Diário de Classe

Brasil espera seu resgate por uma frota de barquinhos pesqueiros

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20 de janeiro de 2018, 7h00

No recém-lançado O Destino de uma Nação, filme de Joe Wright sobre os primeiros dias de governo de Winston Churchill, acompanhamos a luta do famoso estadista contra os políticos de seu país que tentavam negociar com Hitler. Isolado em seu próprio partido, teve de buscar apoio popular para uma operação (sem precedentes) de resgate ao Exército britânico.

Com embarcações civis, a operação Dynamo conseguiu resgatar grande parte do contingente militar cercado pelas tropas nazistas na França, o que foi fundamental para virar a guerra. O ministro das Relações Exteriores, principal adversário político de Churchill, termina por reconhecer no filme: “Ele mobilizou a língua inglesa e a mandou para o campo de batalha”. Trata-se de licença poética do cineasta, pois a frase só teria sido dita muito tempo depois, não pelo Lord Halifax, mas pelo jornalista americano Edward R. Murrow, e tornada famosa pelo presidente John F. Kennedy.

Em todo caso, o elogio faz jus a seu talento e sintetiza bem o papel que desempenhou na Segunda Guerra. Churchill era um orador admirado. Seus discursos durante a guerra se tornaram clássicos. Além disso, sua obra escrita é maior do que a de Shakespeare e Dickens juntas[1]. Churchill ainda publicou uma ambiciosa História dos Povos de Língua Inglesa e chegou a ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Grande parte de seu sucesso pode ser atribuído à capacidade de articular os sentimentos, as crenças e os princípios do povo britânico, de vertê-los em palavras e ações naqueles momentos extremos[2].

Depois da guerra, outro inglês mobilizaria a linguagem em busca de um fundamento comum para a vida em sociedade. Herbert Hart foi o herói dessa pequena revolução, menos dramática, mas muito importante para os juristas. Depois de tamanha crise, onde amparar o Direito? Como não nos rendermos ao total ceticismo? Como não denunciarmos as categorias jurídicas como meras ficções, depois de constatarmos a fragilidade do texto legal ante a interpretação? Atento ao giro linguístico da Filosofia, Hart busca o fundamento para o Direito naquilo que já funciona: na linguagem, no uso, nas práticas verbais convergentes que fazemos sobre o Direito. Já nos entendemos em alguma medida sobre o que é uma obrigação jurídica. Essa seria a base da “regra de reconhecimento” e toda sua elegante explicação do sistema jurídico. Com isso, Hart supera as deficiências do modelo teórico anterior, preso às regularidades de comportamento, à figura central de um soberano e ao Direito como mero comando amparado em sanção. Claro, a ambição científica de Hart era apenas explicitar esses novos fundamentos, descrevê-los sem tentar dizer se eram bons ou ruins. Isso também implicava ir somente até onde os fundamentos operam de maneira clara, reconhecendo zonas de penumbra na linguagem que são preenchidas pela discricionariedade do juiz.

Pouco depois, um aluno americano de Hart chamado Ronald Dworkin tentaria radicalizar essa guinada da Teoria do Direito rumo ao plano dos sentidos[3]. Sua teoria interpretativista apelaria para o caráter avaliativo dos conceitos jurídicos. Diante deles, o intérprete estaria imediatamente convocado a se posicionar, a justificá-los, a tentar apresentá-los sob a melhor luz. Isso forçaria os agentes jurídicos a irem além da identificação de regras convencionais; estariam forçados a lidar com padrões interpretativos mais profundos e complexos, os princípios, que operam mesmo nos casos mais difíceis, constrangendo a tomada de decisão pelos juízes.

Podemos dizer que Dworkin mobilizou a língua inglesa e a mandou para a guerra contra a discricionariedade judicial. Para ele, podemos e devemos controlar a interpretação que as autoridades fazem do Direito. É o que a crítica hermenêutica do Direito, movimento fundado por Lenio Streck, vem tentando fazer no Brasil[4]. Vários outros juristas contemporâneos prescreveram algo semelhante, por outros caminhos filosóficos. De alguma forma, eles apelam para uma comunidade de intérpretes do Direito como instância de controle, por meio da qual se legitima a produção e aplicação das leis num Estado Democrático. Afinal, só o debate público pode vencer a tirania, o exercício arbitrário do poder, a violência contra os princípios constitutivos de nossa comunidade.

É algo muito tênue, mas é o que temos para nos amparar neste ano difícil. Temos pela frente uma série de julgamentos históricos para nosso país. Teremos também as eleições mais imprevisíveis desde que foi promulgada a Constituição de 1988. Independentemente de corrente ideológica, precisaremos identificar os princípios comuns na nossa história institucional, aquilo que não estamos dispostos a negociar, as bases democráticas para fazer frente aos pequenos tiranos de ocasião.

Gostaríamos de ter uma solução mais concreta, um plano de ação, um desenho institucional, mas os abusos nos Três Poderes e a desorganização de grandes atores jurídicos e políticos nos forçam a voltar ao básico, à simples convocação para conversar. Não há procedimento mecânico para nos tirar dessa, só nós mesmos. Fosse a operação Dynamo no Brasil hoje, talvez alguém propusesse judicializá-la, deferindo-se pedido liminar para impedir a posse do ministro Halifax, seguida de um fórum de enunciados para esclarecer em quais praias Churchill estava convocando para a luta. Na situação em que chegamos, o Brasil está esperando o resgate por uma frota de barquinhos pesqueiros.


[1] Como lembra Boris Johnson, na biografia O Fator Churchill (São Paulo: Planeta do Brasil, 2015).
[2] Embora não possamos nos aprofundar neste espaço, não poderíamos deixar de registrar: o filme idealiza a figura de Churchill, adoçando seus defeitos e fugindo de complexidades para apresentá-lo sempre como um herói lutando contra o obscurantismo.
[3] Discutindo isso e trazendo mais referências: PORTO MACÊDO JR., Ronaldo. Do xadrez à cortesia: Dworkin e a Teoria do Direito contemporânea. São Paulo: Saraiva, 2013. passim.
[4] Para um estudo aprofundado sobre as relações entre Ronald Dworkin e a crítica hermenêutica do Direito, veja-se: MOTTA, Francisco José Borges. Levando o Direito a sério: uma crítica hermenêutica ao protagonismo judicial. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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