Opinião

Ministério Público aceitou ser voz do ódio, mas "all we need is law"

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18 de janeiro de 2018, 13h54

Estamos em 2018. Tempo do ódio. Do ódio em rede, materializado em imagem e som. Ao vivo e a cores. A era dos haters, que se reproduzem aos borbotões, muitos deles viabilizados pela ilusão do anonimato e pela livre expressão da miséria humana.

Eu queria tratar de afeto. Exortar as pessoas a que se amassem, que se respeitassem, que fossem cuidadosos para com o outro. Que procurassem sentir, ainda que em abstração, a dor alheia.

Adoraria advogar em favor da alteridade derivada da solidariedade, do sentimento de comunhão, de fraternidade, a terceira vertente do mote da velha revolução burguesa da França, que nem aos integrantes de sua casta social consegue hoje convencer.

Refreio, no entanto, essa minha pulsão pelo amor. Contenho o meu ímpeto de tentar transmitir ao outro o vínculo de apreço abstrato que me conecta à humanidade. E o faço em parte pela necessidade de ser humilde e recusar a grandiloquência de vultos históricos. A segunda razão é o receio do que possa suceder a mim e a quem assuma o risco de benquerer indefinidamente. Amar em demasia é um perigo!

Toca Raul!

Eu não sou besta para tirar onda de herói. Sou vacinado (inclusive de febre amarela!). Entrar para história é com vocês. São inúmeros os mortos por odiadores de outros momentos. A lista é longa. Foi assim com Jesus Cristo, com Martin Luther King, com John Lennon, com uma miríade de pessoas especiais, muitas canonizadas, além de diversos outros reis e rainhas da paz. Dispenso-me de prosseguir com a relação extensa. Basta-me a comunhão do fim que lhes foi destinado: a morte violenta, dado o potencial revolucionário, agressivo e perigoso do amor.

Por isso, não direi nem cantarei All we need is love. Poderia ser assassinado na calçada defronte a minha casa. Quero viver, ainda que nesse período histórico tão difícil.

Em tempos assim, os haters se autoinvestem em juízes morais dos seus semelhantes, dos quais se observam somente as diferenças. Mas a esses moralistas implacáveis não basta apenas o julgamento fácil e gratuito. Eles estão supostamente empoderados pelos instrumentos de tecnologia de informação, os quais têm incentivado o pernicioso acesso à difusão de suas perversões. Haja personal Freud para toda essa gente…

Broadcast your own evil opinion. Eis o convite das redes sociais. Odeie e difunda seu ódio. Transmita-o ao vivo ou anacronicamente. Grave-o e agrave-o, agravando quem é gravado. É o bródiocast.

A ordem é a iconoclastia, palavra tem na origem etimológica o sentido de quebra de imagem. E na sociedade imagética dos dias atuais o que importa é a detratação, a destruição das imagens. E a tarefa de cada qual é evitar a sua e impô-la ao alheio. E, para tanto, qualquer divergência basta. Distinções de pensar em nuanças são suficientes para que nos agridamos, discriminemos, excluamos, sejamos maus.

Poderia tomar qualquer episódio para exemplificar o que é patente nos dias que correm. E qualquer personagem. Temer, Dilma, Lula, Aécio, Maluf, Bolsonaro, Cunha. Políticos que suscitam sentires paleolíticos seriam bons exemplos.

Políticos, no entanto, suscitam amores e ódios per saecola saeculorum. Sempre foram objeto dos que se investem da condição de modelos morais.

A novidade de hoje está no ódio ou apreço desmedidos a julgadores, seja porque não se conduzem segundo as expectativas dos torcedores organizados, dos defensores das penas infamantes, seja porque atendem ao furor da patuleia, que deseja o restabelecimento dos julgamentos sumários e sumérios, regidos pelo Código de Hamurabi.

Imagine, no entanto, se estivéssemos sob a lei de Talião ou sob o código de Hamurabi. Em várias áreas do globo (e da Globo) parece que ainda estamos. Basta ver algumas das regras de então: “1 – Se alguém enganar a outrem, difamando esta pessoa, e este outrem não puder provar, então aquele que enganou deve ser condenado à morte”. “3. Se alguém trouxer uma acusação de um crime frente aos anciões, e este alguém não trouxer provas, se for pena capital, este alguém deverá ser condenado à morte.”

Consumimos milênios para recusar a morte física como pena. Agora, então, a moda é a morte simbólica, moral. E bom mesmo é julgar livremente e segundo a ignorância e sentimentos de raiva que grassam no nosso estado mais selvagem. A prova é desnecessária. Basta a convicção.

Rebaixar os ideais revolucionários burgueses ao mínimo múltiplo comum é a ordem do dia.

Liberdade? Para poucos. A reclusão dos julgados deve ser a regra. Antes do trânsito em julgado. Contra a lei. A despeito da garantia expressa e literal da Constituição Federal.

Igualdade? Apenas segundo os mais baixos padrões. Ricos e poderosos devem sofrer como se pobres e destituídos de poder fossem. A eles, o novo ideal é negar-lhes o que historicamente foi negado à população. Se estamos descrentes da possibilidade da ascensão dos níveis de garantias e das condições sociais do povo, então que todos sejam rebaixados aos limites mínimos. Assim evoluímos para o passado, para Talião, para Hamurabi.

