Segunda Leitura

O Documento Técnico 319 do Banco Mundial e o Judiciário na América Latina

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14 de janeiro de 2018, 7h00

Na semana passada, a coluna versou sobre relatórios do Banco Mundial publicados em novembro de 2017, com os títulos: “Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil” e “Políticas de apoio às empresas no Brasil: grandes gastos, pouco impacto”. Percorrendo o teor, percebe-se que o nome dos documentos é elucidativo, transmitindo a mensagem de que o erário gasta muito mais do que arrecada e o faz em benefício imediato dos ricos (servidores públicos, políticos, empresários) e prejuízo mediato para toda nação que se vê na iminência de voltar ao caos fiscal/orçamentário dos anos 1980/90.

A toada da prosa é sobre a relação do Judiciário com o “ajuste justo”. A tanto, é preciso ir a 1996, quando o Banco Mundial publicou o Documento Técnico 319, denominado “O setor Judiciário na América Latina e no Caribe: elementos para reforma”. A vociferação contra a destruição do Judiciário (a palavra desconstruir não estava na moda), contra o imperialismo ianque que pretendia manietar o Judiciário para fazer da América Latina o seu quintal etc., já deixou de vibrar nos tímpanos há muito. Creio, a juventude sequer sabe da existência do tal documento, que foi demonizado, e o nome da relatora, Maria Dakolias, entrou no rol daqueles que não se pronunciam.

O Documento 319 falava sobre a lisura na nomeação de magistrados, sistema disciplinar, orçamento, gestão de acervo, meios alternativos de resolução de conflitos. Da rejeição irracional, calcada puramente na crítica a quem havia produzido o estudo — objectio ad personam —, passou-se à implementação das sugestões, culminando com a Emenda Constitucional 45. Politicamente incorreto hoje é propor mudanças nos preceitos veiculados pela EC e nas leis de modernização.

Concursos efetivamente aferidores do conhecimento jurídico, sem exame do DNA dos candidatos, criação do Conselho Nacional de Justiça, intensificação dos Juizados Especiais, estímulo normativo e administrativo às formas não conflituosas de solução de lides, criação de base de dados com a formulação de estatísticas e publicidade de produção, produtividade, salários. A arquitetura atual da instituição judiciária no Brasil tem muito do desenho feito pelo Banco Mundial há duas décadas e a ninguém ocorre verberar contra os imperialistas que usaram de estratagemas pérfidos para dominar a Justiça brasileira.

Vê-se, há relação antiga, umbilical, com o Banco Mundial, e a análise do “ajuste justo” ora proposto deve ser isenta de preconceito ideológico, para formar pós-conceito. Se a fonte impura contaminasse a água ad perpetuam, opor-se a qualquer modificação da arquitetura do Judiciário implicaria defesa das normas produzidas com suporte no AI-5, no Pacto de Abril de 77 e na Loman de 1979. Inexistem defensores da origo legis ditatorial, mas há conservadores da dicção e da mens legis atual. Esses conservadores, que se creem progressistas por se opor ao Banco Mundial, podem se abrir a análises que demonstrem que o aggionarmento do Judiciário é necessário e não deve ser à moda lampedusiana, mudando para remanescer.

A temperatura não deve subir nem quando a leitura chegar na parte que versa disparidade entre salários públicos e da iniciativa privada que instala no quintil mais rico da população 83% dos servidores federais, destacando-se funcionários e agentes políticos do Ministério Público e Judiciário. Por meio dos números, os fatos dizem “presente”.

Então, objectio ad propositum desensarilhada e a crítica ad personam completamente alijada, vamos ao debate. A primeira perspectiva é o ajuste no tamanho da máquina judiciária e seu custo. Ajuste para dentro. A segunda mirada é a postura do Judiciário como poder e seu entendimento, quando provocado nas vias processuais, sobre normas que tenham o telos do ajuste do conjunto do aparato público brasileiro.

A democracia não tem preço! A afirmação exclamada como resposta impeditiva do debate sobre o custo do Judiciário é verdadeira num sentido e falso n’outro. A verdade deita raízes na ciência dos efeitos perversos das tiranias pessoais e/ou ideológicas. Sim, as autocracias (palavra antônima) podem até gerar sociedades economicamente remediadas, mas não felizes. A opressão à diversidade, especialmente à do pensamento sobre a própria política, gera embotamento da criatividade, do viço social. Então, todos os custos emocionais são módicos para alcançar, manter e aprimorar a democracia (rectius, poliarquia).

Judiciário forte, independente do poder político legitimado pela fonte direta, o voto dos condôminos da República, é uma das premissas para a mantença e sofisticação democrática. Para que exista tal instituição é imperioso pagar salários, custear instalações físicas. Qual o custo razoável para cada sociedade?

Dados, informações e análises há em abundância. Para a argumentação em curso, adotou-se o estudo de Luciano Da Ros, denominado “O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória”. Nesse estudo, há várias demonstrações que colidem com o senso comum, a exemplo da ideia de que o Judiciário é caro porque os juízes são bem remunerados. Os números revelam o principal motivo: o Brasil tem a maior proporção de servidores judiciais por 100 mil habitantes no mundo; são 205. Na Inglaterra, 30; Portugal, 58; Alemanha, 67. Argentina, 150.

No métier jurídico, a Alemanha é tratada como Nirvana. Então, mais um número alemão: são 24,7 juízes para 100 mil habitantes. Há muitos juízes em Berlim! Contudo, poucos têm a completude de investidura de juiz brasileiro e por isso são remunerados de modo parco, muito parco. No Brasil, há 8,2 juízes para cada 100 mil habitantes, e o gradiente remuneratório é estreito. Um novato tem salário parecido com o dos veteranos.

Na Inglaterra, são 3,8 juízes para 100 mil habitantes e não se pode dizer que faltam garantias aos súditos de sua majestade. Combine-se a pequena quantidade de funcionários e de juízes para ver que o Judiciário do Reino Unido é muito barato e a democracia não parece ameaçada por isso.

Da Ros chama de “burocracia jurídica” o aparato: Ministério Público, Advocacia Pública, Judiciário. Esse conjunto custou, em 2015, 1,8% do PIB. A média na União Europeia é de 0,33%. À objeção de que a comparação com a Europa é inadequada porque são democracias maduras, é de se lembrar que gastamos mais do que qualquer país vizinho, com história política semelhante. Além disso, a maturação europeia é recente, saindo da hecatombe autoritária do nazifascismo. Nem por isso o custo com o Judiciário europeu foi às estrelas.

Novamente, a questão da arquitetura da casa. A Constituição de 1988 trouxe benefícios e problemas. Esses fizeram disparar a litigiosidade a patamares sem equivalência em outros povos.

Falta examinar e prognosticar a postura do Judiciário ante eventuais normas de implementação do “ajuste justo”. Além disso, perscrutar a externalidade negativa e não visualizada da Constituição vigente sobre a litigiosidade em sede judicial. Assunto para domingos vindouros. Até lá.

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