Opinião

Obsolescência planejada vs a perda de rendimento do iPhone

Autor

  • Felipe Caputti

    é advogado especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá (Unesa/RJ) secretário-geral da Comissão de Direito à Saúde - Regional Sudeste – da Associação Brasileira dos Advogados (ABA).

20 de janeiro de 2018, 6h30

Em dezembro de 2017, a Apple foi acusada de reduzir o rendimento do processador de seus iPhones[1].

Constatou-se, após comparações das taxas de desempenho de diversos telefones da marca, uma correlação direta entre a queda de performance e a deterioração da bateria, sem a indicação de qualquer fator externo que justificasse a queda.

Questionou-se se a Apple não estaria, intencionalmente, reduzindo o desempenho dos processadores dos iPhones como mecanismo para impor o descarte do antigo e a aquisição de um novo (obsolescência programada).

Diante dessas acusações, a Apple explicou, em nota pública[2], que as “baterias recarregáveis são componentes consumíveis que perdem eficiência à medida que envelhecem quimicamente e sua capacidade de manter a carga diminui”. Afirmou, ainda, que realizou atualizações no software dos iPhones para melhorar o gerenciamento de energia e prolongar a vida útil do produto.

A empresa reconheceu a correlação entre a queda de desempenho e desgaste natural da bateria, sendo que as atualizações de gerenciamento de energia ocorreram exatamente para prolongar a utilidade do produto, evitando seu desligamento automático e o bloqueio de funções.

Obsolescência programada
O caso traz à tona a discussão da obsolescência programada na sociedade de consumo. Sem pretensão de esgotar o tema, iremos trazer alguns aspectos legais e jurisprudenciais sobre o debate.

Como o nome faz pressupor,é uma estratégia mercadológica para tornar um produto ultrapassado, prática constante no sistema capitalista para impor o ato de consumo.

A obsolescência pode ser técnica ou operacional, quando há uma limitação intencional da operabilidade do produto, podendo ocorrer, por exemplo, pelo encurtamento da sua vida útil (período de durabilidade) e pela redução no fornecimento de componentes de reposição; ou psicológica, quando há o lançamento de produtos mais modernos que incitam o consumidor à aquisição.

No Brasil, com a inexistência de legislação específica e a inexpressiva jurisprudência sobre o tema, cabe a doutrina e a alguns precedentes contribuírem para o desenvolvimento deste debate.

O Código de Defesa do Consumidor reconhece a vulnerabilidade do consumidor, dispõe sobre o termo inicial do prazo decadencial quando houver vício oculto[3] e impõe aos fornecedores o dever de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição (artigo 4º, I; artigo 26, parágrafo 3º, e artigo 32).

Entretanto, o referido diploma também positiva a necessidade de harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização da proteção do consumidor com o imperativo de desenvolvimento econômico e tecnológico, conforme os princípios da ordem econômica (artigo 170 da Constituição). Ademais, o parágrafo 2º do artigo 12 do CDC dispõe que o produto não será considerado viciado ou defeituoso pelo simples fato de outro de melhor qualidade ter sido colocado no mercado.

Se de um lado há a proteção do consumidor contra os atos ilegítimos de obsolescência programada, de outro há a legitimidade e necessidade na busca pelo desenvolvimento econômico e tecnológico, sendo natural que produtos novos e mais avançados surjam no mercado.

Portanto, apesar da repercussão do caso Apple, é cotidiano em qualquer país capitalista o lançamento de produtos mais avançados e com diversas funcionalidades, ainda que parcialmente incompatíveis com modelo anterior. Não há maiores contestações acerca da validade dos lançamentos de novos modelos do sistema operacional, e respectivas atualizações, do Microsoft Windows[4], dos lançamentos de Iphone[5], realizado pela Apple, ou dos lançamentos anuais de automóveis.

A título ilustrativo, vejamos as atualizações do Microsoft Word, software de processamento de textos e documentos. As respectivas atualizações sempre são compatíveis com os arquivos criados pelos sistemas operacionais das versões anteriores. E, por não ocorrer uma imposição de aquisição do novo produto, não há inutilização intencional do anterior, não havendo ilegalidade no lançamento.

Este entendimento tem sido encampado pela jurisprudência.

