhor. É como quando temos uma start-up. Precisamos ouvir os clientes. Se não os ouvimos, desenvolvemos um software ruim, que ninguém compra. Aconteceu conosco há três anos. Quase falimos por deixar de ouvir os clientes. Não tínhamos saído do escritório. O presidente também precisa sair do escritório se quer vender as reformas dele.

Marcelo Lins — Então, já que falamos da importância de ouvir as pessoas, é isso que transforma essa fórmula em uma fórmula que pode ser aplicada em praticamente todas as democracias. Porque a sua empresa também tem clientes na Espanha, na Itália e até na Alemanha. É mais ou menos essa fórmula, de transformar um pouco os eleitores em clientes, que faz com que você consiga implementar o modelo em vários países?
Guillaume Liegey —
Cada país tem sua cultura específica. Não sei se funcionaria ir de porta em porta no Brasil. Mas o contato direto com eleitores pode ser feito no Brasil. Através das igrejas, dos clubes esportivos, do trabalho, há muitas maneiras de fazer isso. É preciso sempre adaptar a receita às especificidades locais. Quando levamos a campanha de Obama para a França, a adaptamos ao contexto francês. Mas tenho certeza de que a combinação dados-tecnologia-humano é uma fórmula vencedora em qualquer caso.

Marcelo Lins — Guillaume, gostaria que você contasse um pouco quais as razões da sua vinda ao Brasil, o tipo de contato que você teve e o que já aprendeu sobre o nosso universo cultural. Há paralelos possíveis a fazer com a França? A frustração com a política que os europeus experimentaram nos últimos anos foi encontrada por aqui? O que te trouxe ao Brasil?
Guillaume Liegey —
O que entendi, a partir das conversas que tive nesta semana, é que há uma crise política no Brasil com suas especificidades, mas pontos em comum com a França. Um desses pontos é a falta de confiança na classe política. Há grandes partidos que não conseguem se renovar e parece que há um espaço no centro. Isso é bem parecido com a situação francesa. Na França também, antes de 2017, os cidadãos não se sentiam representados, não se sentiam ouvidos pelos políticos. E nisso acho que há semelhanças, é a primeira coisa. A segunda é a questão: 'O Brasil é um mercado para a minha empresa?'. Nós somos hoje uma empresa europeia, temos a ambição de ser uma empresa global, e fomos contratados por pessoas interessadas na nossa tecnologia. Nesse momento, surgiu uma pergunta simples: 'Será que nossa tecnologia pode funcionar no Brasil?'. E para isso precisamos de dados. Fizemos pesquisas e vimos que, sim, funciona. Podemos fazer no Brasil exatamente o mesmo tipo de análise e podemos usar nosso software do mesmo jeito que usamos na Europa. Porque os dados existem. E por isso estou aqui, para compreender um pouco melhor, no local, quais são as formas de se fazer uma campanha no Brasil, para encontrar pessoas, ver o interesse delas. Não vim ensinar como fazer campanha no Brasil, mas para entender como elas são feitas e, a partir disso, formar uma opinião.

Marcelo Lins — É verdade, há um espaço no centro no Brasil para a construção de vários consensos sobre temas importantes, que nem foram muito discutidos nos últimos anos. Ao mesmo tempo, enquanto esse espaço não é preenchido, o que se vê é o crescimento de movimentos radicais, sobretudo à direita, mas também à esquerda, com o populismo. Então, essa falta de atores mais fortes no centro poderia também, para você, alimentar os radicais dos dois lados do espectro político?
Guillaume Liegey —
Eu pensaria no inverso. Acho que há uma oportunidade, bem parecida com a oportunidade enxergada por Macron. Ele viu que havia uma polarização à esquerda e à direita. E pensou: 'Tem um espaço no centro'. Mas isso não basta para ganhar uma campanha. Isso o deixou convencido a se lançar. E, quando a gente entra numa campanha, controla um terço do destino, no máximo. Um terço. E Macron otimizou isso. Quando a gente cria uma empresa, uma start-up, são menos de 5% as chances de sucesso. Então um terço não é mau como probabilidade. Acho que há uma oportunidade no Brasil estranhamente parecida com a que Macron identificou. Depois, é preciso se jogar. É preciso trabalhar, mobilizar as pessoas para convencê-las a trocar com o eleitorado brasileiro, e isso exige trabalho.

Marcelo Lins — Volta e meia ressurge o tema da importância dos dados, das informações sobre o eleitorado. Em relação a isso, quero perguntar, o acesso a esses dados na França é fácil? São dados públicos ou é preciso comprar bancos de dados? E vocês acham que dá para fazer a mesma coisa no Brasil?
Guillaume Liegey —
É uma mistura das duas coisas. Há dados que são públicos na França e também no Brasil. Mas também compramos bancos de dados e pesquisas, que incorporamos ao nosso modelo de previsão, mas nosso valor agregado, e esse é o trabalho do meu sócio Vincent Pons, o chefe do setor de ciência de dados, professor de Harvard… Ele e toda a equipe de dados baseada em Paris desenvolvem algoritmos que funcionam, algoritmos de projeção para identificar, a partir desses dados todos, e responder à pergunta: 'Onde estão os eleitores que posso convencer e qual o perfil deles?'.