Fraternidade? Nem de longe…

Esses paradigmas do comportamento atual implicam o obscurantismo do “bródiocast” e acabam por suscitar uma espécie de desiluminismo, de negação dos ideais da revolução burguesa, uma modalidade de desrevolução por meio da involução.

Não se cuida nem mesmo de nos lançarmos em revolta contra o poder abusivo. Isso seria revolucionário. Mas não! Estamos num processo “involucionário”.

E isso alcançou de modo impressionante os sentimentos (e os brios) daqueles que são pagos pela sociedade fácil-acusadora para acusar que contaminou o Ministério Público.

O Ministério Público desiluminista aceita ser o vozeiro do ódio e pregar o fim à liberdade, assumir a busca da igualdade pela comunhão das celas indignas e a adoção da fraternidade da nada fraterna idade média.

A sanha e o medo à sua exposição também inocularam seu vírus em meio a uma parcela da magistratura. Há juízes que reproduzem essa enfermidade psíquica sob forma de desrespeito à lei e apego ao arbítrio.

Conduções coercitivas de quem jamais necessitou de coerção para se apresentar, de antecipação de penas, de prisões cautelares sem cautela alguma, condenações por inferência, por suposição, com penas máximas agravadas, tudo orgulhosamente transmitido em seus blogs e nas redes sociais.

E todos se jactam de seu desapego à lei.

Lei, ora a lei… O importante é satisfazer a cólera plebeia, a ira da patuleia.

E as pessoas doentes de nosso tempo não perdem a oportunidade de idolatrar os que saciam sua sede de justiciamento, assim como odiar aqueles que se apegam à lei para assegurar determinadas garantias constitucionais.

Ampla defesa, presunção de inocência, devido processo legal, inadmissibilidade de provas obtidas por meios ilícitos, relaxamento de prisão ilegal, além dos instrumentos e atores para sua obtenção (recursos inerentes à ampla defesa, habeas corpus, advogados), tudo é objeto de ódio e iconoclastia.

Esse sentimento foi bem externado e personificado por uma turista que, ao invés de refestelar-se na pacata e deliciosa Lisboa, preferiu gravar, agravar, agredir e perseguir o Ministro Gilmar Mendes, proferindo-lhe acusações, praguejando contra alguém supostamente fora do conceito de “comum dos mortais”.

Quádruplo engano.

O primeiro, o ódio e a revolta voltados contra um único ser humano, como se a ele se pudesse imputar todos os males da sociedade.

O segundo, a ofensa em si. Por mais diametrais que sejam as diferenças de pensamento, nenhuma divergência é permissiva de agressão física ou verbal. Trata-se de ilícito claro.

O terceiro, o bródiocast. Jactar-se de ter agredido impunemente alguém e fazer com que sua agressão se difunda, para que, como vírus (o verbo não é viralizar?), se dissemine o mais possível, é mais que erro. É primitivismo travestido de modernidade.

O quarto erro, supor que isso vai constranger ou modificar a convicção de quem quer que seja. As pessoas só costumam ceder de bom grado à razão ou a bons sentimentos e não à iracúndia.

A posição garantista de Gilmar Mendes, assim como de outros ministros, deriva da Constituição da República e apenas reforça a necessidade de que magistrados devam respeito à lei e não aos desejos derivados dos mais baixos sentimentos humanos, ainda que eventualmente majoritários.

Podemos discordar de inúmeras posições do ministro. Isso, no entanto, jamais autorizaria o múltiplo erro na ação da turista incidental e atriz acidental do vídeo veiculador de ódio gratuito daquela corregedora da Suprema Corte.

Divergir é normal. Não comungo de vários pensamentos e julgamentos do ministro Gilmar Mendes. Reconheço, no entanto, que nos dias que correm, a sua coragem de ser garantista e despojar-se de incorrer na tentação de atender a galera ensandecida e violenta é grande mérito a ser reconhecido.

É certo que o esquadro mínimo para as nossas ações deve ser gizado pela sua constitucionalidade, pela convencionalidade das normas internacionais e na legalidade estrita. Em tempos em que o ilícito nos convoca, em que até as leis desafiam a Constituição da República, é preciso que não invertamos os valores derivados da lei.

Gilmar Mendes, nesse episódio, foi tão só vítima. A tentativa de agredi-lo como suposto algoz da sociedade fez desse um episódio exemplar de quão involuídos ainda estamos, a despeito de nossa capacidade de transmitir em som e imagem essa nossa decadência e deselegância.

Desagravo-o aqui, por respeito ao que pensa, seja quando convirjo, seja quando dele divirjo.

Não ouso pedir que nos amemos. Reduzo o escopo de minha pretensão para apenas postular que respeitemos a lei e o sistema jurídico. Não se trata de apego a mera literalidade da norma sem controle de constitucionalidade ou convencionalidade, mas de respeito ao conjunto de regras e valores expressos em textos legais e não nas crenças e juízos morais pessoais.

Não nos invistamos em corregedores da humanidade. Basta-nos o respeito à lei, considerada em seu sistema. E aí poderemos ao menos cantar em paz: “all we need is law”.

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