“DIREITO DO CONSUMIDOR. ‘REESTILIZAÇÃO’ LÍCITA DE PRODUTO. VEÍCULO 2007 COMERCIALIZADO COMO DE 2008. LANÇAMENTO EM 2008 DE PRODUTO REFORMULADO, COMO SENDO MODELO 2009. PRÁTICA COMERCIAL ABUSIVA E PROPAGANDA ENGANOSA NÃO VERIFICADAS. 1 – Lícito ao fabricante de veículos antecipar o lançamento de um modelo meses antes da virada do ano, prática usual no mercado de veículos. 2 – Não há prática comercial abusiva ou propaganda enganosa quando o consumidor, no ano de 2007, adquire veículo modelo 2008 e a reestilização do produto atinge apenas os de modelo 2009, ou seja, não realizada no mesmo ano. Situação diversa da ocorrida no julgamento do REsp 1.342.899 (REsp 1330174/MG. Relator: Sidnei Beneti. 3ª Turma. DJe 04/11/2013)".

"[…] ação de obrigação de fazer, cumulada com reparação por danos morais, na qual alegou a autora possuir um telefone modelo Iphone 3G, cuja versão do sistema operacional é a 4.2.1. […] a Autora percebeu que o aplicativo que mais utilizava, chamado Whatsapp, não funcionando. Sustentou que não conseguiu adquiri-lo novamente junto à loja virtual da empresa-ré, pois seu aparelho, deveria funcionar como software IOS 4.3. 3. […] com o passar dos dias, também percebeu que uma série de outros aplicativos como Facebook, Facebook Messenger, Mercado Livre, Linkedin, Localização, Windows Live, etc., não mais funcionaram, visto que necessitavam da versão IOS 4.3. ou superior para operarem. […] novo software lançado pela ré tornou o iPhone 3G inutilizável, o que configura inegável dano ao consumidor. 7. É lícito à ré lançar novos aparelhos e novos programas no mercado; mas não é lícito tornar inutilizáveis seus smartphones anteriores e com pouco tempo de uso, razão pela qual tem o dever de fornecer um produto à autora que essa possa utilizar (Recurso Cível 71004479119, 1ª Turma Recursal Cível, Relator: Lucas Maltez Kachny, 22/04/2014)".

Observa-se que o tema tem chegado aos tribunais nacionais e, apesar da aparente ilegitimidade da obsolescência programada, é inquestionável que tal estratégia está intimamente ligada ao sistema capitalista e, com certas balizas, tem sido admitida.

Portanto, apesar de questionável a quantidade de iPhones lançados entre 2007 e 2017, sob o ponto de vista da obsolescência psicológica, o caso aqui enfrentado é da redução da taxa de desempenho do processador de acordo com o desgaste natural bateria.

Neste ponto, não vislumbramos a prática da obsolescência. Ao contrário, há atuação voltada para a manutenção e prolongamento da vida útil do bem de consumo, não havendo dano à incolumidade econômica do consumidor.

Agora, é incontestável a flagrante violação ao direito de informação, pois tal redução de desempenho deveria ser de conhecimento público e de todos os consumidores do produto.

Em uma análise preliminar, verifica-se que a conduta da Apple se enquadra no instituto da publicidade enganosa por omissão, pois deixa de informar dados essenciais do produto, tais como seu desempenho e durabilidade (artigo 37, parágrafo 3º, do CDC), sem prejuízo da apuração de infração criminal e administrativa desta conduta (artigo 66 do CDC e artigo 19 do Decreto 2.181/97).

A obsolescência programada é um tema complexo e com diversas especificidades, sendo necessária uma devida regulamentação por parte do Poder Público, inclusive quanto ao imperativo do desenvolvimento sustentável (produção x “descartalização”).

[1] https://elpais.com/tecnologia/2017/12/21/actualidad/1513872486_976724.html> e <https://elpais.com/tecnologia/2017/12/29/actualidad/1514505992_287703.html>. Acessado em 09.01.2018.

[2] <https://www.apple.com/br/iphone-battery-and-performance/>. Acessada em 10.01.2018.

[3] O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a aferição do vício oculto ocorrerá com base no critério de vida útil: “[…] o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio […]. 6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto […]. […] o Código de Defesa do Consumidor, no parágrafo 3º do artigo 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. 8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, […]. 9. Ademais, […] venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (artigo 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum” – STJ. REsp 984.106/SC. Relator(a): Ministro Luis Felipe Salomão. 4º Turma. DJe 20/11/12.

[4] Entre agosto de 1995 e 2017, foram lançados os sistemas operacionais do Windows 95, Windows 98, Windows XP, Windows Vista, Windows 7, Windows 8, Windows 10.

[5] Entre junho de 2007 e 2017, foram lançados o iPhone, iPhone 3G, 3GS, 4, 4S, 5, 5C, 5S, 6, 6 Plus, 6s, 6s Plus, 7, 7 Plus, 8, 8 Plus e X.

 

*Título alterado às 10h47 do dia 26 de janeiro de 2018 a pedido do autor.

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