Marcelo Lins — A gente viu, na campanha eleitoral que elegeu Donald Trump nos EUA, que os democratas, principalmente, usaram muitas pesquisas e todas as probabilidades indicavam uma vitória de Hillary Clinton, mas o que aconteceu foi que eles não viram chegar o fenômeno Trump. Foi erro das pesquisas ou um mau uso delas?
Guillaume Liegey —
Alguns institutos de pesquisa fazem um ótimo trabalho, outros fazem um trabalho ruim. É como em qualquer coisa. Na França, trabalhamos com institutos de pesquisas excelentes. No Brasil, certamente há excelentes e outros ruins. Para voltar a Trump, para mim a questão foi a interpretação das campanhas. O que aconteceu foi que havia sinais em campo que chegavam à equipe de Hillary no Brooklyn e diziam: 'Cuidado, tem algo estranho'. Mas preferiram ignorá-los porque estavam certos da vitória. É normal. Durante a campanha ficamos cansados, trabalhamos demais, e se alguém diz 'cuidado!', a gente nem presta atenção. Um fenômeno que ignoraram foi Nate Silver, do site Five-Thirty-Eight. No dia da eleição, o site dizia que Trump tinha 28% de chance de ganhar. Muita gente pensou: 'Ótimo, Hillary ganhou!'. Não. Eu moro em Londres. 28% é a probabilidade de chover amanhã em Londres. Ou seja, pode chover. E chove com frequência!

Marcelo Lins — Estamos quase no fim da entrevista, mas quero fazer uma pergunta delicada que tem a ver com o financiamento desse trabalho. Um dos grandes problemas do mundo político no Brasil, vimos isso esses últimos anos com todas as investigações, todos os escândalos da política brasileira, é o dinheiro sujo que chega às campanhas. Como fazer para se proteger desse tipo… de drama, de escândalo?
Guillaume Liegey —
Quero dizer que só vim com uma mala cheia de roupas. Não tenho outra mala para levar outra coisa para a França. Pelo que entendi, o financiamento de campanha está sendo reformulado: aumento do financiamento público e proibição de financiamento privado, uma mudança que ocorreu na França há uns 20 anos. Isso não é um problema. Há dinheiro na política. A questão posta para um novo movimento que se lance agora é: 'Como arrecadar dinheiro?'. Macron, quando se lançou candidato, tinha zero euro, nada. Alguém disposto a lançar um movimento político no Brasil teria zero financiamento público, já que não teria representação. Então é preciso arrecadar e, para isso, é preciso respeitar as regras. Macron provou que é possível arrecadar muito dinheiro respeitando as regras. Esqueci de mencionar uma terceira dimensão do sucesso da campanha dele que foi a arrecadação de fundos. Macron levantou quatro vezes mais do que o segundo candidato que mais arrecadou fundos na política francesa em todos os tempos. Ele arrecadou 12 milhões de euros, e Alain Juppé, o segundo, três milhões de euros. Há muita coisa a observar nos EUA como inspiração, mas dá para fazer isso de forma legal e limpa. Minha empresa só aceita dinheiro legal. É simples.

Marcelo Lins — Bom, existem as ferramentas: o software, o uso de dados, o porta a porta, nada disso é novidade na política, já foi assimilado. O que você vê, num futuro próximo ou mesmo um pouco mais adiante, como novidade nesse campo?
Guillaume Liegey —
Acho que sempre existirá a dúvida sobre como usar melhor os dados, as redes sociais. Será que chegaremos ao ponto de integrar as redes sociais aos modelos de previsão? Isso é algo que minha empresa avalia. Nossa equipe de pesquisa e desenvolvimento avalia isto: como analisar automaticamente as conversas nas redes sociais e integrá-las aos modelos de projeção. Isso é a primeira coisa. Depois, tem a questão de analisar um volume cada vez maior de dados mais rápido. Digerir o mais rápido possível a informação colhida em campo. É um pouco técnico, mas insisto em voltar a duas coisas: ir a campo ouvir as pessoas não deve parar na noite da eleição. Pouca gente entendeu isso. Isso é uma coisa. A segunda é que, além das ferramentas, o discurso, a personalidade do candidato, os valores que ele defenderá também são fundamentais. E, mais uma vez, para ser eleito presidente, uma das precondições é fazer um discurso que, em algum momento, emocione as pessoas. Falei em fazer chorar, mas pode fazer rir também, claro. As ferramentas são ótimas. Temos um super-software e estou muito satisfeito com ele, mas não dá para ser ingênuo. Não é uma varinha mágica. Precisa do apoio de outras coisas.

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