Embargos Culturais

Claude Lévi-Strauss e o desencanto com a Justiça e com o Direito

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

21 de janeiro de 2018, 7h05

Spacca
Claude Lévi-Strauss (1908-2009), antropólogo belga, um dos pais fundadores do estruturalismo, viveu no Brasil, de 1935 a 1939. Lecionou na então criada Universidade de São Paulo. Viajou pelo país, com especial atenção nas comunidades indígenas, que observou e sobre as quais escreveu. Os registros de suas observações e pesquisas lhe garantiram uma posição privilegiada no quadro teórico e pragmático da Antropologia do século XX.

Posteriormente professor de Antropologia Social no Collége de France, Lévi-Strauss é um dos nomes mais importantes do cenário cultural contemporâneo. Testemunha de um tempo no qual o saber se limitava a um saber cada vez fragmentado (o mundo dos especialistas), Lévi-Strauss apostou no equilíbrio entre o sensível e o inteligível[1]. Sua trajetória intelectual é o ponto de inflexão para o qual converge um grupo heterodoxo de pensadores de nossa época: Sartre, Dumézil, Beauvoir, Jakobson, Barthes, Lacan e Foucault. Lévi-Strauss é referência de uma nova idade do ouro do pensamento.

Com agudo interesse nas artes em geral, na música e na poesia em particular, Lévi-Strauss exemplifica uma espécie em extinção. Fez parte de seleto grupo de pessoas de fortíssima sensibilidade, para quem, mais do que tudo, o que vale é a plena realização do ser humano, o que se faz substancialmente em um contexto de contato com as ideias que tocam a alma. Porque, para quem pensa, a alma efetivamente existe; a alma não é apenas um fragmento mais sutil da matéria.

Lévi-Strauss nos deixou um testamento espiritual, Tristes Trópicos, um livro de memórias. Em Tristes Trópicos, esse intelectual belga nos conta, entre outros, o que viu, fotografou, pesquisou, sentiu e viveu em suas andanças pelo Brasil da década de 1930[2]. É também um delicioso livro de viagens, e ao mesmo tempo um delicioso livro de memórias.

Lévi-Strauss, entre outros assuntos, conta-nos como reagiu ao convite para lecionar em São Paulo. Explica como um europeu sentia um país antípoda, evocando um imaginário Brasil no qual havia apenas “feixes de palmeiras torneadas, ocultando arquiteturas estranhas, tudo isso banhado num cheiro de defumador (…)”[3]. Intuiu que, menos do que um percurso, uma exploração é uma escavação[4]. É um livro fundamental para se conhecer o Brasil, ainda que reconhecidamente eurocêntrico e colonialista. Porém, é um livro que demonstra a universalidade e a fragilidade dos arranjos institucionais humanos, a exemplo da Justiça. Lévi-Strauss era um desencantado com o a Justiça e com o Direito. Como antropólogo, sabia como somos de verdade, e o que ocorre no estado puro de nossas maldades e contradições.

Conta-nos que, saído do segundo grau, um professor o convenceu a estudar Direito. Lévi-Strauss registrou que há uma curiosa fatalidade que pesa sobre o ensino das leis[5]. É que, preso entre o museu de velharias da Teologia e o magazine de novidades do Jornalismo, o Direito não consegue se situar em um plano único, sólido e objetivo[6]: está perdido entre um passado que não compreende e um presente que não quer compreender. O jurista, segundo Lévi-Strauss, parece um animal que tenta mostrar uma lanterna mágica para um zoólogo[7]. A metáfora sugere representação negativa muito forte. Lévi-Strauss então mudou seu roteiro de estudos, concentrando-se na Filosofia.

Esse desconforto com o Direito foi posteriormente confirmado em sua experiência empírica. Era um observador. Há eloquente passagem dos Tristes Trópicos, na qual Lévi-Strauss descreve um julgamento que presenciou quando esteve na Martinica. Um camponês fora condenado a oito anos de prisão porque mordeu a orelha de um desafeto. Segue o relato:

“Um dia, entrei na sala do tribunal que se encontrava em sessão; era minha primeira visita a uma corte, e continuou sendo a única. Julgava-se um camponês que, durante uma rixa, arrancara com uma dentada um naco de orelha de seu adversário. Réu, querelante e testemunhas expressavam-se num crioulo fluente cujo cristalino frescor, em tal lugar, tinha algo de sobrenatural. Fazia-se a tradução para três juízes que suportavam a duras penas, no calor, as togas vermelhas e as peles cuja beleza a umidade ambiente murchara (…) Em exatos cinco minutos, o negro irascível viu-se condenado a oito anos de prisão. A justiça estava e permanece associada em meu espírito à dúvida, ao escrúpulo e ao respeito. Que se possa, com tal desenvoltura, dispor em tempo tão breve de um ser humano deixou-me estarrecido. Eu não podia admitir que acabava de assistir a um fato real. Ainda hoje, nenhum sonho, por fantástico ou grotesco que seja, consegue me imbuir de tamanha sensação de incredulidade”[8].

A condenação de um camponês a oito anos de prisão, por causa de uma mordida na orelha de um desafeto, em uma discussão, em julgamento que durou poucos minutos, é certamente episódio que não ocorreu apenas na Martinica, e que também não ocorreu apenas com o testemunho de Lévi-Strauss. Essa iniquidade é recorrente e comprova a prática dos juristas de nos afastarmos do mundo real. O jurista tem soluções para problemas que não existem. E não tem soluções para os problemas efetivamente existentes. Contenta-se em justificar os arranjos institucionais existentes, como se fossem naturais e necessários, e não contingentes e arbitrários. Não se condena, em poucos minutos, a oito anos de prisão, um mordedor de orelhas. É só o uso das fórmulas distante da realidade que justifica tamanha iniquidade.

No mundo das fórmulas, insiste-se no uso de uma linguagem que se afirma ser de especialistas, dita “técnica”, mas que “só serve para criar um abismo entre estes [especialistas] e leigos, para proteger e ‘distinguir’ o especialista dentro de uma linguagem hermética para iniciados e permitir o uso do conhecimento como mero ‘fetiche’ do mesmo modo como se utiliza o dinheiro na vida social: para ‘comprar’ reconhecimento e legitimar privilégios”[9]. Justifica-se o que existe, e o que existe são privilégios e interesses corporativos.

Como Dante de algum modo cantou na Divina Comédia, o lado mau da humanidade existe preponderantemente no inferno[10]. Porém, também de acordo com o poeta italiano, há ao mesmo tempo um lado bom, bem-intencionado, afetivo e sensível entre nós, o que nos define como a imagem de Deus. Este lado estaria no céu, onde talvez prepondere o intelecto. Lévi-Strauss é exemplo dessa preponderância intelectual, e a injustiça que o horrorizou está menos no inferno de Dante do que ao nosso redor e à nossa vista.


[1] Cf. DOSSE, François.História do Estruturalismo, O Campo do Signo, Volume I. Bauru: EDUSC, 2007, p. 39. Tradução de Álvaro Cabral.
[2] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Tradução de Rosa Freire D’Aguiar.
[3] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 45.
[4] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 46.
[5] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 51.
[6] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., loc. cit.
[7] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., loc. cit.
[8] LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos, cit., p. 30.
[9] SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira ou como o país se deixa manipular pela elite, São Paulo: LeYa, 2015, p. 13.
[10] A imagem é colhida em fascinante estudo de Charles Edward Andrew Lincoln IV, Law and Catastrophes in Shakespeare’s King Lear, disponível em www.academia.edu.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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